Destino favorito de milhares de gaúchos no verão, o Litoral Norte do Rio Grande do Sul também atrai empreendedores, que todos os dias percorrem dezenas quilômetros da faixa de areia oferecendo diversos produtos e petiscos aos veranistas.
Pudera: durante os meses da alta temporada, de janeiro a meados de março, a população das cidades do Litoral Norte aumenta, em média, 133,6%, conforme estudo da Fundação de Economia e Estatística (FEE).
Leia mais
Final de semana será de tempo bom na Serra e no Litoral
Pelo quarto ano seguido, Caxias tem saldo negativo na geração de empregos
Por baixo dos guarda-sóis, essa movimentação de turistas abriga um complexo sistema econômico, que abrange o fornecimento de mercadorias de fora do Estado, a migração de trabalhadores de diversos pontos do Brasil e o contraste entre vendedores capacitados que buscam uma renda extra no verão e ambulantes que dependem dos três meses de praia para sobreviver durante o restante do ano.
Os comerciantes são tratados pelo poder público como trabalhadores autônomos. Na prática, porém, muitos adultos e adolescentes que atuam na areia constituem o elo final (e mais fraco) de uma cadeia produtiva e atuam sem carteira assinada ou direitos trabalhistas.
O Pioneiro esteve em Capão da Canoa, uma das praias mais cobiçadas pelos ambulantes, para conhecer alguns dos rostos por trás das redes e das pipas, dos picolés e do açaí vendidos à beira mar.
Entre a praia e a lavoura
Diversos vendedores ambulantes que disputam a atenção de possíveis clientes na beira da praia vêm de outros estados e vivem no Litoral Norte apenas pela duração da temporada, caso de Fábio Gouvêa dos Santos, 20 anos — completados no último dia 31 de dezembro, em Capão. É o segundo ano em que Fábio, que vive na pequena José Gonçalves de Minas, em Minas Gerais, passa o verão na praia gaúcha vendendo espetinhos de queijo coalho assado.
— Se ficasse lá, estaria à toa. É parado — comenta, sobre sua cidade natal no período de férias.
Com menos de cinco mil habitantes, conforme estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2017, José Gonçalves de Minas tem como atividade principal o plantio de café, diz Fábio.
— No final de fevereiro a gente volta, passa um mês e pouco e vai para a colheita — conta.
"A gente", no caso, são outros conhecidos de Minas Gerais que trabalham com Fábio na venda do queijo coalho. Na verdade, o rapaz soube da oportunidade de trabalhar no verão por conta de familiares que já tinham vindo para o litoral. No entanto, ele não sabe explicar o porquê da escolha por praias gaúchas.
Apesar de a atividade parecer simples e depender de pouca estrutura — somente o queijo e carrinho com as brasas para assar o alimento — Fábio é somente a ponta de uma cadeia produtiva.
— O produto na verdade vem de São Paulo. O rapaz para quem eu trabalho vai buscar, traz e a gente só prepara — explica.
O empregador de Fábio atua como fornecedor do alimento e do carrinho e depois distribui os insumos para que outras pessoas vendam pelo litoral. Capão é território do Fábio, mas há mais vendedores designados em outras praias, além de "organizações" concorrentes. É assim que funciona a venda de quase todos os produtos na faixa de areia.
— Muita gente acha que (a gente) ganha bastante, mas na verdade a gente faz toda a temporada, e no final sai com uma faixa de R$ 3 mil, R$ 3,5 mil — projeta.
Folga? Só quando chove. O valor ganho em cerca de três meses é estimado, já que depende do movimento. Este ano está mais fraco que o anterior, calcula Fábio. Mas a atividade é imprevisível: segundo ele, é possível passar um dia inteiro caminhando e não vender nada e, no outro, comercializar 50 espetinhos por R$ 5 cada.
A atividade é essencial para o sustento no restante do ano, já que a colheita de café garante trabalho por no máximo três meses em Minas Gerais.
— O ganho lá também varia, depende do empregador. Por dois, dois meses e meio, a gente sai com R$ 5 mil, R$ 6 mil. Mas vai do esforço de cada um — explica.
