Apenas sete dos 65 municípios do Nordeste Gaúcho terminaram a última década sem nenhum assassinato: Alto Feliz, André da Rocha, Dois Lajeados, Guabiju, Montauri, Santa Tereza e São Pedro da Serra.
São cidades com menos de 4 mil habitantes que não estão acostumadas com qualquer tipo de violência — tanto que um furto ou depredação geram comoção e cobranças à polícia e até às prefeituras. Essa rotina tranquila é mantida com hábitos de boa convivência do interior: como conhecer seus vizinhos, manter a cidade limpa e estar atento a qualquer movimentação suspeita, que logo é denunciada às autoridades.
A conversa com os moradores mostra que estas cidades pequenas fazem naturalmente o que era estimulado pelo programa de Policiamento Comunitário da Brigada Militar (BM), que teve projeto-piloto em Caxias do Sul em 2012, mas perdeu força diante da diminuição do efetivo e teve o fim dos convênios em 2019. A filosofia aproxima policiais da sua área de atuação, estimula a vivenciar e conversar com os moradores e a conhecer os problemas da localidade. Uma integração com a comunidade, que naturalmente elimina as causas da violência.
Por razões óbvias, o baixo número de habitantes destas sete cidade ajuda neste processo. A população conhece cada morador, sua família e seu carro. Naturalmente, cada cidadão conhece a rotina dos vizinhos e da cidade. Da mesma forma, conhecem os policiais e o prefeito, avisando rapidamente quando algo diferente e suspeito acontece.
Os 65 municípios da pesquisa foram escolhidos por comporem a área de cobertura do Jornal Pioneiro, que tem por base a Serra. O levantamento foi feito com os dados de indicadores criminais divulgados pela Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP) entre 2011 e junho de 2021.
A cidade de zero violência
Fundada às margens do rio Taquari, Santa Tereza mantém a arquitetura característica da imigração italiana. Com diversos prédios tombados e placas que apresentam a sua história, o município atrai turistas nos finais de semana. Mesmo acostumada com visitantes e bastante receptiva, a comunidade é atenta.
— É o sonho morar aqui. Fiquei alguns anos fora, para estudar, mas não via a hora de voltar. Além de ser bonita, é uma cidade tranquila e a gente conhece todo mundo, inclusive as fofocas de todo mundo — brinca João Carlos, 55 anos, dono do posto de gasolina da cidade de 1,7 mil habitantes, conforme a última estimativa do IBGE.
Mesmo dizendo que não tem receio de ser assaltado, afinal o último em Santa Tereza aconteceu em 2016, quando uma quadrilha atacou o Banrisul da cidade, o empresário confirma que sempre repara em automóveis "estranhos".
— Não tenho medo. Temos os telefones dos guris (policiais militares), se precisar. Já tirei eles de casa algumas vezes. Como conhecemos todos os veículos daqui, quando vemos algo diferente já anotamos as placas e repassamos para eles. Eles também nos avisam quando há algo diferente para ficarmos de olho. Conseguimos ter esta comunicação fácil com os policiais — comemora.
Os registros da SSP apontam que o único crime em Santa Tereza neste ano foi um estelionato, crime que, em geral, acontece por telefone ou internet. Em todo o ano passado, foi apenas um furto registrado. Em 2019, todos os 11 indicadores criminais monitorados pelo governo do Estado ficaram zerados.
Como os crimes são raros, os policiais militares admitem que qualquer delito causa uma comoção e, naturalmente, os brigadianos se sentem pressionados a manter os índices zerados.
— É diferente (de outras cidades). Se acontecer um furto que seja, eles chamam a BM e querem providências maiores. Para eles, um furto é algo que ofende muito. E, realmente, têm razão. Qualquer coisa que é tirada da gente nos faz falta. Em cidades maiores, a demanda é diferente, precisa esta atenção para crimes mais graves. Aqui, o pequeno (crime) também se dá valor — comenta o soldado Pereira, que trabalha há quatro anos no município.
