Quando o Pronto-Atendimento 24 Horas (Postão) fechar as portas às 23h59min da próxima terça-feira para uma ampla reforma estrutural, o principal debate dos próximos meses girará em torno do modelo de gestão a ser adotado pela prefeitura a partir de maio de 2019.
O Executivo despista e não confirma, mas a futura Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Central 24 Horas tem grandes chances de ser entregue para a gerência de alguma organização social, a exemplo da UPA Zona Norte.
São os fatos que reforçam a intenção da prefeitura, desejo fortemente criticado pelos servidores municipais. Como já foi confirmado, os 106 médicos do Postão serão realocados para as unidades básicas de saúde (UBSs) num reforço à Atenção Básica do SUS. Não há chance de retorno dessa equipe para o Postão.
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Mesmo que o prefeito Daniel Guerra abra concurso público para contratar novos profissionais na futura UPA Central, trata-se de um processo lento e burocrático e talvez falte tempo hábil para nomear e treinar tantos profissionais até maio de 2019. Além disso, os dados dos últimos concursos mostram que a adesão dos médicos ao SUS é muito baixa. Isso ocorre devido à remuneração menor do município quando comparada ao que se pode ganhar como cooperado ou pessoa jurídica na rede privada ou em consultórios. Além disso, o desacordo entre os médicos concursados e o Executivo não anima quem está no lado de fora. Logo, a contratação de uma organização social deve ser apresentada como solução.
Se a gestão compartilhada agrada a população, segundo atesta a prefeitura ao usar a UPA Zona Norte como parâmetro, há quem veja riscos em entregar a unidade à iniciativa privada. Não há consenso dos pontos positivos ou negativos. O Conselho Municipal de Saúde não é unânime: dos 36 integrantes, 14 são favoráveis e os demais não concordam com a terceirização da saúde por temerem a precarização do atendimento.
A diretora executiva da Secretaria Municipal da Saúde rebate:
— A forma de reabrir o Postão é do poder discricionário do prefeito. Se vai resolver isso quando reabrir o P.A. Não vamos fazer esse movimento gigante (reforço de UBSs) para precarizar a saúde pública. A batalha é grande, mas pode ser a grande virada da saúde em Caxias.
Confira um resumo do que pensa o Executivo, integrantes do Conselho da Saúde, médicos e especialistas sobre os pontos positivos e negativos de uma possível gestão compartilhada do Postão:
POR QUE COMPARTILHAR A GESTÃO
Atenção básica reforçada por médicos
O principal argumento para o compartilhamento da gestão do Postão é o fortalecimento da Atenção Básica, dentro do projeto UBS+. Com a realocação de 106 médicos do Postão para as unidades nos bairros, a população teria mais acesso a consultas, o que facilitaria o tratamento de doenças, diminuiria o adoecimento e as internações de média e alta complexidade. Hoje, tanto UPA quanto Postão recebem muito mais pacientes que deveriam ser atendidos nas UBSs do que casos de urgência e emergência. Contudo, UPA e Postão não promovem resolutividade de doenças, apenas diminuem as dores dos pacientes.
A transferência dos médicos para as UBSs também facilitaria a abertura da unidade básica do Cristo Redentor (pronta desde 2017) e reforço dos atendimentos em outros postos. Em tese, as filas reduziriam nas UBSs e no próprio Postão. Por outro lado, Ana Paula Fonseca afirma que não é possível compartilhar a gestão das UBSs. O argumento de que o município poderia contratar mais médicos concursados ao invés de entregar para a gestão privada também é passível de contestação, pois não é de agora que prefeitura enfrenta dificuldades para contratar profissionais e aponta o risco de inchar a folha salarial e os custos previdenciários.
Garantia de atendimento
É fato. Nem sempre o Postão contou com médicos para atender o público. Já houve falta de pediatras e número reduzido de médicos, situações que geraram longa espera ao longo de anos. Na UPA, ainda não houve relatos semelhantes e frequentas se comparado ao Postão. Para o Executivo, é uma prova de que a gestão compartilhada garante o atendimento médico por força contratual.
