Tiros, gritos, barulho de madeira queimando, cheiro de fumaça e o desespero de imaginar que o fogo pode se alastrar e destruir com o esforço de uma vida inteira. Assim vivem algumas famílias em bairros de Caxias do Sul, em meio à violência e sem condições de se mudarem para longe de zonas dominadas pelo tráfico de drogas e da constante disputa por territórios, acertos de contas ou demonstração de força de grupos rivais. Essas pessoas revivem as noites de terror e lembram com medo do momento em que integrantes de facções criminosas invadiram moradias, que funcionavam como pontos de venda de drogas, cometeram assassinatos ou colocaram fogo nas casas.
De acordo com dados da Brigada Militar (BM), 16 ocorrências de incêndios intencionais foram registradas em 2021. No ano passado, o número aumentou para 20 e já foi registrada uma ocorrência este ano. Nas ruas ou nos becos que foram palcos dessas ocorrências impera a lei do silêncio. Quando a reportagem percorreu alguns bairros da cidade, os olhares eram de curiosidade, mas a apreensão era perceptível em muitos moradores. Outros fingiam não estar em casa ou espiavam discretamente pelas janelas. Quem perdeu a casa, também não quer falar:
— Foi horrível, eu só quero esquecer. Perdi tudo — contou uma pessoa, que teve a vida marcada pela guerra entre grupos rivais.
Os crimes são ordenados, geralmente, pelos líderes dos grupos criminosos, que estão dentro dos presídios ou foragidos. Para o historiador com especialização em Sociologia na área da Segurança Pública e professor da Universidade Feevale, Charles Kieling, este é um problema que está longe de ser solucionado. Ele afirma que o Estado e o município não interagem adequadamente com comunidades em situação de vulnerabilidade social, não desenvolvem políticas públicas e enfrentam a falta de recursos em diversos sentidos: financeiro, humano, de tecnologia e de conhecimento para interceder em tais realidades.
— De outra parte, pelos órgãos de segurança pública, a situação também é complexa e de difícil solução. As forças de segurança não são detentoras de conhecimentos para finalidades de intervenção sociais, e sim para situações de conflitualidade e uso progressivo da força. Uma possibilidade para iniciar uma mudança teria de surgir no âmbito federal, criando um órgão “híbrido” (que integrasse algumas questões de polícia, de assistência social, de inteligência e de justiça) com poder de polícia e de justiça, para promover uma atuação específica contra as facções e milícias em todo o território nacional.
Casa foi incendiada pouco mais de um ano depois de ser palco de assassinato
A Rua Francisco Alves, no bairro Rio Branco, parece tranquila, como tantas outras de Caxias do Sul. Ela não costuma figurar no meio policial. Só que essa tranqüilidade é apenas aparente: em um terreno amplo há duas casas que carregam a marca da criminalidade. A moradia da frente está sem janelas e as madeiras estão sendo retiradas para que a estrutura seja desmanchada. A casa de trás foi incendiada intencionalmente no final da tarde de 4 de janeiro de 2023.
Esse não foi o primeiro crime que aconteceu naquele endereço. Antes disso, na frente de casa, Arlei Tiezer Rodrigues de Rodrigues, 37 anos, foi assassinado a tiros em 25 de novembro de 2021. O homicídio aconteceu no fim da tarde, quando muitas pessoas circulavam pela rua. Depois da execução, um dos autores do crime atirou para o alto, a arma não disparou, mas ele deixou ela cair no chão e disparou mais duas vezes, o que causou ainda mais pânico entre os moradores.
— Escutamos os tiros e vimos o guri morrer na rua. Ele foi morto no começo da noite. A casa ficou vazia e esse ano, no começo de janeiro, eu ouvi uns estouros, um barulho forte e aí veio um cheiro de borracha queimada. Colocaram fogo na casa e saíram correndo. Bateu o desespero pelos moradores. E se morrer um inocente nessa guerra? — diz um morador.
Antes da morte, a presença da Brigada Militar era constante para combater o tráfico na casa. Pessoas que vivem no bairro há anos contam que havia rotas de fuga na casa de trás e, quando os policiais chegavam, os traficantes fugiam ou ficavam escondidos no telhado.
— A polícia fechava o ponto e em uma hora eles reabriam e voltavam a vender. Somos gratos que Brigada Militar estava sempre por aqui. Mas, infelizmente, não resolvia.
Os moradores conviveram anos com o medo, não apenas da rivalidade entre as facções, mas também com receio de serem assaltados ou feridos por quem ia até a casa comprar entorpecentes.
— Tivemos que conviver com o medo de uma bala perdida, de sermos confundidos com um deles na rua, com o pavor de assalto. Tinha medo de tudo porque esses guris de facção geralmente não se importam com a vida deles e nem com a de outras pessoas.
Outro morador do bairro complementa:
— À noite, não podíamos sair na rua porque os usuários assaltavam para comprar drogas. Graças a Deus acabou, mas eu não sei até quando, porque essas coisas nunca acabam.
Depois da morte, as casas ficaram vazias. Foi um momento de alívio e esperança para quem vive por perto. Até que veio o incêndio criminoso:
— Toda a vizinhança sempre teve medo porque eram brigas de madrugada, gente no meio da rua gritando, carros acelerando e com músicas altas e, às vezes, tiros dados no meio da noite. A gente tinha que se manter dentro de casa e nem olhar para eles não fazerem nada com a gente. Espero que isso nunca mais ocorra porque é difícil viver aqui.
