Após meses buscando dar encaminhamento efetivo ao chamado "pacote anticrime", no qual são propostas alterações significativas em 14 leis federais — Código Penal e Código Processual Penal — o projeto do Ministério da Justiça, do ex-juiz e atual ministro Sergio Moro, esbarrou em uma tragédia. A morte da menina da Ágatha Vitória Sales Félix, oito anos, vítima de bala perdida no último dia 20, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro suscitou debate a um dos pontos mais polêmicos do pacote, que ampliaria o conceito de legítima defesa do art. 25 do Código Penal e altera termos do chamado excludente de ilicitude do art. 23 da mesma legislação. O excludente de ilicitude define a exceção ao cometimento de crime sem imposição de penalidade por ele.
Conforme a proposta original, como excludente de ilicitude, juízes poderiam reduzir pela metade ou não aplicar pena se excessos dolosos ou culposos decorram de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Já com relação à legítima defesa, a proposta incluiria a atividade policial com a prerrogativa de legítima defesa quando houver "uso moderado dos meios necessários para repelir injusta agressão". Na última quarta-feira (25), a proposta foi derrubada por deputados que analisam o pacote antes do envio para plenário. A supressão do texto de ambos os itens foi sugerida pelo deputado Marcelo freixo (PSOL) e apoiada por nove deputados, contra cinco (da bancada do governo) que se posicionaram favoráveis à permanência do trecho.
Opositores das propostas, antes mesmo da morte de Ágatha, alegavam que as mudanças poderiam se tornar uma "licença para matar", pela suposta facilitação que os termos "escusável medo" e "violenta emoção" poderiam gerar, uma vez que permitiriam uma leitura subjetiva da defesa de policiais, que passariam a estar amparados pela própria atribuição da função.
"Não concordamos com a utilização de expressões como "medo", "surpresa" e "violenta emoção" para permitir ao juiz reduzir a pena ou até mesmo deixar de aplicar a pena. Depois de flexibilizar a legislação sobre o desarmamento e, consequentemente, em certa medida, armar a população, propor a exculpação do excesso de legítima defesa praticado por medo é algo preocupante", posicionou-se, em nota, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, ao manifestar pesar pela morte de Ágatha, também ressaltou a necessidade de "avaliação cuidadosa" quanto à proposta de excludente de ilicitude. Após repercussão e contestação popular e política, o próprio ministro Sergio Moro defendeu-se nas redes sociais e alegou que não haveria qualquer relação do fato com a proposta de legítima defesa do pacote.
Embora o debate tenha se reacendido com a tragédia, contestações sobre o vigor das penalidades a agentes de segurança pública retornam esporadicamente, especialmente em casos de vítimas de balas perdidas. O Pioneiro buscou a opinião de representantes políticos e atuantes do direito da região sobre a polêmica proposta.
O que dizem
"Em primeiro lugar, a vida é insubstituível e a morte de uma criança deve ser profundamente lamentada por ser o resultado triste da violência em que vivem muitas comunidades, começando pelo direito à vida que é diariamente desrespeitado pelos criminosos. Em nossa visão, o projeto do ministro Sérgio Moro é positivo porque dá condições para que não só o policial, mas também as guardas municipais possam enfrentar a criminalidade com respaldo legal, exatamente porque o objetivo do pacote anticrime do ministro é, ao fim, a redução dos índices de criminalidade. O que não podemos permitir é que bandidos se sintam com licença para matar pela impunidade de um sistema que não pune com rigor a bandidagem, muitas vezes com um prende-e-solta do Judiciário. As forças policiais têm seus órgãos de fiscalização e corregedoria para investigar eventuais erros ou excessos cometidos em operações." Daniel Guerra (Republicanos), prefeito de Caxias do Sul
"Era um dos pontos que mais preocupavam dessa proposta, pois legitimaria os excessos que, por vezes, já ocorrem hoje e, com isso, tenderia a aumentar os episódios de truculência por parte dos agentes de segurança. E sim, com essa proposta, por exemplo, o responsável pela morte da menina Ágatha poderia inclusive ficar impune. É importante ressaltar que a ampliação da legítima defesa é tão grave porque abrange não só os agentes públicos, mas qualquer cidadão. Então, qualquer um que matar uma pessoa pode alegar legítima defesa por estar com medo ou em situação de forte emoção. Um exemplo: todos os condenados por crimes de feminicídio vão poder pedir uma revisão de sua condenação por terem reagido supostamente sob forte emoção. O conceito da legítima defesa já existe." Denise Pessôa, integrante da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara de Vereadores
