O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entregue na quarta-feira à presidente Dilma Rousseff (PT), confirmando 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no Brasil, revela nomes de envolvidos que tiveram relação com Caxias do Sul e região. Os relatos e ações envolvem personagens com atuação ou apenas passagem pela região. O documento tem três volumes e mais de 3 mil páginas no total.
O documento relaciona 377 agentes públicos por violações contra os Direitos Humanos, e inclui os nomes de pelo menos 22 pessoas reconhecidamente ligadas ao Rio Grande do Sul. Entre esses nomes, consta o do ex-presidente da República Ernesto Geisel, natural de Bento Gonçalves.
Também está na lista o nome do coronel do Exército Paulo Malhães, responsável por tortura, mortes e ocultação de cadáveres, que esteve em Caxias em 1970 para interrogar e torturar militantes contrários ao regime.
Conforme relatos, onde atualmente funciona a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, na esquina das ruas Marquês do Herval e Pinheiro Machado, Malhães aplicava choque elétrico, com as janelas abertas, sem se intimidar com as pessoas que passavam pela rua. O Rio Grande do Sul ostenta o triste título de Estado campeão em locais onde houve violação de direitos humanos - 39 endereços.
Militantes de organizações de esquerda, que participaram de ações contra a ditadura e tiveram ligação com Caxias ou a Serra, também são listados.
Em dezembro de 2013, quatro caxienses deram depoimentos ao presidente da Comissão Estadual da Verdade, na Câmara de Vereadores de Caxias, para integrar o relatório final da CNV. As declarações foram prestadas por José Rubens Pedroso (preso e torturado nos anos 1970), Luiz Pizzetti (ex-vereador caxiense preso em 1964), Maeth Boff (preso e torturado no Chile) e Ricardo Segalla (filho do ex-vereador Bruno Segalla, que à época do golpe militar presidia o Sindicato dos Metalúrgicos). Não há confirmação de mortos e desaparecidos da cidade.
Ligações com Caxias e a Serra gaúcha
Mortos e desaparecidos políticos na lista da CNV
:: Edmur Péricles Camargo refugiou-se em Caxias no início de abril de 1970. Ele ficou no "aparelho" mantido pela organização de esquerda Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) na esquina das ruas Dr. Montaury e Vinte de Setembro. Ele havia participado do assalto ao Banco do Brasil de Viamão, em março daquele ano.
:: Gustavo Buarque Schiller, o Bicho, esteve em Caxias em dezembro de 1969 com Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, primeiro marido da presidente Dilma Rousseff, um dos coordenadores da VAR-Palmares no Estado. Fizeram contato com Paulo de Tarso Carneiro, coordenador da VAR na região.
:: Luiz Eurico Tejera Lisbôa, natural de Santa Catarina, desapareceu em setembro de 1972. Suas atividades políticas chamaram a atenção do regime militar já em 1964, quando, aos 15 anos, escreveu um manifesto contra a ditadura e o distribuiu em Caxias, onde morava. A esposa, Suzana Lisbôa, afirmou ter visto o marido pela última vez em julho de 1972, em Porto Alegre. .
Violência sexual
:: Izabel Dedavid Fávero, em depoimento à CNV, em 27 de abril de 2013, conta que, grávida de dois meses, foi torturada, entrando em processo de aborto. Era militante estudantil em Caxias ao lado do então namorado e depois marido, Luiz Andrea Fávero, que presidia a União Caxiense de Estudantes Secundaristas. Ingressaram em 1969 na VAR-Palmares. O casal se mudou para Nova Aurora (PR). Foram presos em 5 de maio de 1970, mesmo dia em que Izabel soube que estava grávida. Atualmente, ela mora em Pernambuco. Ele morreu em 2011.
:: Consta no depoimento: "Sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mau cheiro, eu estava suja, e eu acho que, eu acho não, eu tenho quase certeza que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque eles tinham nojo de mim. Eu certamente abortei por conta dos choques que eu tive nos primeiros dias, nos órgãos genitais, nos seios, ponta dos dedos, atrás das orelhas..."
Responsabilizados por violações
:: Ernesto Beckmann Geisel (1907-1996): nascido em Bento Gonçalves, foi general de Exército e presidente da República de 15 de março de 1974 a 15 de março de 1979.
:: Paulo Malhães (1938-2014): coronel que serviu no centro de informações do Exército com intensa participação em atividades de repressão em estados como RJ e RS. Em Caxias, na Delegacia de Polícia localizada na esquina das ruas Marquês do Herval e Pinheiro Machado, aplicava choque elétrico com a maricota, telefone de campanha empregado para dar choques nas orelhas, mãos e pés. A prática de tortura era feita com janelas abertas.
Presos ouvidos pela CNV
:: Paulo de Tarso Carneiro: era funcionário do Banco do Brasil de Garibaldi, onde morava, e coordenador da VAR-Palmares na região. Em seu nome, estava locado um apartamento (aparelho) em Caxias que servia de esconderijo para militantes clandestinos. Foi preso em Garibaldi em 6 de abril de 1970 e levado para Porto Alegre. Foi companheiro de prisão de Gustavo Schiller. Deu depoimento à CNV falando sobre a tortura praticada por Paulo Malhães.
:: Maeth Boff: era o fiador (avalista) do aparelho em Caxias. Participou da expropriação do Banco do Brasil de Viamão. Fugiu para o Chile, onde foi preso, em 1973.
:: Luiz Pizzetti: foi preso em abril de 1964, permanecendo 36 dias em Porto Alegre. Era membro do Sindicato da Alimentação, comunista, integrante da Aliança Republicana Socialista (ARS) e suplente de vereador. Foi cassado.
:: José Rubens Pedroso: ingressou na VAR-Palmares em 1968. Considerado subversivo, foi preso e levado para o Dops em Porto Alegre, onde foi vítima de instrumentos de tortura como a maricota e o papalégua (pedaço de madeira preso a uma tira de borracha de pneu que servia para ferir as costas dos presos).
:: Bruno Segalla (o depoimento foi prestado pelo filho Ricardo Segalla): era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos e suplente de deputado estadual pela ARS. Bruno foi preso em 1964 e 1975 por atuar na reorganização do PCB em Caxias. Foi cassado.