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A Residência Finco, casarão centenário na Avenida Júlio de Castilhos, é um exemplo típico, porém não único, da situação em que o tombamento — que ajuda a salvar a estrutura da demolição — também pode condená-la a um lento e permanente processo de deterioração. O antigo Lanifício Gianella, no bairro Santa Catarina, é outro imóvel histórico que corre sérios riscos, mesmo tendo sido tombado em 2003.
A área do complexo margeia o Arroio Tega e é acessada pela Rua Professor Marcos Martini, ao lado da Matteo Gianella. Além do pavilhão do antigo lanifício, erguido em 1915, observa-se ali a antiga casa da família e o escritório da indústria, que não faz parte da área preservada.
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O prédio do lanifício conserva seus tijolos aparentes e a forma que o torna parte do legado industrial da cidade, mas as janelas quebradas e estruturas deterioradas escancaram o descaso atual. Nos últimos anos, uma fábrica de gesso ocupava o térreo do imóvel, mas, conforme inquilinos que vivem na casa da família, já não é seguro acessar o segundo piso do pavilhão.
Como no caso da Residência Finco, novamente a legislação que protege o patrimônio se mostra insuficiente para manter o prédio histórico em boas condições diante de um impasse entre os proprietários e a prefeitura de Caxias.
— A casa foi alugada só para não ficar vazia e ter risco de invasão. Mas não se fez nenhuma conservação, porque ninguém tem dinheiro. Na verdade, nós queremos vender. Foi o consenso de todos. Em 15 anos, a gente não conseguiu nenhum investidor — lamenta Liana Valduga, 68, uma das donas do lanifício.
Ana Thomaz, 67, outra herdeira do local, culpa a prefeitura pelo estado atual do imóvel e explica que os proprietários nunca usaram os índices construtivos (contrapartida pelo tombamento) para restaurar a construção porque pensam em oferecê-los como atrativo em uma possível venda.
— Nós já tivemos várias pessoas interessadas. Mas íamos lá na prefeitura, em função do tombamento, e sempre acabaram com o nosso negócio —denuncia.
Liana lembra que, há quatro anos, um potencial comprador teve o projeto de restauro da área aprovado pela Divisão de Proteção ao Patrimônio Histórico e Cultural (Dippahc) e pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente. A ideia era constituir um complexo para eventos que respeitaria as restrições legais do entorno e se integraria, inclusive, ao Arroio Tega. A iniciativa, porém, teria sido barrada pela Secretaria de Trânsito.
— Nos disseram que a prefeitura tinha interesse na área para fazer uma elevada e uma estação de transbordo. Quando? Em 20 anos, talvez, mas tinha que reservar a área. Aí, esse investidor caiu fora e a gente voltou a ficar assim, esperando — reclama Liana.
Desde então, os proprietários receberam uma notificação dizendo que a área foi declarada de utilidade publica, mas nunca receberam contrapartida pelo terreno.
Negociações não avançam
Heloise Salvador, coordenadora da Dippahc, confirma os planos do município, mas diz que a negociação ainda está em andamento, a cargo da Secretaria Municipal do Planejamento (Seplan).
— O processo está lá ainda. É uma coisa bem antiga, parece que seria feita a permuta com outras áreas, mas são muitos proprietários e, entre si, eles não conseguiam se entender — aponta.
O titular da Seplan, Fernando Mondadori, respondeu nesta segunda-feira (9) ao pedido de informação sobre o mesmo tema protocolado pela Comissão de Desenvolvimento Urbano, Transporte e Habitação da Câmara de Caxias no dia 1º de março. A resposta diz que a administração atual "não desenvolve nenhuma atividade na edificação", "não há atividades de planejamento relacionadas à restauração" e nem "plano de recuperação e utilização da área", já que trata-se de imóvel privado.
