Gestores e usuários concordam que o fortalecimento da rede básica é fundamental para qualificar o Sistema Único de Saúde (SUS). Em Caxias do Sul, porém, soluções que poderiam reduzir a fila para especialistas, otimizar custos e prevenir doenças estão paradas por um impasse entre a prefeitura e o Conselho Municipal de Saúde.
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Em novembro do ano passado, o Executivo propôs a implantação do programa UBS+, que previa a divisão da cidade em territórios e a alocação de mais profissionais às unidades básicas de saúde (UBSs), garantindo atendimento multidisciplinar já na porta de entrada do sistema. Os servidores extras, no entanto, teriam de ser transferidos do Pronto-Atendimento 24 Horas (Postão), que passaria a funcionar por gestão compartilhada — ponto que foi rechaçado pelo Conselho de Saúde.
As partes nunca entraram em acordo sobre o tema, mas o programa saiu do papel no final de 2017 na região do bairro Esplanada, como projeto-piloto. Ali, conforme os números do primeiro semestre deste ano, o UBS+ já tem dado resultado. A enfermeira Leia Fernandes Muniz, diretora técnica distrital do território, diz que o primeiro passo foi a integração entre a UBS Esplanada — que funciona como referência, com horário estendido e mais profissionais — e as UBSs Alvorada, São Caetano e Salgado Filho. Juntas, as unidades são responsáveis por atender uma população de cerca de 50 mil pessoas na zona sul de Caxias.
— A unidade (do Esplanada) tinha muitas reclamações de pessoas que não conseguiam acessar as consultas. O agendamento era todo por telefone, de um dia para o outro, e as pessoas idosas, que teriam direito a 20% das vagas, não conseguiam acessar. O atendimento era centrado no médico, não tinha muitos grupos educativos, ações para os atendimentos se tornarem mais resolutivos. Então, começamos a discutir como a gente poderia fazer diferente — lembra Leia.
Inicialmente, o sistema de agendamento foi repensado: na UBS do Esplanada, a quinta-feira foi instituída como o dia para marcar as consultas pessoalmente para a semana, deixando o telefone para pessoas com deficiência e idosos, conforme a legislação e como já ocorria na unidade do São Caetano.
— Antes desse sistema, toda equipe de enfermagem ficava pela manhã agendando consultas e não tinha o acolhimento para a pessoa chegar na recepção, falar do seu problema. Muitas vezes, não é uma consulta médica que ela precisa, é uma orientação, em relação aos cuidados com o seu filho, a algum benefício — conta.
Especialista e clínico trocam experiências
O que diferencia o território do Esplanada, conforme a diretora Leia Muniz, é o matriciamento e o apoio do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) aos médicos, que começou a ser aplicado com mais força no início do ano. Conforme Leia, o matriciamento pode ser entendido como um acompanhamento do especialista à consulta do clínico geral, com o objetivo de resolver problemas sem a necessidade de outro encaminhamento.
Para deixar mais claro, ela toma o exemplo do psiquiatra: o profissional tem 10 horas por semana para atender o território. Nas terças e quintas, ele participa de reuniões com as equipes do Esplanada e São Caetano.
— Se os médicos ficam em dúvida em relação a alguma dosagem, por exemplo, ou a algum sintoma que o usuário está apresentando, o psiquiatra apoia e direciona. É uma capacitação técnico-pedagógica. O medico da ESF (Estratégia de Saúde da Família) deveria saber de tudo, atendendo do bebê até o idoso. Mas, às vezes, a instituição de ensino não prepara para isso. Então, é interessante o especialista vir para a atenção básica e capacitar in loco. Aqui, eles discutem a toda a semana. Com isso, o médico que está atendendo vai ser mais resolutivo, vai tendo mais segurança, e não vai encaminhar mais para especialista. Vai resolver aqui — defende Leia.