Fábio, que mora com o pai em Minas, diz que já se acostumou com o trabalho, mas a atividade tem prazo de validade. Ele projeta conseguir algo melhor para o futuro:
— Ainda não parei muito para pensar, mas tenho vontade de pegar um serviço melhor. Já terminei o Ensino Médio, então não compensa. É bem sofrido, o café também. Se fosse para ficar nisso, não valeria o esforço que a gente faz para terminar de estudar, né?
Precariedade e desesperança
Entre todos os produtos à disposição no litoral, talvez os mais tradicionais sejam as redes e mantas. Os vendedores são os mais numerosos também: na beira da praia, há sempre um carrinho abarrotado com os tecidos no campo de visão dos veranistas.
O produto, geralmente, vem do nordeste do país, assim como os vendedores. Um deles é Welbo Robson de Moura, 33. Ele chegou em dezembro a Capão da Canoa, vindo de Serra Negra do Norte, no Rio Grande do Norte, com cerca de 12 mil habitantes. Welbo diz já ter trabalhado em Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Pará em pelo menos 14 anos no comércio ambulante.
Mesmo com a longa trajetória, ele relata que é a primeira vez que trabalha em uma praia.
— A gente vem de longe, meu patrão tem muitos anos que vem para cá. Eu é a primeira vez. Eu morava a 480 quilômetros, se não me engano, de Natal, a capital do meu Estado. Nem conhecia o mar. Nunca tinha trabalhado em areia.
O cenário, porém, não o impressiona. Welbo mantém a pose de quem já viu de tudo, trabalhando desde cedo. Cedo demais, talvez. Antes de se dedicar à venda das redes, atuava em uma fábrica de bonés, que emprega boa parte de seus conterrâneos em Serra Negra do Norte. As condições duras parecem ter roubado sua perspectiva de futuro.
— Eu não tenho estudo, meu trabalho me dá o pão de cada dia. Tenho três filhos, dá para se manter. Minha vida é uma crise, desde o dia que eu nasci. O nordestino nunca teve chance. Mas eu não tenho que reclamar dela não. A vida é o que deus dá para gente — reflete.
Vendendo redes, Welbo parece ter várias obrigações de um vínculo empregatício normal, mas nenhuma garantia. Ele depende do patrão para a compra do material. O intermediário também aluga a casa onde Welbo mora com outros seis vendedores durante a temporada. A taxa de R$ 912 cobrada pela prefeitura é divida entre os ambulantes e o fornecedor das redes. Ao mesmo tempo, o ambulante faz o próprio horário e acredita que o rendimento depende de seu esforço, variando entre R$ 40 e R$ 65 por dia, em média, somando os dias bons e os ruins. O plano é ficar no litoral gaúcho até o Carnaval. Depois, Welbo deve tentar a sorte em outro canto do Brasil.
— A vida não é o que a gente quer, é o que deus dá, né? Eu vivo disso aqui e tenho que me acabar com isso aqui.
Capacitação é diferencial
A capacitação faz diferença na areia. O cachoeirinhense Kelvin Pinheiro Soares, 26, aproveitou a experiência como promotor de eventos para ganhar uma renda extra no verão. Pelo segundo ano, ele escolheu Capão da Canoa para empreender durante a temporada, a partir da ideia de um amigo.
— Ele teve a ideia original de trazer um produto de qualidade para a praia e agregar um entretenimento — explica.
Para se diferenciar da concorrência, o investimento começa no carrinho, que tem forma de navio, e na roupa: de dezembro a março, Kelvin encarna o Capitão Açaí. Para completar a performance, ele dá show para atrair os clientes: ao chegar perto de um grupo de veranistas, ele liga o som e engata uma dança, embalado pela música Show das Poderosas, da Anitta. É a tática para divulgar o produto.
— A gente faz uma dancinha, um agito, e a galera gosta — relata.
A iniciativa dá resultado. É só o "navio" ancorar na areia que veranistas se aproximam para comprar o açaí com leite condensado e granola, que custa R$ 10.
A atenção com o produto também é diferencial, segundo Kelvin. Todos os itens vem embalados individualmente. É possível pagar com cartão de crédito, o que ajudou a fidelizar os clientes.