Tiros e casa incendiada durante a madrugada
Na madrugada de 5 de dezembro de 2022, uma família estava em casa quando homens armados invadiram a residência em um dos becos do bairro Jardelino Ramos. De acordo com a Polícia Civil, o ponto era ocupado anteriormente para a venda de entorpecentes. A família alugou a casa de dois andares onde moravam 11 pessoas, inclusive crianças. Os homens chegaram e se identificaram como integrantes de uma facção. Eles dispararam, mas não atingiram nenhum dos moradores.
O fogo começou por volta da 1h na moradia. Conforme informações dos Bombeiros, a equipe foi acionada por uma das moradoras e, quando chegou ao local, as chamas já haviam destruído a casa inteira. Para impedir que as chamas se alastrassem, foram necessários dois caminhões e sete bombeiros. Esses momentos de tensão e medo estão na memória dos moradores. Alguns falam baixinho sobre o sentimento de impotência ao ver uma família perder tudo e sobre o medo das chamas atingirem outras moradias. Mas logo silenciam:
— Eu não vi nada, não sei quem colocou fogo. Dá medo de o incêndio pegar nas outras coisas, mas não sei de nada.
Outra pessoa relata:
— Todo mundo sabia que era uma biqueira (boca de fumo) antes daquela família vir morar ali. Podia ter acontecido uma tragédia.
O que sobrou da casa ainda segue lá, como um recado aos moradores, que escolhem o silêncio para sobreviver em meio aos crimes.
— É triste viver assim — lamenta outra pessoa do bairro.
Execução no dia do aniversário e casa de lanches incendiada
Allisson Eduardo de Brito dos Santos, estava comemorando o aniversário de 28 anos com familiares quando foi executado a tiros. A mãe e o irmão testemunharam o assassinato. Eles estavam bebendo em frente a uma casa de lanches quando ao menos três homens armados chegaram atirando. Santos tentou fugir, mas foi alvejado com ao menos 16 tiros.
O crime ocorreu no início da madrugada de 13 de maio do ano passado, na Avenida Antônio Andriguetti, próximo à Unidade Básica de Saúde (UBS) do Vila Ipê. Depois de matar o jovem, os homens foram até a casa de lanches onde ele estava com a família. A proprietária ouviu os tiros e, segundo a polícia, se escondeu embaixo de uma mesa. Era lá que ela estava enquanto os homens espalharam combustível e atearam fogo na moradia.
No mesmo terreno, havia quatro casa de madeiras, que também foram consumidas. Os sinais do fogo ainda estão presentes no local, que está aparentemente vazio. Moradores do bairro falam do eco dos tiros, dos gritos da mãe de Santos e do irmão e de ver o jovem cair morto, no meio da rua. Nos olhos de alguns se percebe o pânico:
— Os vizinhos correram com baldes de água para evitar que alguém mais perdesse a vida ou se machucasse. Senti medo de perder tudo, mas aí penso naquela mãe que perdeu um filho. Ele não tinha nada a ver com essas facções — relata uma pessoa, que vive há anos nas redondezas de onde ocorreu o crime.
Outra pessoa relata que as ruas do entorno são marcadas por confusões:
— Nas ruas aqui perto é bagunça direto. Escutamos gritos e tiros. No dia em que mataram o guri, vim ver o que estava acontecendo e sei que eles mataram o Alisson por engano. Foi um horror ouvir todos aqueles tiros e ver o guri morto no meio da rua.
Outra pessoa lembra que estava dormindo:
— Acordei com o barulho dos tiros, levantei correndo e vi as casas pegando fogo. Não sei quem matou o guri e nem quem colocou fogo, só sei que senti muito medo. A gente se assusta. O que tinha na casa queimou tudo, é algo que marca a gente.
Dois caminhões do 5º Batalhão de Bombeiro Militar foram acionados para controlar o fogo. Eles precisaram do apoio de um caminhão do Samae para o abastecimento da água. Foram usados 30 mil litros de água. Ainda conforme relato de populares, logo depois, na Rua dos Quero-Queros, os bandidos efetuaram disparos de arma de fogo e tentaram atear fogo em um automóvel Celta.
Guerra de facções
Para o historiador Charles Kieling, a prática de atear fogo tem se tornado comum pelos membros de facções porque são projetadas três situações:
- Promover o extermínio de vestígios, dificultando o trabalho dos órgãos de segurança na investigação.
- Estabelecer uma demonstração de “força” frente aos rivais e medo nas comunidades em situação de vulnerabilidade social, amedrontando e instigando ameaças de atear fogo na moradia de quem os enfrentar.
- Promover uma “migração” forçada dos “consumidores e clientes” daquele ponto da facção rival para o local em que a outra facção considerar mais apropriado.
O especialista afirma que essa prática foi “importada” no Rio Grande do Sul de outras facções, como do Comando Vermelho, do Rio de Janeiro . Ele aponta que o procedimento é adotado tanto pelos Bala na Cara, quanto pelos Manos, mas que os Manos fazem isso em menor escala:
— Além da prática de atear fogo em carros utilizados para ações criminosas ou com vítimas, eles fazem isso com as moradias e em locais utilizados por facções rivais, reforçando a visibilidade e as narrativas nas comunidades. É um recado aos moradores de que sofrerão consequências por não contribuir com informações para a facção. Tais moradores, por habitarem áreas onde há ausência das forças de segurança, ficam condicionados a atender as demandas das facções. São reféns de uma organização social e política, que é estabelecida pela facção.