A rotina pacata de uma cidade de zero violência altera o patrulhamento policial. Como a delegacia mais próxima fica em Monte Belo do Sul, a cerca de 22 minutos de carro, os policiais militares acabam por atender pessoalmente qualquer ocorrência. As barreiras são feitas na RS-444, com objetivo de verificar os veículos que utilizam a rodovia de acesso ao município. Por conhecer todos os moradores, os PMs acabam por abordar e conversar com qualquer visitante "sem rumo".
— A comunidade nos ajuda muito neste sentido. Eles nos repassam informações de pessoas de fora, que não parecem ser turistas. Dentro da técnica e sem excesso, abordamos e identificamos esta pessoa, conversamos e, se é constatado que não tem nenhuma pendência, a pessoa é liberada — relata o brigadiano.
Este cuidado de conhecer as pessoas é reforçado na época da colheita da uva, quando o município recebe dezenas de trabalhadores temporários. A orientação é que os agricultores convidem os PMs para conversarem com quem chega.
— (Quando contratam) as famílias não se informam sobre quem são estas pessoas que estão vindo trabalhar. Orientamos a nos procurarem, para fazermos este apoio e ver quem é esta pessoa. Na maioria das vezes, essa pessoa não faz nada contra a família neste período de trabalho. Mas, se é mal intencionado, ele já tem todas as informações da rotina da casa e da família e, um tempo depois, pode vir alguém fazer algo ruim. Este período de colheita da uva é o que costuma dar mais problemas — aponta o soldado.
"Cai direto na mesa da prefeita"
Um assalto no Centro Comunitário de São Pedro da Serra foi o suficiente para a população exigir mudanças. Na ocasião, em 2019, três bandidos armados fizeram de reféns diversas famílias que participavam de um jogo de bolão. As reclamações foram direcionada à prefeitura, que precisou tomar providências:
— Ficaram todos muito assustados. O que se pensava é que "agora acabou a paz na nossa cidade". Quando anunciamos o videomonitoramento, foi a resposta que todos esperavam. Temos câmeras nas entradas da cidade e em pontos estratégicos do Centro e do interior. Qualquer coisa que acontece, a polícia sabe logo quem estava na cidade — aponta a prefeita Isabel Cornelius.
— É que quando algo acontece, cai direto na mesa da prefeita. Aqui, as pessoas tem contato muito direto. É no mano a mano. Em todas as questões, seja vacina ou aulas, o acesso é muito fácil. Todos ligam ou mandam mensagens para a prefeita. Tem dias que tem quase 100 ligações. A gente conversa com todo mundo — reforça o vice-prefeito Luiz Augusto Hartmann.
O município de colonização alemã é o mais populoso desta lista de cidades sem assassinatos, com 3,8 mil habitantes. O acesso pela BR-470 facilita o acesso de ladrões e até traficantes vindos de outras cidades. Cabe a união da comunidade afastar estes problemas, que são tradicionais em grandes centros.
— Queríamos puxar para o nosso lado, dizer que é responsabilidade das forças de segurança, mas é a cultura do povo. É um povo mais pacífico. As contendas são aquelas antigas ainda, de vizinho, de terra. A postura do povo é diferenciada. Venho de Porto Alegre e trabalhei em outras regiões do interior, mas aqui o pessoal é bem mais polido no trato — referencia o delegado Paulo Ricardo Costa, que é responsável pelas investigações em São Pedro da Serra, Salvador do Sul e Barão.
O representante da Polícia Civil destaca que esta proximidade da comunidade com a administração municipal é um diferencial para os baixos números de violência. Para além das câmeras, todos de São Pedro da Serra são comprometidos em manter o ambiente agradável, incluindo o carinho com as praças e as escolas. É um exemplo herdado nas famílias.
— Já aconteceu de fatos (delituosos) em que (não foi encontrado o suspeito e) só deixamos um recado. Por incrível que possa parecer, esta pessoa restituiu o bem (furtado) e depois compareceu na delegacia, conforme havia sido informalmente conversado com um familiar. Só a nossa presença (policial) e este recado foi suficiente para tudo se resolver — relata o delegado Costa.
