Especialista em Jornalismo Ambiental, André Trigueiro tornou-se referência quando o assunto é cidades e sustentabilidade. Jornalista da Rede Globo, é editor-chefe do Cidades e Soluções, programa que mostra iniciativas de desenvolvimento sustentável para o planeta, incentivando a população a praticar normas de proteção e consumo consciente.
Nesta entrevista, o também professor de Jornalismo Ambiental da PUC do Rio, escritor e comentarista da CBN fala sobre cidades mais humanas: o que elas devem ter e como devem ser. André também dá exemplos de cidades que conseguiram se tornar mais humanas e outras que caminham nesse sentido, além de dicas na hora de escolher representantes, não apenas na eleição deste ano.
Ouça a entrevista:
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Pioneiro: O que é uma cidade mais humana?
André Trigueiro: É aquela que assegura mobilidade inteligente, a capacidade das pessoas se deslocarem sem a imposição da rotina de grandes sacrifícios exaustivos, de perder horas do dia, todo os dias, indo ou voltando de algum lugar. É uma cidade que tem políticas assertivas para exclusão da miséria e da pobreza, de inserção social. É uma cidade que leva muito a sério a orientação de um estudo das Nações Unidas de que teremos muito mais saúde e bem-estar com uma proporção de áreas verdes equivalente a 12 metros quadrados por habitante. É uma cidade que tem um planejamento urbano através do plano diretor e da lei orgânica, que são as ferramentas legais para você ter uma rota de planejamento que seja seguro, bem calibrado, fazendo, portanto, um amplo diagnóstico de como a cidade deve crescer, de que maneira deve fazê-lo, considerando diferentes interesses, harmonizando os conflitos e tendo o bom senso como norte magnético da bússola, ouvindo os especialistas, reconhecendo o mérito das experiências bem sucedidas de outras cidades do mesmo porte e não repetindo os erros das cidades também do mesmo porte que se equivocaram ao lançar mão de certas medidas. Então, grosso modo, a gente está falando da capacidade de você também estancar a especulação imobiliária, que é um câncer, uma ameaça terrível nas cidades que têm atratividade, pujança, um dinamismo, que começa a se valorizar por alguma razão, o metro quadrado dessa cidade se torna mais valioso e aí você começa a ter a indústria da especulação que conspira contra qualquer planejamento. Diria, portanto, que é uma cidade que tem responsabilidade, eficiência e consciência na hora de se planejar e de executar o que for planejado.
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De modo geral, as cidades brasileiras são humanas?
O Brasil é muito desigual e a gente tem mais de 5,5 mil municípios. É difícil ter uma resposta que caiba para todas as experiências. Nós temos, majoritariamente no Brasil, as cidades de pequeno porte e essas cidades pequenas, invariavelmente, são pobres e inadimplentes. Elas não se capacitam sequer para obter empréstimo, porque estão na condição de devedoras e a capacidade de planejamento dessas cidades é muito ruim, a gestão pública é muito deficiente. As cidades de médio porte e de grande porte têm problemas que já conhecemos. A transparência é uma dificuldade, os interesses dos governantes se sobrepõem aos interesses coletivos, não há debate, não há a maturidade de você discutir a fundo projetos, buscar uma forma de você checar com a comunidade se aquele projeto, de fato, pode e deve ser executado com os recursos da comunidade. A gente está falando de algo que lembra um pouco uma iniciativa que os gaúchos lançaram mão décadas atrás, do Orçamento Participativo. São Paulo aprovou, através de uma ONG chamada Nossa São Paulo, muito bem estruturada e articulada, uma exigência legal dos governantes prestarem conta daquilo que prometeram em campanha. Ou seja, eles não vão prestar contas quando quiserem, do jeito que quiserem. É uma lei municipal, uma conquista da sociedade. Ajoelhou, tem que rezar. Prometeu, tem que cumprir. E se não conseguiu cumprir, fica exposto a esse rótulo de governante que foi oportunista, que não executou aquilo que se comprometeu fazer. Você tem que escolher os indicadores para medir eficiência e resultado. Curiosamente, tenho visto que São Paulo, que não é uma cidade, é uma megacidade, tem políticas muito assertivas que tentam promover essa humanização. Isso é importante para a gente ter critério para dar resposta. A gente precisa escolher quais são os indicadores que a gente vai utilizar para chamar uma cidade de mais humana. Isso do ponto de vista científico, senão a gente cai no achismo, aquele território da subjetividade. Algumas pesquisas, algumas formas de você medir assertividade de política pública na direção de algo que a gente poderia chamar de cidade mais humana vão na direção do que São Paulo tem feito, por incrível que pareça.
Além de São Paulo, que outros exemplos tu tens de cidades mais humanas?
