A mesa posta com café, leite, pão e manteiga. No relógio, 9h. Lá fora, o sol alto. De repente veio uma sensação de clareza, um chamado que ardia no peito, ressoava na cabeça e pedia uma certa urgência de sair às ruas em busca da menina Naiara Soares Gomes, sete anos. Esses detalhes de uma manhã de domingo, três dias antes do corpo da criança ser encontrado e do assassino ser preso, Vanderlice Moreira de Lima, 45 anos, não esquece.
Era dia de folga, mas Sissi, como é mais conhecida, sentia que estava devendo uma resposta para o caso que deixava a cidade inteira mergulhada num triste suspense em torno do paradeiro da criança. Investigadora veterana na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), a mulher chegou a imaginar que jamais haveria solução para o desaparecimento de Naiara. Impulsionada pelo lampejo, enviou uma mensagem para o celular do delegado Caio Márcio Fernandes. Queria saber se ele topava fazer buscas naquela manhã. Uma hora depois, delegado e agente percorriam a zona sul de Caxias num carro discreto da Polícia Civil. A ideia era tentar se colocar no lugar do criminoso que ainda não tinha rosto ou nome. Que caminho teria feito? Para onde teria levado a menina? Vasculhar matos e estradas, mais uma vez, não surtiu efeito.
Leia mais
"A gente não está a favor dele", diz irmã de homem que confessou ter estuprado e matado Naiara
Passagem de autor confesso da morte de Naiara por instituição psiquiátrica é temporária
Laudo aponta que morte de Naiara foi causada por asfixia
Na volta para casa, em vez de seguir pela Júlio Calegari, caminho óbvio para todo motorista que deixa a zona sul para se deslocar ao centro da cidade, os dois policiais entraram numa rua pequena, com cerca de 200 metros de extensão, na região do Esplanada. Foi ali que Sissi viu um Palio branco estacionado — até então, a polícia só sabia que um veículo semelhante havia sido visto na rua onde Naiara sumiu no dia 9 de março. Ela decidiu fotografar o veículo discretamente, tendo o cuidado de pegar todos os detalhes. Na manhã seguinte, na frente de um computador na DP, veio o baque. Ao abrir os dados do dono do Palio, surgiu a foto de Juliano Vieira Pimentel de Souza, 31.
Uma outra agente da DPCA, responsável pela investigação do estupro de uma menina que havia sido sequestrada no caminho da escola seis meses antes, viu a foto de Souza e não conteve o grito: "Esse é o meu cara". A colega relacionou a Souza ao retrato falado de um suspeito do primeiro estupro. A epifania de Sissi completava o ciclo.
A partir daquele momento, os agentes da DPCA conseguiram ligar Souza ao estupro de 2017 e conseguiram um mandado de prisão. Na quarta-feira, 21 de março, o mistério de Naiara chegava ao fim com a confissão do homem e a localização do corpo da criança num matagal de Ana Rech.
A exemplo de colegas de profissão, que enfrentaram situações tensas em investigações, o envolvimento de Sissi com o caso Naiara é um divisor na carreira. Foi uma fase de amadurecimento por permitir que a própria policial reconhecesse suas fragilidades. A mulher já teve sucesso em desvendar assassinatos de jovens e crianças, outras vezes falhou.
Por ter sobrinhos, a história de Naiara levantou um temor até então distante. Também a fez relembrar do começo difícil como policial e de como as decisões do ontem moldam o hoje. Antes de empunhar uma arma e um distintivo, Sissi era jornalista. Ficou desempregada e ganhou um presente inusitado de uma amiga: uma inscrição paga para o concurso da Polícia Civil.
Ela assumiu como inspetora na Delegacia de Trânsito em 2004. No começo, os colegas não lhe davam bom dia e uma perdida Sissi recebeu um conselho de um experiente policial: se quisesse ser investigadora, que fosse ler os inquéritos antigos para aprender como se faz.
O primeiro crime resolvido por ela e um colega foi um atropelamento com morte. A busca era pelo dono de um Opala. Numa saída da delegacia, viu um carro parecido estacionado perto do Parque dos Macaquinhos. Como teve o veículo apreendido pela polícia, o dono apareceu na delegacia três dias depois para entender o que havia acontecido. Foi detido e admitiu o atropelamento.
— Entende como já havia alguém olhando por mim? — enfatiza a devota de São Jorge.
Em 2005, a convite da delegada Suely Rech, Sissi ganhava uma mesa na DPCA. Se a mudança foi bem recebida, também exigiu humildade. Novamente, a policial teve que ir no depósito folhear inquéritos empoeirados e compreender a dinâmica dos crimes envolvendo crianças e adolescentes e aceitar os ensinamentos de colegas.
De lá para cá, aprendeu que a dor de uma mãe que perde um filho não tem comparação. Mesmo a contragosto, entendeu que criminosos também precisam de um prato de comida e descobriu que chorar sob o chuveiro ou gastar a energia num treino de corrida é um escape para aliviar a alma.
Quando fecha os olhos, Sissi diz ver o rosto de cada adolescente infrator, de cada família ferida e de meninos e meninas que já se foram.
— Será que deixei de fazer alguma coisa? Isso te consome — revela a policial.
Nessas reflexões, acha que o despertar daquela manhã de domingo, quando o Palio que levou Naiara embora se revelou, não pode ser creditada apenas a uma obra do acaso ou a uma intuição policial. É mais do que isso. Pode ter sido uma chance para Sissi ficar diante do autor do crime e fazer uma pergunta sufocada no coração de muitas pessoas: por que matar uma criança?
—Foi uma mistura de sentimentos, de raiva, alívio, tristeza, dever cumprido — pondera Sissi, que nunca teve a resposta.