O argumento é corroborado pelos números: conforme a Secretaria Municipal da Saúde, de março a junho, 81 usuários participaram desse processo e apenas 11% permaneceram na lista de espera para atendimento fora da UBS. Para os outros pacientes, a lista de espera para ver um psiquiatra caiu dos 113 dias previstos para 29 dias.
O apoio do Núcleo Ampliado de Saúde da Família aos médicos também tem dado certo e deve servir de exemplo, segundo a diretora Leia . A participação da fisioterapeuta nos atendimentos, a exemplo do psiquiatra, possibilitou a redução do encaminhamento para ortopedistas.
— Às vezes, a pessoa chega com uma dor que é crônica, mas mas não é cirúrgica, é postura. Mesmo se ela for encaminhada para o ortopedista, ele vai dar anti-inflamatório e fisioterapia. Ela (a fisioterapeuta) acaba orientando os profissionais, o São Caetano teve uma redução grande de encaminhamentos para especialista. Ela também tem grupos de reeducação postural, em todas as unidades e grupo de caminhadas, que são acompanhados por agentes comunitários _ relata.
Falta de profissionais é calcanhar de Aquiles do sistema
O Pioneiro consultou representantes dos bairros da Zona Sul em busca de avalições do atendimento recebido nas UBSs da região. Quando questionados diretamente, eles reconhecem a existência e importância dos programas citados, mas não esquecem dos problemas principais.
— Dá para dizer que tem (apoio de especialistas). Mas são poucos médicos, quatro Equipes da Saúde da Família (no Esplanada). Eles tentam fazer visitas (domiciliares), mas fica difícil. Está sempre faltando enfermeiro, técnicos. Os idosos têm que enfrentar fila. Dá para agendar por telefone durante uma hora, mas é um parto para atender aquele telefone, não é fácil de marcar — reclama Maria Eliza da Silva, representante do Esplanada no Conselho Municipal de Saúde.
— Nesse semestre, tivemos algumas mudanças, mas falta médico, né? A minha mãe faz fisioterapia, e tem algum tempo que ela vai no dia marcado e não tem, ou a profissional não foi, falta essas especialidades. Eles querem centralizar tudo nas UBSs para evitar atendimento no Postão, mas não estão dando conta da demanda. A UBS fala uma coisa e a comunidade fala outra. Hoje, a realidade de qualquer postinho de saúde é de muita gente para pouca quantidade de profissionais — complementa Claudia Nunes, que é presidente da associação de moradores do bairro.
A diretora do território reconhece que, hoje, a falta de servidores é o empecilho para a ampliação do programa.
— O ideal seria fazer, com o tempo, em outras especialidades, como cardiologista, ortopedista, dermatologista, só que precisamos de pessoas que não temos no momento, e que gostem disso também. O grande gargalo é as especialidades. Tem poucos especialistas, em algumas áreas, e muito encaminhamento de coisas que poderiam ser resolvidas aqui — justifica Leia
Mesmo assim, ela considera que houve um avanço no primeiro semestre de 2018 e diz que o programa está aberto a aprimoramentos.
— Temos os nossos problemas, mas, como é um piloto, temos feito várias reuniões, não tem uma receita pronta. É benéfico para todo mundo e está sendo construído junto com a comunidade — defende.
O TERRITÓRIO DO ESPLANADA
:: UBS Esplanada
Atende 25 mil pessoas. É a maior unidade do território e fica aberta das 7h30min às 21h. Conta com três médicos de família, um ginecologista e um pediatra, que também atua em outra UBS. No momento, faltam dois clínicos de apoio, com carga horária de 12 horas semanais, e um médico da família, que deve iniciar o trabalho em cerca de 15 dias, conforme a Secretaria da Saúde.
:: UBS São Caetano
Atende 12 mil pessoas. Conta com três médicos de família e um ginecologista. A equipe é considerada completa pelo município.
:: UBS Salgado Filho
Atende 10 mil pessoas. Tem dois médicos de família, um ginecologista e um pediatra. A equipe está completa.
