No início de novembro, o metalúrgico Antônio Jorge da Cunha assumiu a gestão 2019-2021 do Conselho Municipal da Comunidade Negra (Comune) de Caxias do Sul. Militante desde a época em que chegou à cidade — é natural do Piauí —, há 30 anos, ele passa a comandar a entidade consultiva de assessoramento ao poder público na promoção de atividades e articulação de políticas públicas que buscam a defesa dos direitos de negros e o combate à discriminação.
Na semana em que se celebra o Dia da Consciência Negra (quarta-feira, dia 20), Cunha falou ao Pioneiro sobre a insuficiência da data para reflexão sobre o tema e a falta de representatividade do negro na sociedade.
Quando iniciou seu envolvimento com o movimento negro?
Comecei a militar em movimentos sociais em 1989. Havia três militantes na época. Comecei a participar com eles e perceber que precisava de um engajamento maior, comecei a ser mais ativo, tanto no movimento negro quanto sindical, e de lá para cá participo ativamente.
E o que lhe indicou que a militância era o caminho mais adequado?
As próprias dificuldades que enfrentamos no dia a dia. É uma necessidade natural lutar por nossos direitos, e qual é a forma de fazer isso? Se engajando em algum movimento, não tem como lutar sozinho contra algo que te oprime. Tem de formar grupos, se juntar ao que se sente acolhido. Foi isso que eu fiz.
Caxias é uma cidade muito racista?
Não só Caxias, todo o Brasil. É notório. Que postos de trabalho os negros ocupam na sociedade brasileira? Desde o fim da escravatura o negro vem ocupando funções subalternas.
Na política, por exemplo...
Sim, a representatividade do negro na política ainda é muito baixa. É o que eu comentei, não só na política, mas em todos os lugares. A começar pela educação, não vemos negros professores nas escolas. Conforme subimos graus hierárquicos menos ainda. 56% da população é negra, e onde estão? Vemos na política? Muito pouco. Lutamos contra esse tipo de coisa. Para se abrir mais espaço para a gente. Por isso brigamos por essas ações afirmativas, como as cotas. É o caminho. Vamos fazer um comparativo entre o imigrante que aqui chegou e o negro que foi escravizado por quase 400 anos no Brasil. Quando terminou a escravatura, simplesmente liberaram ele à própria sorte. Aí os outros (imigrantes e colonizadores) chegaram, com todas dificuldades que tiveram, conseguiram trabalho. Mas colocamos na forma de uma analogia: você solta um corredor para correr mil metros e depois de mil metros libera o outro corredor. Ele vai conseguir competir ou acompanhar? Nunca. Por isso, quando discutimos cotas, a sociedade é contra, porque "negro está sendo racista" e isso e aquilo, mas é uma forma de tentar equilibrar a condição daqueles que ficaram para trás.
Para aumentar a representatividade especificamente na política, é preciso, naturalmente, que negros não apenas se candidatem, mas sejam eleitos. Como?
Se tivéssemos nossos representantes com algum compromisso na comunidade negra, poderia ser que estivéssemos avançando e não precisássemos tanto ficar lutando por espaço. Ainda não temos espaço e parece cada vez mais difícil. Abertura temos, mas não temos dinheiro no dia a dia, imagina concorrer com alguém quem tem muito dinheiro e apoio de todo mundo. O negro não vai ter. O negro não tem dinheiro para bancar campanha.
Os vereadores negros (na Câmara Denise Pessôa e Edson da Rosa se declaram "pretos") representam a causa?
Sim. Vi uma entrevista do Edson da Rosa logo que ele assumiu dizendo que não se sentia negro. Mas a gente percebe engajamento dele nessa questão da negritude, está mais presente, discutindo as questões. A Comenda Medalha Zumbi dos Palmares é um projeto criado por ele. Então, acho que ele evoluiu bastante nesta questão (de representatividade) e está mais disponível para a comunidade negra.
E como avalia a postura da prefeitura com a comunidade negra?
Reprimir a cultura do povo negro e acabar com o carnaval é algo muito negativo para a própria cidade. O nosso prefeito agir desta forma é muito negativo. Sempre houve respeito do poder público com o negro, mas esse prefeito (Daniel Guerra) acabou suprimindo muita coisa da cultura negra e é lamentável o que está acontecendo. Ano que vem tem eleições novamente e é momento de pensar e buscar alguém que represente a sociedade caxiense como um todo.
Essas decisões incentivam a discriminação de alguma forma?
Com certeza. A partir do momento em que o poder público extingue o que acha que não é prioridade, incentiva o preconceito.
E o Conselho Municipal da Comunidade Negra exerce representatividade atualmente? Como o senhor pretende otimizar essa atuação?
(O Comune) representa muito bem a comunidade negra de Caxias do Sul. As demandas que chegam ao conselho são sempre encaminhadas. Temos uma advogada que faz trabalho muito forte nas questões de injúria, abuso, racismo. Abusos policiais contra negros existem muito em Caxias. Quando essas demandas chegam, nós damos os encaminhamentos necessários. Vamos trabalhar da mesma forma que o pessoal vinha trabalhando e pretendo dar continuidade no trabalho que eles vinham fazendo.
Celebra-se nesta semana o Dia da Consciência Negra, num mês em que se dedica uma visibilidade maior sobre o tema. É suficiente?
Deveria ser mais discutido ao longo do ano. Nas escolas deveria ser melhor tratada, existe lei (10.639 que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nos colégios), mas não é cumprida. Não se fala do negro do Brasil nas escolas. A história que foi contada do negro é o inverso daquilo que ele foi. Contam como uma história de submissão, a escravidão, mas não é dito que ele lutou para ser libertado.
O ambiente mais hostil politicamente que afeta o Brasil realçou alguns aspectos extremistas comportamentais. O senhor acha que isso reacendeu algo de algum modo?
O comportamento do governo federal refletiu na população. A postura de como ele age com os movimentos sociais reflete na sociedade inteira. Se governo federal age desta maneira, acha que o governo municipal que é afinado, não vai agir da mesma forma? Está acontecendo, mas a gente luta contra esses retrocessos, que não retrocedamos o pouco que conquistamos. Temos de nos reorganizar e lutar contra isso.