Dos lugares que a gente já teve o privilégio de conhecer, eu realmente fiquei muito impressionado com a Alemanha. É bom lembrar o que é a Alemanha. A Alemanha é o país mais rico e populoso da Europa, que realizou a proeza de se reerguer depois de um cenário de terra arrasada, duas guerras perdidas, sendo que o cenário pós segunda Guerra Mundial foi devastador. A Alemanha se reergueu e se reergueu adotando como parâmetro políticas muito interessantes e sustentáveis de construção civil, de destinação inteligente dos resíduos, de mobilidade sustentável. Você vai encontrar na experiência alemã muitos elementos inspiradores de uma prática efetiva, sustentável e mensurável de promoção da qualidade de vida no perímetro urbano. Agora, veja como essa questão varia muito. O Rio de Janeiro é a cidade com a maior quantidade de pessoas vivendo em favelas no Brasil em números absolutos. E o Rio tem, a duras penas, tentado reverter esse cenário. Enquanto não é possível remover das encostas que ameaçam deslizar algumas comunidades, você tem políticas implementadas de alertas diante de tempestades, então, você tem alto-falantes, a orientação e treinamento para que as pessoas saiam dos lugares quando se aproxima uma chuva que parece ser forte, quando há o risco de ter uma intempérie climática que ameaça aquelas pessoas. Existem abrigos, existem lideranças comunitárias treinadas para fazer essa remoção. É óbvio que o ideal seria que elas não morassem lá. Mas a gente está falando de milhares de pessoas. Não há, por vezes, tempo hábil. Não é nem uma questão de recursos, é como você promove isso de uma forma que seja justa e consistente. Então, enquanto isso não é possível, diria que é uma política humanitária. Você não vai deixar aquelas pessoas abandonadas à própria sorte, você vai tentar estabelecer rotinas de proteção e segurança.
Em outubro, a população vai às urnas para escolher prefeitos e vereadores. No que os eleitores devem estar atentos na hora de eleger seus representantes?
É tanta coisa... a gente tem uma crise de representatividade terrível. A perda de prestígio e credibilidade da classe política alcançou níveis sem precedentes. Nós temos, portanto, uma nova cultura política que precisa emergir, mas grosso modo, eu diria: em primeiro lugar, que haja decência no uso do recurso público. Fazer política no Brasil virou sinônimo para muita gente de enriquecimento rápido e ilícito. Eu, sinceramente, entendo que há salários muito elevados, regalias descabidas. Deveria haver, em primeiro lugar, uma auto-regulamentação forte, para que essa representatividade tenha idoneidade. Segundo lugar, que eles se qualifiquem para a gestão, porque não é fácil, há um aprendizado importante para você fazer enquanto vereador ou prefeito cumprir a sua missão. Particularmente, na área do planejamento urbano, nós temos no Brasil o câncer do analfabetismo ambiental. Desde agosto de 2014, há uma lei federal que é a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, que estabelece a erradicação dos lixões. É um absurdo as cidades brasileiras ainda terem lixões, entretanto, em números absolutos, a maior parte dos municípios tem vazadouros clandestinos a céu aberto. É um absurdo completo, é uma bomba-relógio ambiental. E isso é tolerado, isso foi, em certa medida, normatizado, alega-se falta de recursos. Eu já fiz reportagem mostrando, por exemplo, no Rio Grande do Sul consórcios intermunicipais de resíduo. Você tem municípios pobres que não têm dinheiro para fazer aterros sanitários, mas que juntos, dentro de uma área mais ou menos próxima, conseguem unir forças para viabilizar outras rotinas de coleta, transporte e destinação final de lixo. Uma outra questão importante é esse deslumbramento que precisa ser quebrado com o transporte individual. Quando você fala de uma cidade mais humana, eu estou falando da cidade onde as pessoas não precisem de automóvel para se deslocar, essa já é uma regra em boa parte das cidades do mundo, especialmente no hemisfério norte, onde já se percebeu o colapso na mobilidade urbana pela multiplicação indiscriminada de carros. Por último, mas não menos importante, a gente precisa estar atento para o problema dos lobbies em favor dos setores mais poderosos, certos setores da economia que se apressam em adotar vereadores ou prefeitos. O lobby da construção civil é terrível, o lobby do lixo, empresas que oferecem serviço de transporte de destinação final do resíduo, é terrível, é uma máfia em boa parte do Brasil. É preciso, portanto, ter transparência. A sociedade precisa exercer a democracia, fazer uso desse privilégio que é viver num país democrático. A gente não esgota o nosso dever de cidadão votando e ponto. É votar e cobrar. E cobrar mesmo, é botar pressão. Democracia é panela de pressão, é assim que funciona. Se não tem pressão, o governante fica muito livre, leve e solto para prejuízo de todos.