_ Com a gestão compartilhada, trabalho sabendo que não vai faltar profissional porque a empresa vai ter de repor de qualquer forma, pois está previsto em contrato. É diferente com o servidor público, que não posso impedir que fique doente, por exemplo _ compara a médica Ana Paula Fonseca, diretora executiva da Secretaria da Saúde.
Custo menor
Para o Executivo, há uma grande diferença entre o custeio do atual modelo de gestão do Postão e do modelo da UPA Zona Norte. Segundo a Secretaria da Saúde, o custo mensal do Postão gira em torno de R$ 4 milhões entre gastos com insumos, equipamentos e a folha de 245 servidores. A UPA, por sua vez, consome cerca de R$ 1,82 milhões mensais com insumos, equipamentos e pagamento a 170 funcionários. Contudo, na versão da prefeitura, as duas unidades recebem uma quantidade equivalente de pacientes por dia: cerca de 300 cada. Ou seja, o modelo de gestão compartilhada reduziria o custeio pela metade e garantiria o mesmo acesso à população.
Metas e aprovação popular
Conforme o Executivo, é possível aplicar um plano de metas a ser cumprido pela prestadora de serviços na gestão compartilhada. Para atestar isso, o Executivo usa o modelo de contrato com o Instituto de Gestão e Humanização (IGH), responsável pela UPA. Segundo a prefeitura, a UPA é avaliada a cada 90 dias em 16 metas. A garantia de atendimento imediato aos pacientes de risco, manter pacientes internados no máximo dois dias, garantir a satisfação de 80% do público, executar pelo menos 90% dos atendimentos ambulatoriais previstos no contrato e ter uma escala médica completa são alguns itens acordados. Para renovar o contrato em setembro passado, o Executivo garantiu que as metas foram alcançadas e o índice de aprovação do público foi de 80%. Por outro lado, o Executivo informa que não é possível aplicar metas semelhantes no serviço público.
O relatório detalhado das metas alcançadas pela UPA Zona Norte não está disponível no Portal de Transparência da prefeitura. Contudo, integrantes do Conselho Municipal de Saúde tiveram acesso ao documento para aprovar a renovação do contrato da UPA.
Rompimento de contrato
Se a empresa responsável pelo compartilhamento de gestão não der resultado esperado, o Executivo tem como romper o contrato, ajustar os erros e promover melhorias com uma nova gestão. Para Ana Paula Fonseca, isso não é possível no serviço público.
— Temos o IGH na UPA. Se parar de dar retorno que se espera, podemos sim trocar de empresa. Se tenho 180 servidores, não posso trocá-los — diz Ana Paula.
Ela também cita a conduta de profissionais.
— Se alguma conduta do funcionário, por exemplo, não estiver adequada, a empresa fará o desligamento. No caso dos servidores, tem que fazer sindicância, fazer todo um rito para isso acontecer.
POR QUE NÃO COMPARTILHAR
Falta de transparência
Em quase todos os Estados brasileiros, a lei não obriga as organizações sociais (OSs) que administram serviços públicos de saúde a disponibilizar o balanço patrimonial ao público. O IGH não apresenta publicamente o balanço em relação à UPA Zona Norte, mas informa o balanço social geral relativo de 2017 no site institucional. Para a professora Francis Sodré, pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), isso ratifica a tese de que contratos nascem e morrem dentro das secretarias de Saúde.
— Não há transparência sobre o uso do dinheiro público. O que tem sido mais aliado da população na hora de fiscalizar geralmente são os sindicatos, que denunciam, mas o controle social é bem difícil — afirma Francis.
O Pioneiro, por exemplo, tentou obter detalhes do aditivo que aumentou, em agosto, o valor repassado à UPA Zona Norte, recurso que estava sendo questionado pelo Conselho de Saúde e Sindiserv. A justificativa do Executivo era incrementar o quadro de médicos da UPA. Apesar do detalhamento sobre o aditivo ter sido solicitado por meio da lei de acesso à informação no dia 13 de agosto, que tem prazo de 30 dias para resposta, a prefeitura limitou-se a informar que a Procuradoria-Geral do município está avaliando a legalidade da disponibilização da informação. Não há números detalhados sobre o custeio do Postão e da UPA para comparação. O Portal da Transparência da prefeitura não informa dados separados desses serviços.
