Você já falou sobre doação de órgãos com o seu pai? Sabe se sua irmã é doadora? E seu filho, o que ele pensa sobre o assunto? Já é tempo de ter essa conversa: dedicar alguns minutos ao tema pode ajudar a salvar muitas vidas.
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Mais de 1,2 mil pessoas aguardam por transplante de órgãos no Estado
Conforme dados da Central de Transplantes do Rio Grande do Sul (RS), no ano passado 789 pessoas tiveram morte encefálica no Estado — ou seja, tornaram-se potenciais doadores. No entanto, em somente 295 casos, ou 37% deles, o transplante acabou sendo realmente realizado. Na maioria das situações, a doação acaba não sendo efetivada por contraindicação médica, falta de tempo hábil para os procedimentos e, principalmente, a não autorização das famílias.
— Hoje, o que a família nos traz muito é a questão de não saber qual era o desejo do falecido. Isso acaba dificultando a decisão final — aponta Hugo Castilhos, enfermeiro gestor do Banco de Olhos e coordenador da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) do Hospital Pompéia, em Caxias do Sul.
A instituição atende mais da metade dos casos de morte encefálica da Serra. Com base nos números registrados, o hospital desenvolveu a campanha "Eu sou doador de órgãos", justamente para tentar incentivar o diálogo sobre a doação dentro do círculo familiar.
De acordo com Castilhos, após o diagnóstico de morte encefálica — ou de parada cardíaca, em que é possível doar as córneas — começa uma corrida contra o tempo para tentar salvar pelo menos uma das quase 1,5 mil pessoas que estão na fila de transplantes no Estado.
— Constatado o óbito, a gente conversa com a família para dar a oportunidade de fazer a doação de órgãos ou tecidos. Diante da manifestação em relação a isso, fazemos diversas abordagens, e aí tem a parte documental, do consentimento. Depois se fazem os exames necessários para a captação do tecido — explica.
Simultaneamente, o possível receptor para o órgão ou tecido a ser doado também passa por exames em um hospital em algum lugar do RS. Para que um transplante de coração ou pulmão tenha sucesso, por exemplo, o órgão tem de ser retirado antes da parada cardiorrespiratória do doador e colocado no receptor em no máximo seis horas.
Todo o processo tem duração prevista de no máximo 24 horas até a devolução do corpo para a família, diz Hugo. Para ganhar o máximo de tempo possível e garantir uma taxa maior de sucesso na doação, o Pompéia aposta em parcerias com o Instituto Médico Legal (IML), a Polícia Civil e funerárias para otimizar os processos necessários, além de realizar alguns exames de compatibilidade logo no momento do óbito. Horas preciosas, porém, podem ser poupadas por decisão das próprias famílias.
— Se a família nos traz que a pessoa falou em vida que queria doar, o processo tende a caminhar mais rápido e mais tranquilo. Se diz que não sabe o que o parente queria, tem de fazer toda uma conversa, explicar como funciona, o conteúdo que seria de uma palestra de uma hora e meia tem que ser feito em 20, 30 minutos, para que a decisão seja tomada rapidamente — aponta.
Por meio da conscientização sobre o tema e o simples gesto de conversar, Castilhos aposta no aumento da taxa de doadores:
— A gente não quer que as pessoas falem sobre morte, embora ela vá acontecer com todos em algum momento. A gente quer que falem sobre doação. Todo mundo tem uma opinião formada se quer ser cremado ou não, mas se perguntar se quer ser doador, as pessoas ficam em dúvida. Então a gente faz essas campanhas, essas conversas, para que as pessoas possam estar mais habituadas e possam dizer sim ou não com mais tranquilidade — reforça.
Para irmã de guitarrista que morreu na fila, doação é maneira de amenizar a dor
A psicóloga Patrícia Schroeber, 47, acabou se familiarizando com o tema da doação de órgãos no momento mais difícil de sua vida: ela tinha recém perdido o irmão, o guitarrista Paulo Schroeber, em março de 2014.
— Tu pensa, meu Deus, o que eu faço agora, para onde a gente corre? Nem estávamos pensando em nada disso e já vieram perguntar se nós queríamos doar as córneas — lembra.
Ela nunca tinha falado sobre o assunto com o irmão, mas não teve dúvida:
— Mais do que imediato a gente disse sim, pelo que a gente conhecia dele. O Paulo iria fazer questão, ele era muito desapegado e sempre ajudava as pessoas. Eu tenho certeza que ele iria fazer isso — relata.
Havia um agravante na morte de Paulo: desde os 21 anos, ele lutava contra uma doença que provoca o crescimento do coração e, nos meses antes de morrer, teve que entrar na fila para um transplante de coração, mas não sobreviveu a espera.
A dor da perda tomou conta da irmã, mas, no meio do turbilhão de emoções, saber que Paulo acabou ajudando outras pessoas serviu para superar o trauma.
— Foi uma forma de amenizar a dor, eu acho. Porque é muito difícil perder alguém, de qualquer forma, tu nunca vai estar preparado. Doando os órgãos, tu mantém a memória desse alguém _ acredita.
