A falta de fiscalização é um problema histórico do regime semiaberto e, inclusive, foi uma das razões para a interdição do Instituto Penal em Caxias do Sul. Conforme a decisão judicial, os apenados respondiam a verificação de presença ao entrar no alojamento, mas conseguiam fugir e retornar livremente. A Vara de Execuções Criminais (VEC) e a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) apontam que o monitoramento 24 horas é uma evolução no cumprimento da pena.
Para verificar que o modelo dá certo, o Pioneiro foi indicado a acompanhar a rotina de uma detenta de 42 anos. Ela foi autorizada a cumprir sua pena em prisão domiciliar para cuidar dos filhos: as meninas gêmeas de três anos e um menino de nove anos.
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Com ajuda de uma irmã, que paga o aluguel, a monitorada e os filhos foram morar em um apartamento no Centro. Assim, a apenada consegue vender chocolates e artesanatos nas principais vias da cidade, dentro do perímetro de 300 metros da tornozeleira.
Condenada a 15 anos e 10 meses de reclusão por tráfico de drogas e posse ilegal de arma de fogo, sendo o último crime em 2011, a apenada já cumpriu cinco anos e três meses de sua pena. No total, ela relata que passou 11 meses no regime fechado.
Pioneiro: Há quanto tempo está com a tornozeleira?
Monitorada: Irá fazer dois anos em janeiro. Em 2014, fui a primeira mulher a utilizar tornozeleira em Caxias do Sul. Eu já estava no regime aberto quando veio mais uma condenação, que foi do mesmo processo, pois eu não reincidi. Foi do mesmo processo. Como tinha as gêmeas para amamentar e mais um guri de nove anos, fui beneficiada com prisão domiciliar mediante a tornozeleira eletrônica.
Chegou a ficar no regime fechado?
Sim. Na verdade, já entrei e saí várias vezes pelo mesmo processo. Recebi provisórias e cheguei a ser condenada já para regime aberto, mas depois sempre tinha recurso. No final, fiquei em fechado juntando as duas condenações. No fechado, fiquei cinco meses e depois outros cinco meses. As duas meninas tinham de ir mamar no presídio e era muito triste. Quando consegui sair (para usar tornozeleira), foi enviada uma assistente social para comprovar que conseguia me manter com meus filhos e ficar só nos 300 metros (em volta da casa, que é o perímetro permitido). Hoje, trabalho com a fabricação e venda de chocolates, de artesanatos e chinelos.
Quais as vantagens da tornozeleira?
É poder ficar e cuidar dos meus filhos. Coloco eles na van para irem à creche. Poder levar a médico e dentista, com autorização prévia da juíza. O monitoramento lá em Porto Alegre tem muita demanda, e às vezes é complicado conseguir a ligação (para autorizar levar um filho) pro médico. Ligo no postinho e agendo, depois ligo para o monitoramento. Tem os dias que podemos pedir autorização, mas se for urgência eles liberam. Quanto à saúde não costuma dar problema, eles liberam.
O que é ruim?
Tem de carregar a cada 12 horas, que é o que dura a carga. Não pode se distrair e esquecer os horários. Tem de se manter atento e não deixar descarregar. Quando acende a luz vermelha (de violação) já é desespero. Qualquer coisa tem de ligar lá e pedir (para a Susepe). Se ficar vermelha é problema, porque vão pensar que é fuga. Não tiramos nunca, tem de tomar banho e fazer tudo com tornozeleira.
Esse controle é rigoroso?
No início foi complicado adaptar, é uma prisão psicológica. Mas depois, comparando com estar lá dentro sem poder cuidar dos filhos e retomar a vida, é tudo. É muito importante para mim a tornozeleira. Presa, eu só recebia visita do meu filho (de nove anos) a cada 15 dias. Já as meninas iam três vezes por dia, pois eu amamentava elas, é um direito. Mas era muito triste. Elas saíam chorando. Todos os servidores também sentiam aquela tristeza. O tempo que fiquei presa atrapalhou muito o meu gurizinho, que se atrapalhou no colégio, perdeu ano, se tornou uma criança fechada e sofreu muito. Ele ficava com a minha filha (de 21 anos) e minha irmã, que ajudava bastante.
