Considerada como um marco de resistência em busca de respeito e representatividade social, o Dia da Consciência Negra, celebrado neste sábado (20), também traz para o debate a importância de ampliar a participação de pessoas negras na política e nos cargos de liderança. Em Caxias do Sul, seja nas funções públicas, nas empresas ou nos bairros, homens e mulheres pretos que ocupam ou já ocuparam posições de destaque na cidade avaliam como é a conquista de espaços para pessoas negras na cidade. Para eles, os avanços são visíveis, mas ainda há muito o que percorrer.
Nesta legislatura, a Câmara de Vereadores de Caxias voltou a ter três vereadores autodeclarados negros entre os 23 eleitos: a reeleita Denise Pessôa, e os estreantes Estela Balardin e Lucas Caregnato, todos do PT. A última e única legislatura com o mesmo número de parlamentares negros foi a 15ª, entre 2009 e 2012. A bancada era formada pela própria Denise, em primeiro mandato; Assis Melo (PCdoB), o mais votado entre os eleitos; e Edson da Rosa (PP, mas no MDB na época), reeleito (leia mais abaixo).
Para fora de Caxias, a realidade não é diferente. Rara presença negra no Congresso Nacional, o senador caxiense Paulo Paim (PT) afirma que o Parlamento espelha a desigualdade racial e defendeu a discussão de cotas para negros em campanhas políticas. Segundo ele, há predominância de brancos na política brasileira e isso reflete de forma negativa nas ações afirmativas em prol do protagonismo negro.
Para contribuir com o assunto e demonstrando a importância da representividade na luta pela igualdade, o petista apresentou projetos que tipificam a injúria racial como racismo e alinha a legislação ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em julgamento, já decidiu dessa maneira. Paim também defende a extensão das cotas para pessoas negras às vagas dos cursos de pós-graduação no país.
Recentemente, cobrou que essas pautas ganhem celeridade no Senado.
— Todos os dias, matam pessoas pela cor da pele, por ser negro. Homens, mulheres, crianças, idosos. O grito de socorro e de dor ressoa entre nós nas ruas, nos parques, nas cidades. Há uma tristeza interior, que avança como um rio sem rumo. Quem é negro sabe muito bem o que estou falando. Segundo pesquisa do Atlas da Violência, os negros têm mais que o dobro de chance de serem assassinados — lamentou ele em uma sessão do Senado na última semana.
Confira a seguir os relatos de lideranças negras de Caxias do Sul:
“Tive a oportunidade de ser um exemplo para aqueles que estão vindo”, diz primeiro vereador negro em 113 anos
Em 2005, Edson da Rosa foi o primeiro vereador negro eleito em Caxias do Sul. Antes dele, não há notícia de um parlamentar negro no Legislativo caxiense desde 1892, quando a Câmara foi criada. Ainda no primeiro ano do mandato, para simbolizar a sua chegada ao parlamento, Edson propôs a criação da Comenda Zumbi dos Palmares. A medalha homenageia, a cada dois anos, pessoas que tenham se destacado na defesa dos direitos humanos e da cidadania, no combate à discriminação e ao preconceito, entre outras formas de inclusão social.
— Entendo que devemos analisar a trajetória das pessoas e não somente a cor da pele. Então, foi uma surpresa, na época, a reverberação com essa lembrança de ter sido o primeiro vereador negro. Tive a oportunidade de ser um exemplo para aqueles que estão vindo. Desde então, sempre existiram vereadores negros eleitos em Caxias. Entendo que o meu pioneirismo foi uma conquista da representatividade no Legislativo e, quando elas existem, trazem avanços. Uma referência positiva que abre portas e que fez muito bem para a cidade — avalia.
Após concorrer a vice-prefeito na eleição passada e não se eleger, Edson afirma que é possível militar pelas minorias mesmo sem um mandato efetivo. Nas últimas semanas, foi convidado a participar de palestras e atividades em escolas e instituições de outras cidades para falar sobre a sua trajetória e a importância da representatividade negra nos espaços de poder. Dessa forma, acredita estar ampliando a discussão por meio da educação, uma das suas principais bandeiras.
— Ninguém apaga a tua trajetória. Uma pessoa que se elege para um mandato é porque já transitava entre a sociedade e, de certa forma, também liderava muito antes de ser eleita para um mandato. Não é preciso ter um cargo público para fazer isso, existem diferentes formas — observa.
Para ele, ainda existem muitos espaços de liderança a serem ocupados pelas pessoas negras em Caxias, seja na política, nos ambientes corporativos ou em funções de decisão. Além disso, também observa a importância da ampliação do espaço das mulheres nos poderes. Entretanto, defende que políticas públicas sejam criadas e fortalecidas para incentivar a participação desses dois públicos nas discussões.
—A Câmara de Vereadores representa a sociedade e, quando conseguimos aumentar a representatividade, é possível fazer uma política mais inclusiva. Tivemos muitos avanços nos últimos anos, mas é preciso avançar mais. E para aumentar essa representatividade, as pessoas (negras) precisam se colocar à disposição, participar do debate e se filiar a um partido político — afirma.
O ex-vereador entende que a presença do negro na disputa dos cargos públicos não é uma pauta que se limita apenas aos partidos de esquerda. Depois de 21 anos no MDB, filiou-se ao PP, um partido de centro-direita, quando concorreu nas eleições passadas e está sendo sondado para participar da disputa à Assembleia Legislativa no ano que vem.