— A gente consegue dar uma opção saudável, de qualidade, e agregar o algo que as pessoas não esperam. Tu está com a tua família curtindo e aparece um cara vestido de capitão e começa a dançar, trazer alegria. É uma satisfação ver o sorriso das pessoas. Esses detalhes acabam atraindo mais o pessoal — acredita.
O trabalho é duro. São entre oito e nove horas de caminhada por dia, intercalada por cerca de 50 dancinhas. Mas o esforço compensa, garante Kelvin.
— Esse mês de janeiro está sendo um pouco abaixo do esperado, mas mesmo assim, vale a pena.
"Criei seis filhos com isso"
Este é o último ano em que Adão Antenor da Rosa, 76, venderá picolés. Natural do município de Estrela, mas estabelecido em Capão há várias décadas, ele está há 42 anos conduzindo seu carrinho pela faixa de areia.
Ao contrário do que sua atividade leva a crer, ele conta que optou pelo comércio ambulante pela estabilidade que o trabalho trazia.
— Trabalhei em tudo o que era serviço, como vigilante, em bancos... Isso em Porto Alegre. Depois peguei isso aqui e fiquei. Valia mais a pena, antes sempre tinha que encontrar trabalho. Aqui, sempre teve serviço — lembra.
A longevidade no comércio se explica pelo vínculo com a empresa que produz os sorvetes. A fabricante sempre forneceu os produtos e o carrinho, em troca de uma parcela das vendas. Deu tão certo que Adão decidiu se mudar com a família para a praia.
— Meus filhos vieram pequenos para cá. Aqui era melhor mesmo, lá (em Porto Alegre) era muito assalto, insegurança. Deu para criar melhor eles. Eu criei eles nisso aqui (com a venda de picolés). Eu e minha companheira. Depois ficou só eu, né? Agora estão todos trabalhando, casados. Se eu tivesse ficado lá, não teria isso — reflete.
Ao contrário dos outros ambulantes de verão, Adão também trabalha no inverno, em festas ou eventos privados. Durante as mais de quatro décadas de trabalho, ele acompanhou as transformações da cidade.
— Antigamente, eram só casas, não tinha prédios. Vi isso crescer, a gente vendia e o pessoal conhecia, era todo mundo mais unido. Depois desapareceram os antigos, aquela coisa toda...
Segundo ele, com o passar dos anos, os próprios carrinhos mudaram. Primeiro, eram mais pesados para empurrar. Depois, lhe ofereceram uma bicicleta. Gostou tanto e declinou dos modelos novos, mais leves. Prestes a se aposentar, Adão não decidiu como ocupará o tempo livre, mas garante que não leva arrependimentos:
— Se reclamar, deus castiga. Eu me acostumei (com a atividade) O que eu precisava, consegui. Tinha seis filhos pequenos, todos cresceram bem, nenhum deu errado, estou feliz da vida.
Como conselho para quem está começando, ao ver os carrinhos se multiplicarem na areia, ele indica:
— Tem espaço para todo mundo. É só trabalhar direitinho.
Informalidade com vista para o mar
Se parcela considerável da população caxiense tem como destino o Litoral Norte no verão, o comércio ambulante da cidade não poderia ficar de mãos abanando. Em Capão, a reportagem encontrou o senegalês Fallou Ndiaye, 31, vendendo óculos de sol — por R$ 20 ou R$ 25 cada um, dependendo do modelo.
Fallou, que nos últimos meses ocupava as quadras centrais de Caxias vendendo produtos semelhantes, foi para o litoral com outros oito colegas, e deve ficar até o início de fevereiro aproveitando o movimento. O senegalês admite que não tem licença para atuar como ambulante. Ele faz parte dos 5% trabalhadores não regularizados atuando na praia, conforme estimativa da prefeitura de Capão da Canoa (veja quadro).
Mesmo irregular, o negócio dos óculos de sol funciona de forma semelhante ao dos outros produtos vendidos na praia: um intermediário compra os itens em São Paulo e repassa a diversos vendedores que se distribuem pelo litoral, conforme relata o senegalês.
