Nos últimos 15 dias, Caxias do Sul registrou dois ataques à liberdade de expressão: a proibição da Parada Livre em local público e a exposição Santificado, que mostra, entre outros trabalhos, nus frontais de homens e mulheres. O trabalho produzido pelo artista caxiense Rafael Dambros, exposto no espaço cultural Mario Crosa da Câmara de Vereadores, virou alvo de ataques do movimento Direita Gaúcha porque, supostamente, as obras teriam sido visitadas por estudantes de escolas da cidade. Na quinta-feira, Felipe Diehl, um dos representantes do grupo, disse que encaminhará denúncia ao Ministério Público por vilipêndio de objeto de culto (insulto a imagens de santo).
Em setembro do ano passado, o grupo Direita Gaúcha acusou a exposição Queermuseu de apresentar em alguns trabalhos expostos blasfêmia no uso de símbolos católicos, pedofilia e zoofilia. Com os protestos, o Santander Cultural decidiu cancelar a mostra.
Na terça-feira, o prefeito Daniel Guerra (PRB) informou por meio de nota que havia determinado a suspensão das visitas de escolas municipais à Câmara durante o período da exposição. No dia seguinte, o presidente do Legislativo, vereador Alberto Meneguzzi (PSB) negou que estudantes tivessem visitado a exposição e reagiu à determinação do prefeito Daniel Guerra. Chamou a nota de “indecente”. Ele também rebateu as críticas do vereador Renato Nunes (PR), que afirmou que a exposição estava em local inapropriado.
– Enquanto eu for presidente, a democracia está garantida. Quem quiser expor aqui vai expor. Não serei censor de obra, não serei censor de cultura.
O responsável pela curadoria da Queermuseu, Gaudêncio Fidelis, disse que identificou semelhanças entre os ataques à mostra caxiense e à cancelada em Porto Alegre, inclusive incitada pelos mesmos grupos. Ele sustenta que os ataques tem fundamentação “político-eleitoreira” e que a intenção é angariar a opinião pública em benefício político.
– Os ataques atendem a uma agenda política específica e fala para um público de fundamentalistas, de pessoas favoráveis a ideologias de caráter fascista, ou de regimes autoritários.
Curador deve visitar exposição
Fidelis conta que desde o protesto contra o Queermuseu passou a acompanhar incidentes do mesmo tipo, e que recebeu imagens das telas da exposição caxiense. Segundo ele, não há nada na exposição que tenha motivo de condenação de crime ou moral, e rejeita a acusação de vilipêndio.
– Sou um defensor incondicional da liberdade de expressão. As pessoas confundem o que significa vilipêndio religioso. A exposição (caxiense) é uma referência histórica à iconografia cristã. A história da arte não existiria de nenhuma forma sem a iconografia cristã. A gente vê na exposição do Rafael referências culturais, históricas e artísticas a esses ícones, e não há nenhuma forma de erotização. E mesmo se fosse o caso, não seria o motivo de ataques – diz o curador que pretende conhecer a exposição pessoalmente na próxima segunda.
O curador conta que o jornal Folha de São Paulo fez um levantamento que aponta 41 casos de agressão à livre expressão de ideias desde o caso Queermuseu.
Fidelis lembra também que um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) apontou que os ataques ao Queermuseu foram gerados por robôs, na sua grande maioria.
– Nunca existiu um clamor popular. A gente tinha detectado que era o resultado de robôs e de perfis específicos desses grupos. A sociedade não está mobilizada. Há comentários nas redes sociais, mas não é a maioria da população. Os setores progressistas da sociedade levantam uma voz mais forte a favor dessas questões.
Para ele, a comprovação de que os protestos não contam com apoio popular se deu com o resultado da campanha de financiamento para a reabertura da Queermuseu no Rio de Janeiro.
– Tivemos a campanha mais bem-sucedida de financiamento. As filas astronômicas permaneceram por um mês.
"Os espaços públicos talvez não sejam os lugares para isso"
Para o cientista político e doutor em Ciências Sociais Marcos Paulo dos Reis Quadros, as reações contrárias à exposição estão baseadas em fundamentos de ordem moral e cultural, além de uma consciência política e visão de mundo de dois grupos distintos. Quadros diz que os episódios recentes no país têm uma relação “tardiamente” com a “guerra de valores” ou “guerra cultural” dos Estados Unidos e de outros países.