Ao mesmo tempo, dois decretos assinados pelo ex-prefeito Alceu Barbosa Velho (PDT), um de 28 de dezembro de 2015 e outro de 4 de março de 2016, declaram a área de utilidade pública para desapropriação com urgência para "implemento de aparelho viário no entroncamento da Av. Rubem Bento Alves e Rua Professor Marcos Martini".
Conforme Liana, fazem 15 anos que a família Gianella tem que lidar com as consequências da indefinição do município.
— É por isso está lá daquele jeito. A coisa não anda e a gente não pode fazer nada, porque é da família mas na verdade não é — reclama.
A proprietária Ana Thomaz reconhece que é difícil para a prefeitura assumir uma área de quase dez mil metros quadrados, mas acredita que falta boa vontade para alcançar um desfecho.
— A gente tem interesse na história, mas se tivesse vendido para alguém que fizesse alguma coisa bonita, para a comunidade, já estava tudo resolvido. Eu acho que a prefeitura tinha que fazer um pouco mais. Porque no nosso caso o prédio está caindo, vai cair. Eles só nos atrapalharam até hoje, e quantas administrações já passaram? — questiona.
Na última quinta-feira (5), as duas proprietárias tiveram nova reunião com a Seplan. Elas esperam que a nova aproximação favoreça um desfecho rápido para a área.
— Hoje, já são 10 herdeiros, antes eram quatro. As pessoas vão morrendo e é cada vez mais difícil fazer um acerto. Nós só queremos resolver, tudo tem solução — aponta Liana.
No entanto, o respeito às estruturas é uma condição não negociável para a família.
— Se eles (a prefeitura) têm interesse de fazer algo, eu assino embaixo. Mas para fazer viaduto, estação de transbordo, não. Foi tombado para quê? Aí acaba com a área — avisa Ana.
UM POUCO DE HISTÓRIA
:: O lanifício foi construído pelo italiano Matteo Carlo Gianella, em 1915. Na época, funcionava como fábrica de ração, tecelagem e confecção. A produção era centrada em feltros e bacheiros utilizados nas montarias.
:: Com o falecimento de Matteo, em 1942, o negócio passou a ser conduzido pela viúva e pelos filhos Remo e Doviglio Gianella. Doviglio atuou por décadas junto ao lanifício. As indústrias Gianella encerraram suas atividades no final da década de 1980.
:: As edificações de tijolos artesanais do Lanifício Gianella têm influência da arquitetura industrial inglesa e foram tombadas em 2003.
:: Também integra o conjunto tombado a antiga moradia da família.
Para prefeitura, estrutura de proteção é adequada
Apesar de problemas pontuais, para a prefeitura de Caxias, a legislação em vigor dá conta de proteger o patrimônio histórico da cidade, conforme Heloise Salvador, coordenadora da Divisão de Proteção ao Patrimônio Histórico e Cultural (Dippahc). Ela cita que, dos 50 imóveis tombados atualmente, poucos apresentam problemas graves.
— É claro que eles não estão perfeitamente preservados, mas, dentro do possível, acredito que não tivemos mais queixas. Mas é lógico, também, que não é o ideal — reconhece.
Heloise acredita, inclusive, que o município vai mais longe que outras cidades no esforço para a preservação, devido ao incentivo que fornece aos proprietários.
— Caxias é uma das únicas cidades que tem a doação dos índices (construtivos). A maioria das cidades simplesmente tomba e pronto. Dá para ver em Porto Alegre, o estado em que estão os bens tombados — compara.
Ela diz que a medida tem dado certo e está, inclusive, sendo estudada por outros municípios. Ao mesmo tempo, acredita que a lei sozinha nunca vai conseguir abranger todos os casos.
— O proprietário nunca vai achar suficiente, a não ser que tenha um amor pela história, uma dedicação ao patrimônio muito grande. O ideal é que todos esses proprietários tivessem condições financeiras para manter os imóveis. Infelizmente, não é bem assim — lamenta.