Os primeiros dias após o desaparecimento da menina Naiara Gomes, de sete anos, foram marcados pelo choque, pela revolta e pela inquietação da comunidade que acompanhava o caso de perto. Mais de uma semana após o sumiço da criança, porém, o sentimento inicial aos poucos dá lugar a uma reflexão triste: "como puderam deixar isso acontecer?", cobra uma pergunta central.
O questionamento se repete em pensamentos, conversas privadas e no inconsciente coletivo exposto nas redes sociais. Neste momento, realmente, é difícil resistir a tentação de apontar dedos e tentar encontrar um culpado. A responsabilização de alguém deixaria tudo mais fácil de digerir. No entanto, é preciso reconhecer: ninguém é exclusivamente culpado do sumiço da menina - exceto um possível sequestrador, se a investigação revelar que ela foi raptada - mas toda a sociedade tem uma parcela de culpa.
As brechas que podem ter exposto a menina Naiara:
MORAR LONGE DE CASA
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro: todo menor de idade tem direito de frequentar uma escola pública e gratuita próxima de sua residência. Naiara está matriculada desde o ano passado na Escola Municipal Renato João Cesa, no bairro São Caetano, em Caxias do Sul, localizada a 2,3 quilômetros da casa dela, no Monte Carmelo. A distância, por si só, não indicaria que o ECA foi desrespeitado, pois há crianças que residem em pontos bem mais distantes em relação a uma escola. Mas Naiara tinha uma opção mais perto, a Basílio Tcacenco, no loteamento Aeroporto, uma comunidade mais integrada ao Monte Carmelo do que o São Caetano.
Se estivesse matriculada na Basílio, por ser um direito previsto no ECA, Naiara precisaria percorrer apenas metade do caminho (1,3 quilômetro) e teria a companhia de dois irmãos que estão no estabelecimento de ensino do loteamento Aeroporto. Seria uma rotina diferente e não haveria a necessidade de fazer o percurso até a Renato João Cesa, que lhe exigia diariamente 30 minutos de caminhada na ida e outros 30 minutos na volta, uma maratona para uma criança de sete anos.
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Em meados 2017, a tia da menina, Maria de Lurdes Gomes, protocolou na Central de Matrículas um pedido de transferência de Naiara para a Basílio. Os dois irmãos da criança, que também frequentavam a Renato João Cesa, conseguiram ser efetivados na Basílio na metade do ano passado. Para Naiara, porém, a porta se fechou por falta de vagas no 1º ano do Ensino Fundamental da Basílio. A família recebeu a informação de que deveria aguardar por uma transferência e a resposta nunca veio. Em 2018, Naiara continuou na Renato João Cesa para seguir no 2º ano. A tia, imaginando que o pedido de transferência feito lá no ano passado ainda estava de pé, não cobrou uma posição da Central e Naiara foi ficando no São Caetano. O nome da criança acabou se perdendo entre tantos pedidos de famílias na mesma situação.
ESTAR SOZINHA NA RUA
Até o final do ano passado, Naiara seguia de van para a Escola Renato João Cesa. Neste ano, a rotina mudou. Como a família dela ficou sem dinheiro para pagar pelo transporte privado, a tia e o tio paternos decidiram mandar ela e um primo de 15 anos a pé para o bairro São Caetano. Até o dia do desaparecimento, Naiara tinha o costume de levantar cedo, por volta das 6h, e sair de casa sempre perto das 6h30min, o que dava tempo de estar no colégio antes de a aula começar, às 7h30min.
Nem sempre o primo fazia companhia para Naiara. Em algumas ocasiões desde o início do ano letivo, em 19 de fevereiro, a menina foi vista circulando sozinha em ruas de pouco movimento, vencendo subidas, descidas e trechos margeados por matagais entre o Monte Carmelo, o Esplanada e o São Caetano.
Era do perfil de Naiara ser receptiva. No caminho de ida ou volta das escola, cumprimentava donos de mercados e moradores. Na frente da Renato João Cesa, gostava de entrar nas vans para dar um oi e pegar balas.
Nas imagens captadas por câmeras de um condomínio na manhã em que ela desapareceu, Naiara percorre tranquilamente a Rua José Bernardi. Ela parou para conversar com colegas da mesma escola que aguardavam por uma van. Os colegas embarcaram no veículo em seguida e Naiara seguiu adiante até ingressar na Júlio Calegari, via com grande circulação de carros, mas com poucos pedestres naquele horário da manhã.