– Temos por um lado um grupo cosmopolita, de valores progressistas e desvinculados de uma tradição antiga. Outro grupo procura uma reconquista de uma identidade perdida ou sob ameaça, em busca raízes e de fundamentos religiosos. Esses grupos vão potencializar inclusive eleitoralmente.
O cientista político pondera que a exposição caxiense poderia ter respeitado o ambiente comunitário em que está inserida. Ele ressalta ainda que os espaços públicos não são lugares para esse tipo de manifestação.
– Talvez a proposta mais sadia e moderada fosse o bom senso e levar em conta o lugar em que está inserida. Os espaços públicos talvez não sejam os lugares para isso.
Na opinião de Quadros, a arte tem o papel de questionar, mas, quando é muito politizada, perde a essência e se torna um instrumento político e deslegitima o campo da arte.
Sobre arte e censura
Frei Celso Bordingnon, auxiliar de pesquisa da exposição Santificados, que é diretor do Museu dos Frades Menores Capuchinhos do RS em Caxias do Sul e doutor em Arqueologia Cristão, escreveu artigo sobre a polêmica em torno da exposição, que foi compartilhado nas redes sociais. Confira a íntegra.
"A cultura e o conhecimento, infelizmente, nos dias de hoje, não fazem parte dos interesses da maioria das pessoas. Noventa por cento da população não frequenta museus, galerias e exposições de arte. O Ensino Fundamental e Médio não privilegia o ensino da Arte nas escolas. Temos aqui um problema de base na formação humana do cidadão. Quando uma exposição de arte acontece num determinado espaço cultural público, o objetivo é oferecer às pessoas o acesso à beleza, ao prazer estético, reflexão e ao conhecimento. Eu me pergunto: qual o motivo para proibir o acesso ou censurar uma exposição de arte? E por que até quem não visitou uma determinada exposição se sente no direito de estigmatizar, repetindo frases feitas e cheias de preconceitos elaboradas por terceiros? Por que você não vai ver a exposição antes de emitir e desmerecer o trabalho de um artista? Pergunto ainda: quantos livros sobre arte você já leu? Quantas exposições de arte já visitou?
A nudez na televisão, na propaganda e em tantos meios de comunicação é aceitável, mas nudez numa galeria de arte ou em espaços culturais não pode, pois é imoral e obscena.
Fere os bons costumes e destrói a família. Me poupem. Obsceno e imoral é a fome e a falta de atendimento dos pobres nos postos de saúde. Imoral é crianças se prostituindo pelas ruas para terem o que comer. Antes de censurar uma exposição de arte em nome da falsa moral, seria melhor e mais digno de um “ser humano” olhar ao seu redor e ver a realidade social que o rodeia. Ah, as lideranças políticas o que fazem para amenizar o sofrimento das pessoas menos favorecidas? Por que não concretizam a sua fé em Deus, o qual tanto invocam, amando e tendo compaixão pelo seu próximo. Amém."
TERMÔMETRO
A partir das ênfases e ressalvas colocadas pelos vereadores em suas manifestações sobre a exposição Santificados, na sessão de quarta-feira da Câmara e ao jornal Pioneiro, a reportagem agrupou a posição dos vereadores sob os três “guarda-chuvas” abaixo:
A favor: Alberto Meneguzzi (PSB), Denise Pessôa (PT), Gustavo Toigo (PDT), Paulo Périco (MDB), Rafael Bueno (PDT), Rodrigo Beltrão (PT) e Felipe Gremelmaier (MDB).
A favor, mas...: Adiló Didomenico (PTB), Alceu Thomé (PTB), Edi Carlos (PSB), Paula Ioris (PSDB), Velocino Uez (PDT) e Wagner Petrini (PSB).
Contra: Arlindo Bandeira (PP), Chico Guerra (PRB), Edson da Rosa (MDB), Kiko Girardi (PSD), Neri, o Carteiro (Solidariedade), Renato Nunes (PR), Ricardo Daneluz (PDT) e Gladis Frizzo (MDB).
* O jornal não conseguiu respostas dos vereadores Flavio Cassina (PTB) e Renato Oliveira (PCdoB), nem eles se manifestaram sobre o assunto na sessão de quarta-feira.