Jovem e mulher negra falam sobre desafios de ser presidente de bairro
Entre os 165 presidentes das Associações de Moradores de Bairros (Amobs) de Caxias do Sul, a estimativa é que cerca de 15% dos representantes comunitários sejam pessoas que se declaram de cor preta.
— A maioria delas está nos bairros das periferias, mais afastados e que, de certa forma, representam o perfil de quem mora nesses locais. Poderia ser um número maior? Poderia. Mas entendo que é um bom número por estarmos falando de Caxias, uma cidade com muitos traços europeus, por exemplo — avalia Sérgio Ubirajara da Rosa, vice-presidente do bairro Marechal Floriano e diretor de igualdade racial da União das Associações de Bairros (UAB).
Entre os líderes comunitários negros está o auxiliar administrativo Thales Silva, 24 anos, que é um dos mais jovens presidentes de bairro de Caxias do Sul. Em 2019, se elegeu pela primeira vez como representante do loteamento Conquista, na região do bairro Santa Corona. Apesar da estreia na função, acompanha o trabalho da Amob desde os 13 anos e sempre esteve envolvido com a causa comunitária, ocupando também a vice-presidência em duas gestões passadas.
Para dar conta das demandas do bairro, Thales dividiu as atribuições com a vice-presidente da Amob. Essa parceria, segundo ele, é fundamental para que também possa se dedicar a outras tarefas pessoais comuns de um jovem.
— Tenho que trabalhar, estudar e me envolver com as demandas da minha comunidade. Ser negro, jovem e líder comunitário é uma tarefa difícil e entendo quem não queira assumir uma responsabilidade dessa. Também tem preconceito. Se for colocar eu ao lado de um homem de 30 e poucos anos, branco, e perguntar quem é o presidente de bairro, certamente vão apontar que é o homem de 30 e poucos anos e branco. As pessoas não estão acostumadas com lideranças negras — explica.
Outro exemplo de protagonismo negro nos bairros é o de Samanta Nascimento, 43 anos, que foi a primeira presidente da Amob do loteamento Monte Carmelo. Mesmo sem ocupar o cargo atualmente, é uma líder entre os moradores porque segue sendo procurada pela comunidade para auxiliá-los em diferentes demandas.
— Brinco que tenho que ficar em casa com as luzes apagadas porque se eu acender vem alguém aqui pedir alguma coisa. Explico que existem outras pessoas liderando a Amob, mas entendo o meu papel como líder comunitária, que por tantos anos cuidou de tudo e permaneço à disposição. Sou mãe solteira, negra e muito lutadora. Não é fácil assumir tantas funções e cuidar de uma área com tantas demandas, onde faltava tantas coisas e as pessoas querendo ajuda — comenta.
O Monte Carmelo surgiu em uma ocupação que começou em 2003. É desde este período que Samanta mora na localidade. De perto, acompanha a realidade da maioria dos cerca de 2 mil moradores da região e viu, ao longo dos anos, a comunidade crescer porque muitas famílias que vinham de outras cidades acabavam não conseguindo arcar com o alto custo de viver em Caxias e ainda pagar aluguel. Também acompanhou todas as demandas judiciais da área com as reintegrações de posse e negociações com o poder público.
Segundo ela, faltam incentivos para que mais pessoas negras liderem os espaços.
— Queria ver mais mulheres pretas ocupando cargos de liderança. Eu sai, mas poderiam outras também estarem à frente da Amob, por exemplo.
Rogério, um raro executivo
Além dos cargos públicos, como vereadores, ou funções voluntárias, como é o caso dos presidentes de bairros, a presença de pessoas negras fora da política também deveria ser estimulada, segundo os entrevistados dessa reportagem.
Em ambientes corporativos, o diretor-executivo no Movimento Mobilização por Caxias (MobiCaxias), Rogério Rodrigues, 48 anos, costuma ser o único de cor preta nesses espaços. Questionado pela reportagem, mesmo após longos segundos, confessou não lembrar de conhecer outros negros em um cargo igual ao dele na cidade.
Antes da função no MobiCaxias, uma das mais representativas da cidade, pois reúne diferentes setores que visam planejar Caxias para daqui 20 anos, Rogério foi gerente regional do Sebrae e também professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
— A minha percepção é que a representatividade negra cresceu muito nos últimos anos. Não somente como professor em uma universidade, mas na cadeira como aluno. No passado, não se tinha acesso e, agora, com as políticas públicas, eu consigo presenciar um número maior de pessoas negras com acesso à educação — avalia.
Além disso, por mais que as empresas busquem a pluralidade e incentivem a contratação de negros, ainda há um desafio para que essas pessoas cheguem aos postos mais altos dentro das corporações.
— Assim como para os negros, é difícil ver mulheres no alto escalão de uma empresa, por exemplo. Infelizmente, ainda existe uma cultura de preconceito. Essa situação era muito maior no passado, mas entendo que estamos evoluindo. Porém, longe do que seria o ideal. Queria muito estar aqui pra ver essa realidade mudar — explica.
Para ele, a educação é a principal ferramenta para superar as dificuldades e ter uma sociedade mais igualitária.
—É preciso dar visibilidade, disseminar as pautas e mudar a cultura da nossa sociedade de discriminação e preconceito. Aprendi com a minha família que o conhecimento, a leitura, as discussões, são fundamentais para virar o jogo. A dessinformação, que é o preconceito, que muitos herdaram das suas origens, precisa ter fim — afirma.