A Central de Transplantes não revela a identidade do receptor dos órgãos doados, mas entrega à família uma carta de agradecimento informando a idade e o sexo de quem o doador ajudou. No caso de Paulo, a comprovação de que as córneas do filho devolveram a visão para duas pessoas foi o que motivou a aposentada Carmen Schroeber, 72, a seguir em frente.
— Eu não esperava essas palavras tão carinhosas. Eu fiquei emocionada e feliz ao mesmo tempo quando recebi. Para mim foi surpresa, me levou às lagrimas. Foi muito humano o gesto — conta.
Paulo Schroeber partiu cedo, mas deixou um legado gigante. Quando faleceu, aos 40 anos, já era considerado um dos maiores guitarristas do Brasil e referência na cena do metal. As circunstâncias da morte dele provocaram uma onda de solidariedade vinda dos fãs que reverbera até hoje.
— Os fãs se mobilizaram muito, eu passei umas boas semanas em seguida, ou dando entrevista, ou conversando com fãs. Foi algo inesperado, mas nesse contato, acabamos criando uma campanha de doação de órgãos e tecidos — conforme Patrícia.
Batizada "Escrevendo Outra Canção", a ação se concentra em redes sociais e promove atos de conscientização pelo país. A ideia, conforme ela, é informar a população sobre a importância de doar.
— Era uma coisa que não se falava muito. Porque tu nunca espera, mas quando acontece tu sente na pele. Hoje, a gente é muito mais consciente, em função do que aconteceu. E dá para ver o quanto é importante para as pessoas que recebem. Tu ajuda ao próximo, não tem palavra que defina mais que a gratidão — diz Patrícia.
— O "Escreva Outra Canção" significa que quem recebe o órgão poderá escrever outra canção de sua vida. A gente sabe que um pedacinho dele está vivo em alguém. Isso é maravilhoso — conclui a mãe.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
:: Quem pode ser doador?
Qualquer pessoa que sofreu morte encefálica e, no caso da doação de córneas, parada cardíaca. Fatores como idade e condição física influenciam na possibilidade de doar ou não. Também é possível ser doador em vida de rim, medula óssea e parte do fígado ou do pulmão para um familiar. Para doadores não parentes, há necessidade de autorização judicial.
:: Quando ocorre a morte encefálica?
Em geral, a morte cerebral se dá por traumatismo craniano, acidente vascular cerebral (AVC), alguns tumores e por hipoxemia, a falta de oxigênio no sangue. Conforme Hugo Castilhos, coordenador da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes do Hospital Pompéia, o perfil dos óbitos mudou nos últimos anos: os traumas perderam espaço para os AVCs, especialmente em pessoas jovens.
:: Quais órgãos e tecidos podem ser doados?
- Coração:
Tempo para a retirada: antes da parada cardiorrespiratória.
Tempo para o transplante: quatro a seis horas.
Idade limite para a doação: 55 anos.
Idade limite para o transplante: 55 anos.
- Pulmões:
Tempo para a retirada: antes da parada cardiorrespiratória.
Tempo para o transplante: quatro a seis horas.
Idade limite para a doação: 55 anos.
Idade limite para o transplante: 55 anos.
- Ossos:
Tempo para a retirada: seis horas.
Tempo para o transplante: quatro a seis horas.
Idade limite para a doação: 65 anos.
Idade limite para o transplante: 65 anos.
- Córneas:
Tempo para a retirada: seis horas.
Tempo para o transplante: 14 dias (o tecido pode ser armazenado no Banco de Olhos).
Idade limite para a doação: de dois a 80 anos.
Idade limite para o transplante: não há.
- Fígado:
Tempo para a retirada: antes da parada cardiorrespiratória.
Tempo para o transplante: 13 a 24 horas.
Idade limite para a doação: 70 anos.
Idade limite para o transplante: 70 anos.
- Pâncreas:
Tempo para a retirada: antes da parada cardiorrespiratória.
Tempo para o transplante: 12 a 24 horas.
Idade limite para a doação: 50 anos.
Idade limite para o transplante: 50 anos.
- Rins:
Tempo para a retirada: 30 minutos após a parada cardiorrespiratória.
Tempo para o transplante: 12 a 24 horas.
Idade limite para a doação: 75 anos.
Idade limite para o transplante: 75 anos.
:: Quem recebe o órgão?
Os pacientes que estão na fila, controlada pela Central de Transplantes do Estado. Além da posição na lista, pesa a compatibilidade com entre doador e receptor. Caso não haja receptores no Estado, podem ser buscados pacientes em estados próximos.
:: Quem é responsável pelo processo?
A Central de Transplantes desloca equipes para realizar as operações.
:: Após a doação, o corpo fica deformado?
Esse é um dos mitos sobre a doação, conforme Castilhos. Ele explica que, após a retirada dos órgãos, a equipe médica é obrigada por lei a fazer a reconstituição do corpo e entregá-lo para a família nas mesmas condições.
— Se respeita muito o doador e a família — garante.
:: O que fazer para ser um doador?
O fundamental é avisar a família, que deve assinar o tempo de consentimento.