:: UBS Alvorada
Atende 2,7 mil pessoas. Conta com um médico clínico geral, um ginecologista e um pediatra. A equipe está completa.
RESULTADOS DO UBS+
:: Agendamento
A mudança no agendamento presencial de consultas para o decorrer da semana na UBS Esplanada melhorou o atendimento, permitindo a detecção das necessidades de cada usuário. O agendamento por telefone permanece exclusivamente para idosos, gestantes e pessoas com deficiência.
:: Escala rotativa
Conforme a Secretaria da Saúde, mudanças no processo de trabalho das equipes, com escala rotativa de acordo com o perfil e habilidade de cada servidor, tornam o atendimento mais humanizado e acolhedor.
:: Prontuário eletrônico
Segundo a prefeitura, o novo sistema permite acesso mais ágil às informações dos pacientes e o envio automatizado de dados ao Ministério da Saúde, o que qualifica a coleta de dados.
:: Matriciamento
Consiste no apoio de especialistas em consultas e reuniões da equipe das UBSs. O trabalho realizado por psiquiatra, fisioterapeuta, nutricionista, psicóloga e assistente social aumentaria a possibilidade de resolução de problemas na rede básica. Recentemente, uma fonoaudióloga também começou a atuar no território, com a previsão de universalizar o teste da linguinha, para detecção precoce da língua presa nos bebês.
:: Prevenção
Com o matriciamento, pacientes menos graves são encaminhados para programas preventivos no próprio território ao invés de engrossarem a fila de consulta com especialistas. A fisioterapeuta responsável coordena um grupo de reeducação postural no Centro Comunitário da Vila Gauchinha, no Esplanada, e nas UBSs São Caetano e Salgado Filho.
— É basicamente pilates, no solo. Além disso, ela têm grupos de caminhada acompanhados pelos agentes comunitários — explica a diretora Leia Muniz.
A Secretaria da Saúde afirma que, com as atividades, o número de pessoas na lista de espera para consultas com ortopedista caiu cerca de 30% no primeiro trimestre de 2018 em relação ao ano anterior.
DIFICULDADES DO TERRITÓRIO
:: Agendamento presencial
Apesar de ser visto como um avanço, o agendamento de consultas ainda é visto com ressalvas por usuários. A coordenadora do território, Leia Muniz, defende o sistema mas reconhece que o número de vagas na UBS Esplanada baixou depois da saída de alguns médicos.
— A agenda abre na quinta, para a semana, e se tem vaga continuamos agendando. Estava funcionando bem até umas três semanas atrás, quando um médico saiu, outra entrou de férias e um terceiro, de apoio, se exonerou — explica.
No São Caetano, onde o agendamento também é semanal, usuários relataram ter de esperar horas para conseguir uma consulta para a semana. De acordo com Leia, como a equipe na unidade está completa, está em estudo a possibilidade de aumentar o atendimento para os 30 dias seguintes.
— Como todo mundo vai na segunda-feira, às vezes o médico pede um exame e tem de voltar novamente na segunda para agendar. A gente entende esse outro lado. Estamos discutindo para aumentar, com agendamento automático para mostra de exames, como lá está mais tranquilo — aponta.
:: Agendamento por telefone
É o que gera mais reclamações. O problema, conforme usuários, é que há pouco tempo para conseguir as vagas reservadas à idosos e pessoas com deficiência. Além disso, há denúncias de que os servidores não atendem os telefones.
— Eu estou desde as 8h ligando para marcar consulta para a minha mãe. Faz três semanas que eu tento e não atendem. Quando consegui, era 11h e falaram que era muito tarde — relatou a autônoma Dagmar Vargas Duarte, 47, que buscava consulta para a mãe na UBS São Caetano.
Na UBS Esplanada, o horário para telefonar é limitado, das 13h30min às14h30min de quinta-feira. Leia Muniz admite que o sistema não é o ideal, mas diz que faltam profissionais para a função e explica que não há porque não atender as ligações quando não há mais vagas.