Se era de sua natureza a espontaneidade, poderia Naiara ter dado atenção a algum conhecido que lhe fez desviar o caminho da escola? Poderia ela ter embarcado num carro para supostamente ganhar uma carona de algum estranho até o colégio? Essas possibilidades, que angustiam familiares, policiais e muitas pessoas que sequer conhecem a criança, são apenas possibilidades. A certeza é que Naiara, assim como qualquer outra criança, jamais deveria estar sozinha.
AUSÊNCIA DE SOLIDARIEDADE
Desde o desaparecimento de Naiara, as redes sociais impulsionaram críticas pelo fato de a criança estar desacompanhada num caminho tão longo para a escola. Esse detalhe crucial favoreceu o suposto rapto da criança, mas levanta outro questionamento: a ausência de solidariedade. São muitas Naiaras que andam sozinhas no caminho da escola por negligência familiar, impossibilidade dos pais ou de outros parentes de cumprir a tarefa da vigilância ou por falta de dinheiro para o transporte particular. Ao mesmo tempo, são raros homens e mulheres que se permitem estender a mão para zelar pelo coleguinha do filho na ida ou na volta do colégio. Embora professores, diretores, motoristas de vans, Associação de Pais e Mestres (APM) e vizinhos enxerguem diariamente a gurizada pelas ruas, não há uma mobilização comunitária para oferecer esse tipo de ajuda. Desde o início do ano letivo, Naiara esteve quase sempre solitária pelas ruas dos bairros Monte Carmelo, Esplanada e São Caetano. Era vista pelos colegas que passavam de van, cruzava por pais com seus filhos no trajeto da mesma escola, cumprimentava comerciantes, moradores, vizinhos. Curiosamente, ninguém procurou a família para oferecer um acompanhamento na ida ou na volta. Curiosamente, nem a Secretaria da Educação, nem a escola, nem Conselho Tutelar receberam questionamentos sobre a exposição recente da criança. Tampouco houve manifestação da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (Cipave), que, em tese, foi criada justamente para proteger estudantes.
SEM TRANSPORTE
Das contas do ano passado, a tia de Naiara, Maria de Lurdes Gomes, não conseguiu quitar dois meses do serviço prestado pelo dono de uma van que levava a criança até a Escola Renato João Cesa. Maria de Lurdes acreditava que poderia contratar novamente o transporte lá pelo final de março, quando quitaria o débito. Na retomada das aulas neste ano, a opção foi mandar Naiara e o primo dela a pé até que a pendência se resolvesse. A prefeitura, que poderia amenizar o drama familiar, só fornece ônibus para estudantes da zona rural que residem a mais de dois quilômetros da escola. Diz a prefeitura que isso está na lei municipal, o que é verdade.
Se a legislação trava a devida inclusão de Naiara e de tantas crianças, há quem pense diferente. Maria, assim como muitas famílias sem recursos, desconhece um entendimento de desembargadores do Tribunal de Justiça do RS. Para os magistrados, todo o estudante que mora a mais de dois quilômetros da escola tem direito à locomoção paga pelo município ou Estado, independentemente se é na zona urbana ou rural. Alheia à jurisprudência do TJ e ao artigo do ECA, Maria não imaginava que poderia pedir esse auxílio via Justiça ou sequer recebeu dicas para buscar o direito que beneficiaria Naiara.
À Rádio Gaúcha, a Secretaria da Educação de Caxias do Sul afirmou não ver relação entre o acesso ao transporte escolar gratuito no município e o desaparecimento da menina. Com essa justificativa, a assessoria de comunicação da pasta informou que não pode repassar qualquer informação sobre como o benefício é concedido ou funciona na cidade. Em fevereiro, no entanto, a Smed divulgou que seis mil estudantes eram atendidos em Caxias, entre eles, moradores da zona rural e de crianças e adolescentes que moram no loteamentos populares Rota Nova e Campos da Serra, que não tem escolas próximas.
Jairo Machado, um dos proprietários de vans que levam alunos para a escola de Naiara, diz que os transportadores até poderiam oferecer carona para a menina ou para outras crianças na mesma situação, mas estariam correndo o risco de infringir a lei que regra o transporte de estudantes.
— Pode parecer que estamos indiferentes, mas não é verdade. Eu mesmo já levei crianças de carona. Estamos sempre com o veículo lotado. Se colocarmos alguém a mais, pode vir o fiscal e multar, somos repreendidos, há regras para trabalhar. Por outro lado, antes a Naiara usava transporte, ela vinha com o primo. Então, pode ser que nem todo mundo tenha percebido a situação — afirma Machado.
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