Graças a uma ação social realizada no último fim de semana, dezenas de dependentes químicos que estavam em situação de rua em Caxias do Sul poderão iniciar uma trajetória de recuperação. No sábado (21), três ônibus cheios partiram do município em direção à comunidade terapêutica Fazenda da Esperança, em Casca, a 150 quilômetros de Caxias. Das 120 pessoas que participaram da iniciativa, 54 seguirão tratamento em outros municípios.
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A iniciativa foi idealizada pela Obra Lumen de Evangelização, comunidade católica sediada em Fortaleza (CE), ligada à Canção Nova. O conceito é simples, conforme Edwin Costa, integrante da entidade: trata-se de colocar a recuperação ao alcance dos beneficiários. Funciona assim: a Lumen contata voluntários que já trabalham com moradores de rua para ajudar na ação. Eles divulgam a oportunidade de tratamento para quem quer se recuperar do vício em álcool ou drogas. As pessoas que aceitam são convidadas a um retiro espiritual de um dia, intitulado Com Deus Tem Jeito, e têm vaga oferecida para se internar em uma casa de recuperação, de forma gratuita.
A ideia foi posta em prática pela primeira vez há três anos, no Ceará, e foi realizada em São Paulo no ano passado, antes de chegar de forma inédita ao Rio Grande do Sul (RS). Além de Caxias, ônibus saíram de várias outras cidades do Estado, totalizando cerca de 500 beneficiários. Destes, 215 optaram por seguir o tratamento em casas por todo o RS e até no Rio de Janeiro e em São Paulo.
A alta adesão ao tratamento impressiona quem trabalha na assistência social.
— Nós estávamos em conversas (com a entidade) desde o ano passado. Sabemos que no nosso município muitos moradores de rua são usuários de álcool e drogas. Eles acompanharam uma palestra nesse retiro e foram motivados a buscar tratamento, em diversas comunidades terapêuticas, com diferentes metodologias. Daqui, saíram seis — comemora Maria de Lurdes Grison, coordenadora da Casa de Passagem Carlos Miguel.
Para Edwin Costa, o segredo do sucesso da ação é tratar os moradores de rua com humanidade e igualdade.
— Eles saírem da rua é uma consequência do amor que a gente oferece. A partir daí, eles se abrem, relembram quem eles são. E o passo seguinte é o socorro, ele é auxiliado para, enfim, ter uma reconciliação com a família — aponta.
Apesar do caráter religioso da ação, Costa destaca que hoje mais de 120 entidades se envolvem no projeto, entre igrejas e ONGs. A partir da palestra inicial, o participante tem autonomia para escolher o caminho que quer seguir.
— O convite é para aqueles que querem fazer um retiro espiritual de um dia. Quem decide ser acolhido pode escolher para qual casa quer ir, evangélica, católica, ou com outros preceitos, livremente. São vários movimentos que se unem, e essa comunhão tem grande força. O segredo é a comunidade — defende.
Os beneficiários da ação que concluem o tratamento, cuja duração varia de alguns meses até um ano, dependendo da casa de recuperação, têm o retorno custeado para voltar às suas cidades de origem. Os recursos são captados junto às próprias entidades participantes.
Voluntários escolhidos a dedo
Se a forma de estender a mão para quem precisa é o que garante a adesão das pessoas em vulnerabilidade ao tratamento, a logística de transportar todo esse público constitui outro desafio, que foi vencido a partir da escolha dos voluntários. A Lumen chamou pessoas com experiência na área em cada cidade onde pretendia atuar.
Em Caxias do Sul, um dos escolhidos foi o metalúrgico Luís Barboza Borges, 37. Ex-dependente químico, ele conta que há anos trabalha ajudando a população de rua servindo refeições durante os fins de semana. Ele foi contatado pela entidade em fevereiro e, imediatamente, decidiu ajudar.
— No dia 4 de fevereiro, eu estava na igreja e fui avisado por uma pessoa, que nem sabia de nada, de que Deus iria me tirar do meu trabalho. Na segunda, cheguei na empresa em que trabalhava e fui demitido. Dias depois, fui chamado pela entidade. Para mim, ficou muito claro que era um sinal, eu tinha que ajudar. Só pude estar envolvido porque estava desempregado — lembra.
Nos meses seguintes, Borges fez contato com entidades que trabalham com pessoas em situação de rua em Caxias e conversou diretamente com o público-alvo, divulgando a ação.
— A nossa meta era alcançar 500 pessoas. Daqui de Caxias saíram três ônibus, além de um de Bento (Gonçalves), Passo Fundo, Porto Alegre, Rio Grande... Na madrugada de sexta-feira, eu ainda estava fazendo convites. Horas antes de sair, falei com uma pessoa que estava dormindo no Postão (24 Horas) e ela aceitou o tratamento. É uma oportunidade de mudança. A gente entende que é difícil, a maioria dos locais que existem para tratamento, com método, equipamentos, são pagos. Foi a maior ação desse tipo que vi no RS — aponta.
Outro voluntário "convocado" em Caxias foi Raul Roncada Filho, 42. Ele trabalha como palestrante para dependentes químicos e foi chamado a encontrar vagas para quem escolhesse se internar.
— Me telefonaram em novembro do ano passado. Como eu conheço todas as casas (de tratamento), consegui umas 200 vagas. Todas elas têm vagas sociais. Algumas estavam lotadas, mas deu. Acho que ultrapassou todas as expectativas, serviu de lição para todos nós. Todo o mérito é da aproximação, quebrar barreiras, tratar eles (os moradores de rua) como se fossem da família mesmo.