"A lei que já existe é praticamente a mesma. A legítima defesa já está caracterizada. O que está acontecendo é que está se misturando política com a legislação, aí eu começo a ter medo. Bala perdida, infelizmente, no Rio de Janeiro, é todo o dia. A Ágatha foi diferente porque está para ser aprovada a lei (pacote anticrime), por isso, quem ataca a lei utiliza o fato para dar essa dimensão. É claro que é uma dimensão importante, pois é uma vida que se perde, mas está se misturando política com justiça. A lei já existe, policiais estão protegidos. A excludente de ilicitude, quando é escancarada, nem o próprio MP denuncia. O policial, evidentemente, por estar num risco mais iminente, tem de ter proteção maior. Os termos da lei são sim muito subjetivos e isso facilita a alegação de legítima defesa. Eu acho que deve facilitar a vida do policial, sim, mas também tem de haver discussão mais aberta. Como tem o bom policial, tem o mau policial. O projeto foi solto aos atropelos, porque a violência está chegando a níveis insuportáveis. Essa reforma tem de ser vista com muita atenção para evitar abusos depois." Alceu Barbosa Velho, advogado e ex-prefeito de Caxias
"Foi uma interpretação que ficou mais clara, apenas. Os órgãos investigativos e de controle já exercem essa atividade. Não vejo com grande alarde como ocorreu no caso da menina Ágatha, é uma fatalidade sim, mas o Estado do Rio de Janeiro está vivendo um período de violência epidêmica. O problema que temos de começar a enfrentar é de política criminal. Vamos continuar apenas tendo combate à droga através de guerra, de confronto? Temos de começar a repensar essas políticas. Rio de Janeiro e São Paulo não investem em saúde policial, em treinamento, nada. Só manda para a rua. Agora, é claro que tudo que usa termos como "medo" cria um efeito subjetivo, parece uma licença. Mas juridicamente, é preciso um contexto, uma interpretação. Quando um governador comemora uma morte de um homem logo após um sequestro, isso valida o uso da força. No RJ, há uma construção histórica de violência policial, tínhamos na década de 90 uma premiação por letalidade." Ivandro Bitencourt Feijó, advogado criminalista de Caxias
"Há anos, este país espera atitude forte em relação ao combate à impunidade, ao menos a população está cansada. O pacote anticrime veio atender a uma expectativa de muitos anos. Temos um Código Penal de 1940, muito retrógrado, e uma lei muito leniente que privilegia os bandidos e nunca a vítima. Até mesmo a questão policial, as pessoas se chocam quando vem a polícia mais firme num confronto, mas e quando acontecem as barbaridades? O pacote anticrime é muito bom, tanto por atacar a corrupção sistemática e o crime organizado, aumento da progressão de pena em crimes hediondos e acabar com as saídas temporárias. Precisamos cuidar da população. Ninguém é a favor da execução, de um crime cometido por ninguém, nem policial. Agora, numa situação de confronto, se acontece de uma bala perdida, acontecem fatalidades, a culpa não é da polícia, é do bandido. Agora, não é porque é policial que ele não possa ser investigado." Paula Ioris, presidente da Comissão de Segurança Pública e Proteção Social da Câmara
"A OAB sempre manifestou preocupação com o amplo poder que a excludente de ilicitude dá à polícia. Não que sejamos contra medidas duras que possam ser tomadas, mas tem de haver cuidado, principalmente em comunidades mais pobres, que não são compostas só por criminosos, 99% são trabalhadores e crianças. E casos como o da menina Ágatha comprovam que há sim esses excessos, sem contar que tivemos no início do ano o fuzilamento do carro e a morte do músico também no RJ. Não se pode colocar a população de refém nesta guerra. Por mais bem intencionados que os policiais possam estar, excessos podem ser cometidos. O item do projeto fazia uma inversão do ônus da prova. Se matar alguém, eu tenho de provar que foi em legítima defesa, e esse excludente praticamente inverteria isso. Sempre estaria em excludente, a não ser que comprove o contrário, por isso é praticamente uma licença para matar. Quem faria a prova contrária?" Rudimar Luís Brogliato, presidente da subseção da OAB em Caxias do Sul
O QUE DIZEM OS TEXTOS
Art. 23 do Código Penal Brasileiro, o CPB (excludente de ilicitude)
No pacote anticrime
Acusado responde "pelo excesso doloso ou culposo" do direito à legítima defesa, podendo o juiz reduzir pela metade ou não aplicar pena se o excesso decorresse "de escusável medo, surpresa ou violenta emoção"
Atualmente
É prevista punição em caso de excessos na legítima defesa, sem relativização.
Art. 25 (legítima defesa)
No pacote anticrime
Ações de "agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado" ou ainda dos agentes em situações com vítimas reféns fizessem "uso moderado dos meios necessários para repelir injusta agressão" seria considerado "legítima defesa".
Atualmente
Não considerada prerrogativa como legítima defesa a atividade policial.
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