A atividade, porém, não foi a primeira escolha de Fallou. A história dele é dramática e já foi relatada pelo Pioneiro. O imigrante trabalhava como padeiro em Caxias quando foi agredido por taxistas em agosto de 2017. Conforme a ocorrência registrada na época com a ajuda de testemunhas, Fallou havia tomado um táxi e combinado o pagamento de R$ 40 com o motorista. Na volta, o taxista teria pedido mais dinheiro. Fallou se recusou a pagar mais e o motorista passou a ameaçá-lo com um facão, insultando-o. O profissional, então, teria chamado outros dois taxistas, que começaram a agredir o imigrante.
Mulheres que estavam passando pelo local perceberam a confusão e chamaram a polícia, que encaminhou Fallou ao Pronto-Atendimento 24 Horas. Quase sete meses depois, o senegalês ainda guarda cicatrizes e tem dificuldade de mover um dedo da mão direita — o que o impediu de voltar ao trabalho. Desde então, está no comércio de rua. Fallou não sabe se alguém foi responsabilizado pelas agressões em Caxias.
Nativos também disputam espaço
Não é só quem vem de fora que aproveita a praia para ganhar dinheiro. O verão também garante o sustento de boa parcela da população de Capão da Canoa, caso de Anderson Moura de Oliveira, 28. Morador do município, ele vende pipas à beira mar desde que tinha 12 anos, atividade que herdou da família.
Anderson encara a atividade com naturalidade: é o meio que tem para sustentar a esposa e o filho, e só.
— Num dia bom, a gente vende umas 50 pipas. Eu estou há 15 anos aqui, o pessoal já conhece — afirma.
O dinheiro da temporada tem que garantir o resto do ano. Nos meses de inverno, Anderson só trabalha se conseguir "bicos" em obras da cidade. Questionado se escolheria uma praia se pudesse tirar férias, ele hesita:
— Ah, agora não sei. Rio de Janeiro, talvez?
A informalidade é tratada com normalidade por quem precisa garantir o sustento à beira mar. Um adolescente de 16 anos, por exemplo, aproveita a movimentação da temporada para ganhar dinheiro. Neste ano, ele e o cunhado começaram a trabalhar durante o verão para complementar a renda da família. Os dois confeccionam furadores para fixar o guarda sol na areia feitos com canos e vendem os produtos na praia.
— O dinheiro a gente divide. Ficamos o dia inteiro aqui e quando acaba (o produto) gente faz mais e volta no outro dia — explica.
Durante o relato do jovem, participantes da Travessia Torres-Tramandaí, a maior prova de corrida do Rio Grande do Sul, passam pela areia ostentando a mensagem "chega de trabalho infantil".
O adolescente segue contando: os pais dele também trabalham em atividades envolvendo a praia, mas ele almeja escapar deste destino.
— Acho que está valendo a pena, para ajudar a família. No resto do ano eu estudo, estou no 8º ano. Mas quero entrar para o quartel. Eu gosto dessas coisas.
O COMÉRCIO AMBULANTE EM NÚMEROS
* De acordo com o coordenador da fiscalização da prefeitura de Capão da Canoa, Hélio Tellechea Filho, há 356 vendedores ambulantes cadastrados atuando na cidade. Destes, 86 vendem alimentos e outros 170 comercializam produtos variados.
* O número de comerciantes de produtos variados aumentou 31,8% em relação ao verão passado. O de vendedores de alimentos cresceu 62,3%.
* Conforme Tellechea, parte do crescimento pode ser explicada pelo maior rigor da fiscalização do município neste ano.
* A prefeitura estima que de 3% a 5% dos comerciantes estejam em situação irregular, o que, no total, indicaria um universo de cerca de 370 vendedores disputando a faixa de areia da cidade.
* O coordenador explica que os vendedores de produtos diversos necessitam de uma licença de ambulante para atuar. Quem trabalha com alimentos também necessita de outra autorização da Secretaria da Saúde.
* As taxas cobradas variam conforme o produto, de acordo com o Código Tributário do município.
* Dez fiscais atuam na praia atualmente.