Assim como em outros municípios semelhantes, São Pedro da Serra também é uma comunidade em que todos se conhecem e ficam atentos para movimentações estranhas. Isso contribui para os reconhecimentos de suspeitos caso um crime aconteça. Se foi alguém da cidade, todos sabem. Se é alguém de fora, por vezes o suspeito ou seu carro foi visto por mais de um morador na ocasião, o que facilita o trabalho policial.
— Precisamos trabalhar muito mais para dar esta resposta que a cidade pensa ou julga ser necessário. Para quem é de outro lugares, há esta tendência de achar que certa normalidade em uma conduta delituosa, mas para aquela cidade pequena é um absurdo. O que numa cidade grande iria para uma pilha, nestas cidades somos alvos de muitas cobranças — ressalta o delegado de São Pedro da Serra.
Sem crimes, mas reivindicando mais PMs
Mesmo com uma média de oito furtos e menos de um roubo por ano, a comunidade de Alto Feliz quer mais policiais militares. A reclamação, liderada pela prefeitura e Câmara de Vereadores, é que os cinco brigadianos lotados fazem parte do revezamento de um patrulha da região, o que diminui sua permanência na cidade.
Esta característica de, mesmo com poucos crimes, sempre estar buscando melhorias na segurança pública, é uma semelhança nas sete cidades da região sem assassinatos na última década. No município de 3 mil habitantes de origem alemã, a reivindicação é liderada pelo sargento Sérgio Ricardo dos Santos, que se aposentou após 20 anos de serviço à BM e foi eleito vereador na última eleição.
— Hoje, são cinco policiais que não estão diretamente aqui, porque a cidade de Feliz (sede da companhia da BM) não tem policiais suficientes para fechar a escala. A solução foi criar esta patrulha para fazer quatro municípios: Alto Feliz, Vale Real, Linha Nova e São Vendelino. É uma distância de 46 quilômetros para o policial cobrir. Teoricamente, temos cinco PMs, mas na prática eles ficam circulando na região — reivindica o vereador, que reuniu parlamentares das cidades vizinhas para pressionar o governo do Estado por reforço do efetivo policial no Vale da Felicidade.
Sobre sua carreira policial em Alto Feliz, iniciada em 1999, o sargento Ricardo destaca que o policiamento de uma cidade pequena é diferente e requer muito mais essa conversa constante. Naquela época, a estratégia já era conhecer a todos para prevenir movimentações de meliantes.
— Tínhamos uma pessoa de confiança em cada localidade que nos avisava sobre veículos ou pessoas suspeitas. Essa convivência, até amizade, do policial com os moradores ajuda muito no nosso serviço. O bom do interior é que o policial é multifuncional, serve de conselheiro, apoio psicológico. Muitas vezes, basta uma boa conversa para resolver tudo. No interior, o respeito é maior. Mesmo os mais encrenqueiros respeitam o nosso trabalho — lembra o sargento aposentado.
Esta parceria com policiais e a atenção com a rotina da cidade continua sendo o "segredo" da tranquilidade de Alto Feliz. Só que, hoje, acontece pelo aplicativo WhatsApp. A prefeitura mantém grupos de conversa para cada bairro. Assim, se algo acontecer, em poucos minutos a cidade inteira estará em alerta.
— O pessoal cuida da cidade como se fosse sua casa. Todos se conhecem, então é fácil perceber se uma pessoa estranha ou um carro suspeito aparece. E, ao mesmo tempo, é acionada a Brigada para dar uma verificada. Como não temos tantos policiais como uma cidade grande, este "policiamento" precisa ser feito pelos moradores. Qualquer crime causa clamor — salienta o prefeito Robes Schneider.
Mesmo que não seja preso, esta pessoa mal intencionada entende o recado desta conversa com os brigadianos: naquela cidade, estão de olho nele. Assim, prefere voltar para centros maiores onde será apenas mais um na multidão.