É fácil viver com a tornozeleira?
Não é fácil. Tu tem de ter responsabilidade. É melhor para cumprir a pena, mas ainda é uma pena. Tem de carregar e estar sempre com o celular ligado, porque se dá problema, eles entram em contato. Ajuda bastante, mas continua a responsabilidade.
Você já ficou com prisão domiciliar sem tornozeleira?
Sim, tinha de ir duas vezes por semana na VEC assinar o livro-ponto. As responsabilidades e regras eram as mesmas, só que era na confiança. Se soubessem ou encontrassem fora do horário ou da "zona", voltaria para o fechado.
Já conversou com outros apenados sobre a tornozeleira?
Cada pessoa é diferente, né? Onde moro tenho acesso a mais coisas (nos 300 metros permitidos). Mas, dependendo onde mora, fica sem alcançar nada. É complicado. Tem gente que acha bom e tem quem ache uma tortura psicológica. Mas, em geral, entre ficar lá dentro (da cadeia) e aqui fora, preferem a tornozeleira. É uma adaptação rigorosa. Continua sendo uma prisão, está pagando tua pena, tem horários para sair e para voltar e os limites. O benefício é poder acompanhar o crescimento dos filhos. Até no Big Brother, onde é um lugar bom e tu está atrás de um prêmio, tu vê as pessoas chorando de saudade da família. Agora imagina lá (na cadeia), onde é um lugar de tristeza, que tu vê mães se separando, filhos indo embora chorando e gritando.
Como é na rua?
Sempre uso embaixo da calça, nunca mostro. As pessoas que me conhecem, algumas sabem. Tem muitas que pedem para olhar, têm curiosidade, né? Claro que existe algum preconceito, mas é tranquilo. Não me deu problemas. Estou adaptada. Talvez num emprego fixo fosse mais complicado.
Você participa da Justiça Restaurativa?
A Justiça Restaurativa teve uma importância muito grande na minha vida. Tu encontra pessoas iguais, que tiveram as mesmas experiências que você, e os facilitadores, que viram uma família e passam esta tranquilidade para expor o que tu sente. Lá tu aprende muita coisa, como o momento de falar e a ouvir o que outro fala. Se chega lá com algo te incomodando, tu tem o direito de desabafar. Já é o segundo ano que participo, porque me faz muito bem. É para lidar com a situação. Nos orientam e ajudam a reingressar na sociedade. Ajudam a entender os motivos do porquê tu podes não ser bem recebido na sociedade.
Por que entrou para o crime?
Entrei nesse mundo criminoso, o tráfico, por dificuldades financeiras. O meu filho, que hoje tem nove anos, tem uma problema sério de intolerância a lactose e um problema no sangue não podia nem pingar leite na pele dele. Ele precisava de uma alimentação muito cara. Era uma lata de leite que custava quase R$ 400. Eu não tinha condições. Comecei a pedir ajuda e naquele momento foi a opção que achei. Entre não ter condição de alimentar meu filho e arriscar minha liberdade, acabei não pensando e optei (pelo tráfico). A ajuda que encontrei foi essa. Me deram essa ideia e fiz para sustentar meus filhos e pagar o aluguel. Era R$ 1,3 mil por mês (no leite para o filho), eu não via outra opção. Não tinha estudo ou emprego para conseguir nesse valor. Hoje eu penso que deveria ter pedido mais ajuda, batido de porta em porta, mas não ter feito nada que me afastasse dos meus filhos.
Hoje sabes que não vale a pena?
Não vale a pena. Não tem dinheiro, nada que pague a tua liberdade, poder ver seu filho crescer e deitar no travesseiro podendo dormir tranquila.