Das quase 20 mil pessoas com deficiência em idade economicamente ativa em Caxias do Sul, conforme o último Censo, apenas 2.243 estão trabalhando com carteira assinada, de acordo com números da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A dificuldade de inclusão da população com deficiência no mercado de trabalho foi o tema do Fórum de Acessibilidade Universal, promovido na quinta-feira pela Coordenadoria da Acessibilidade da prefeitura. Durante o debate, a coordenadora do Observatório do Trabalho da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Lodonha Coimbra Soares, revelou que a população representa apenas 1,44% do total de trabalhadores formais de Caxias segundo dados de 2016, último ano disponível.
Para tentar mudar essa realidade, foi aprovada em 1991 a Lei de Cotas, que obriga as empresas com 100 ou mais empregados a preencher de 2% a 5% do seus postos de trabalho com pessoas com deficiência. Quase três décadas com a norma em vigor, porém, ainda não foram suficientes. Hoje, há 175 empresas com matriz em Caxias do Sul com mais de 99 empregados. Somente 30 delas, ou 17,1% do total, têm a cota legal totalmente preenchida. Pela lei, há 2.951 vagas para pessoas com deficiência nessas empresas, mas apenas 2.044 contratadas.
Para o auditor-fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de Porto Alegre Rafael Giguer, que também participou da discussão, ainda prevalece entre os empregadores uma cultura de que a pessoa com deficiência é incapaz.
— Cerca de 95% das pessoas trabalhado hoje estão em empresas obrigadas a cumprir a Lei de Cotas, mesmo que a maioria dos empregos estejam em pequenos negócios. Quando chega um candidato com deficiência para a entrevista de emprego, ele tem de provar que pode fazer tudo. Ninguém consegue fazer tudo, mas sempre cai esse fardo sobre os ombros da pessoas com deficiência — lamenta.
Giguer, que é cego, relata que nas ações de fiscalização é comum ouvir que as empresas não encontram pessoas com deficiência para contratar, argumento desmentido pelas estatísticas. Outra desculpa frequente é de que as pessoas com deficiência recebem algum tipo de benefício social e não querem trabalhar.
— Mesmo que isso fosse verdade, uma parcela muito pequena dessa população recebe benefícios, há muitas outras buscando emprego. Outra desculpa é que não existe compatibilidade do cargo, o que também é um erro, já que há exemplos de pessoas com deficiência ocupando todos os tipos de profissões. Na verdade, a empresa tem de adaptar o seu ambiente de trabalho, não buscar pessoas adaptadas ao seu ambiente de trabalho. Essa é a lógica — defende.
FISCALIZAÇÃO
As multas para empresas que não cumprem com a Lei de Cotas podem chegar a R$ 300 mil, conforme o auditor-fiscal do MTE, Rafael Giguer. Mesmo assim, ele afirma que ainda há organizações que preferem arcar com o valor em vez de fazer as adequações necessárias. Além disso, o número reduzido de servidores dificultaria a fiscalização:
— Hoje, somos menos auditores do trabalho que éramos há 20 anos e há muito mais empresas e trabalhadores. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) tem dados que a gente precisa de mais de 5 mil auditores, e somos menos de 2 mil.
Mudança de concepção
Dados da Rais também mostram que as pessoas com deficiência enfrentam mais dificuldades para completar sua escolarização. No entanto, para Giguer, as empresas podem qualificar os funcionários por meio de programas de aprendizagem que são obrigados por lei a oferecer. Tudo se resume, segundo ele, a uma mudança de concepção acerca da população.
— Em última análise, a experiência da deficiência decorre da existência de barreiras e da negativa de acessibilidade. O que torna uma pessoa com deficiência não é ela ter limitações, e sim viver numa sociedade perversa que ignorou uma parcela da população como se ela tivesse menos direitos ao trabalho e à dignidade. Então, quando tu negas a um determinado grupo de pessoas o direito ao trabalho, à educação, tu estás negando a cidadania, a dignidade. Por isso, é fundamental que exista uma fiscalização da Lei de Cotas — avalia.
Segundo o auditor-fiscal, depois do momento em que as empresas são obrigadas a contratar pessoas com deficiências, experiências positivas começam a ser observadas.
— Com a convivência, os colegas de trabalho têm a oportunidade de conhecer e descobrir que essas pessoas têm capacidade e se dissolve aquele preconceito. Essa é a grande vantagem — aponta.
"Não me deixam colocar o meu conhecimento em prática"
Andreia dos Santos Gularte, 39 anos, tem sentido na pele a dificuldade para entrar no mercado de trabalho. Ela tem deficiência visual grave e, mesmo formada em Administração, está há dois anos na busca por algum trabalho.
— Antes eu enxergava, mas perdi a visão e tentei voltar ao mercado de trabalho. Fiquei três anos como telefonista, mas depois fui demitida por redução de quadro. Agora, acham que tenho muito estudo para uma vaga na produção, por exemplo. Mas o que eu quero é um emprego, e o mercado não abre — relata.
Quando tenta buscar uma vaga na própria área, Andreia é recebida com incredulidade.
— Eles pedem: "Tu achas que vai conseguir?". Eu digo claro, têm programas com comando de voz, eu explico. Mas como é para lidar com notas, documentos, eles acham que eu não vou conseguir, sei lá. Mas eu tenho conhecimento. Só não me deixam colocar em prática — reclama.
Em mais uma tentativa de mostrar que é capacitada, Andreia começou uma segunda graduação, em Gestão Financeira. Ali também, no entanto, enfrenta obstáculos.
— As faculdades estão muito limitadas, despreparadas. Para fazer uma prova, eles não conseguem dar suporte. Mas não depende de uma pessoa, depende do todo, é um processo. Eu sigo lutando.
Já a auxiliar administrativa Vanessa Machado Pereira, 38, vive o outro lado: há dois anos ela passou em um processo seletivo específico para pessoas com deficiência e assumiu a função no Instituto Senai de Tecnologia em Mecatrônica. Vanessa tem deficiência física leve, por isso nunca teve dificuldades no ambiente de trabalho. Mesmo assim, conta já ter observado experiências diferentes entre colegas com deficiência.
— Eu acho que ainda está bem difícil, para casos com deficiência severa. Há empresas que não têm o acesso adequado e nem o acolhimento dos colegas. Eu acho que pesa o motivo financeiro, porque os empresários não querem gastar muito para adaptar os lugares — pondera.