Município se isenta
Para a presidente do Conselho Municipal de Saúde, Fernanda Borkhardt, a gestão compartilhada facilita a vida do gestor público devido às responsabilidades que passam a ser arcadas por terceiros. No caso do Postão, a população sabe que pode bater na porta da Secretaria da Saúde para questionamentos.
— A prefeitura se exime de algumas responsabilidades. No ano passado, teve o caso do médico que estava abusando de pacientes na UPA. A prefeitura em nenhum momento se pronunciou sobre o esse fato, pois tem uma empresa que faz isso. Alguém faz o trabalho do gestor, assume a responsabilidade que, na verdade, é dele — critica Fernanda.
Equipes não são ampliadas
Para Francis Sodré, as organizações sociais não ampliam as equipes como se imagina. Isso pode ser visto pela situação da UPA. A unidade tem garantido a escala de médicos, mas não significa o olhar pleno da pediatria, pois as consultas com crianças, na maioria das vezes, são realizadas por clínicos sem a especialização na área.
— As equipes de carreira são retiradas. O médico com 20 anos de carreira vai para o cargo administrativo, burocrático, se aposenta. A organização social entra com nova equipe, mas tem a lógica privada, reduz equipe para atender determinado número da população. A equipe trabalha com o pacote acordado apenas. Vão fechar as portas para o público em geral e abri-las para o público específico — alerta a pesquisadora.
Monopólio
As organizações sociais estão crescendo no país a ponto de se tornarem grandes grupos de saúde pública. O IGH, da UPA, está presente em seis Estados. Francis Sodré cita o caso da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), entidade filantrópica que hoje figura entre as maiores do setor médico no país. Para a pesquisadora, se o discurso é deixar a saúde sobre a gestão de entidades sem fins lucrativos, por outro lado, a prática mostra que os grupos objetivam lucros com origem em grandes capitais privados.
— Essas organizações estão se tornando grandes empresas.
Precarização do atendimento
A gestão compartilhada abre caminho para a quarteirização da mão de obra. A organização social vence a licitação e contrata outras empresas privadas para fornecer médicos, vigilantes, zeladores, etc. Isso significa salários mais baixos para se adequar ao valor do contrato com o município. Salários mais baixos, por sua vez, resultam em alta rotatividade de funcionários. Na prática, a prefeitura perde o gerenciamento sobre a qualidade do funcionário, diferentemente do que teria na seleção do serviço público. A presidente do Conselho de Saúde aponta a baixa resolutividade. O atendimento ocorre na UPA, mas não resolve o problema do paciente.
— O profissional não passa por nenhum filtro, ou processo de seleção semelhante ao que passa o concursado público. Não tem muitos critérios para entrar no serviço — exemplifica Tiago Perinetto, médico e ex-diretor técnico do Postão.
Francis Sodré concorda com redução salarial e a precarização, mas vê diferenças:
_ O médico quarteirizado recebe muito mais do que o médico público, pois ganha por plantão. Logo, esse gasto é maior.
Problemas do Postão se repetem na UPA
Desde que abriu, a UPA também enfrenta dilemas no atendimento que são comuns no Postão, o que não deveria acontecer. Um inquérito do MP ainda tenta esclarecer se as denúncias sobre a falta de medicamentos, equipamentos, materiais, ambulância e funcionários na UPA são verdadeiras. Os apontamentos foram protocolados pelo vereador Alberto Meneguzzi no final do ano passado.
O IGH já recebeu multas do Ministério do Trabalho por irregularidades trabalhistas em Caxias. Boa parte das infrações tinha relação com jornada excessiva de trabalho, pagamento de vale-transporte atrasado e falta de uniforme, entre outros. A UPA também se vê obrigada a manter pacientes em leitos por dias seguidos por falta de vagas em hospitais. A unidade também não tem equipamentos para exames mais complexos como tomografia.