— O ideal seria ter algo como um call center, há municípios que trabalham com isso. Mas como não temos, fica mais difícil, quem faz esse agendamento é a enfermeira ou a própria gerente. E além disso, se a gente deixar mais tempo, não vai ter vaga. No São Caetano é diferente, podem ligar a qualquer hora — garante.
:: Filas
Mesmo com os agendamentos, representantes dos quatro bairros ainda dizem que ainda é comum ter de enfrentar filas de madrugada para conseguir uma consulta para o mesmo dia, considerada de urgência, devido à baixa quantidade de vagas disponíveis.
— O que elas passam é que é cultura do povo ficar na fila. Mas se tu vai perguntar para a pessoa porque ela está na fila, é porque não consegue ligar, não consegue vaga pelo número de ficha. Nas UBSs, às vezes, dizem que sobrem vaga, mas as informações não batem — critica Claudia Nunes presidente da Amob Esplanada.
:: Falta de profissionais
Todos os problemas apontados têm como causa comum a falta de profissionais para atender a demanda. É unânime a reclamação referente ao tamanho insuficiente das equipes que, para os usuários, acaba minando, inclusive, a eficácia dos programas de prevenção.
— Tem fisioterapeuta para atender os casos mais fáceis, nutricionista para atender as UBS, mas deveria ter mais. Muitas vezes, um simples encaminhamento para fazer fisioterapia leva mais de um mês. Assistente social é só uma para todas as quatro do território. Faltam pessoas, é só olhar o tamanho da região. Precisa de mais profissionais, sim — define Marinez Pegoraro, presidente da Amob Bom Pastor II, que utiliza a UBS São Caetano.
:: Percepção da população
A diretora Leia Muniz diz estar a par das deficiências, mas acredita também que deve haver um olhar diferente do usuário perante ao SUS.
— As pessoas devem valorizar mais a consulta também. Às vezes, o médico pede dois exames e elas vêm na próxima semana mostrar um e na outra mostrar outro. Poderiam se organizar, mostrar os dois juntos. E quando marca a consulta, venha na consulta. Muitos acabam agendando e não vem — aponta.
Leia também esclarece que o agendamento das consultas serve para atendimentos rotineiros, como a renovação da receita de medicamentos. As vagas para atendimento no mesmo dia, segundo ela, devem ser reservadas para a emergência.
FALA, POVO
Em matéria de atendimento, melhorou um pouco. No começo, quando mudou o prontuário, teve um período de turbulência. Agora, dá para ver que está começando a ter uma melhora na agilidade de buscar o teu prontuário, ter em mãos o histórico. Tá sendo um pouco mais rápido nesse sentido. Mas a disponibilidade de consultas, de especialistas, ainda está da mesma forma que toda a cidade está percebendo.
Maicon Fernando da Silva, presidente do bairro São Caetano.
Às vezes tem pouco médico. Para consultar no mesmo dia, tem que ir às 5h e esperar até a hora de abrir. Porque é muita gente. Somos bem atendidos, a dificuldade é o número de médicos.
José Guerreiro dos Santos, presidente do bairro Salgado Filho.
Eu acho que piorou. Preciso de medicamento controlado, perco a manhã agendando. Em relação a especialistas, não demora tanto para coisas de rotina, só para coisas mais graves. Mas se tu vem aqui mal, tem que estar morrendo para conseguir a consulta do dia. Se não, não atendem, mandam para o Postão. E às 16h fecham as portas. É meio precário.
Ticiane Refosco, 40, do lar, moradora do bairro Bom Pastor.
Tem suas dificuldades, mas se comparar com anos anteriores, cresceu muito a demanda e a oferta por atendimento. A demora existe porque tem que ter uma organização, tu não vai conseguir atender todo mundo ao mesmo tempo. De uns anos para cá, melhorou. O objetivo da UBS não é urgência, é prevenção.
Gilberto da Silva, 57, aposentado, morador do bairro São Caetano.