Poderia ter sido um galho ou uma taquara, coisas que todo campo tem. Poderia ter sido o estepe de um veículo ou uma corda. Poderia. Nada disso estava ao alcance do agricultor Jorge Palandi, 59 anos, no final da tarde da última terça-feira. Havia somente o pasto rasteiro e um açude com cerca de 2,5 metros de profundidade no distrito de Vila Oliva, interior de Caxias do Sul. Nas águas escuras desse açude, um idoso, suas duas filhas e um neto se debatiam pela sobrevivência. Abaixo deles, o corpo de outro adolescente, já morto.
Sem saber nadar, Palandi corria em volta, mas não visualizava qualquer objeto que pudesse ser arremessado. O olhar do agricultor varava o campo, a estrada e nada. Ao lado dele, uma mãe e o filho de seis anos tomados pelo desespero. Foi a cena mais dramática que Palandi viu sob o sol quase poente. E isso ele jamais esquecerá.
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Passados alguns dias da tragédia, que abriu uma chaga numa família de tradicionalistas da Serra e deixou muita gente sem entender o que de fato aconteceu, Palandi decidiu trazer a público a sequência de eventos que tirou a vida de Adão Pinto Vieira, 65, de Bruna, 20, de Brenda, 14, e de Gabriel Gasperin Pinto, 14. Apenas Paulo, 17, irmão de Gabriel, sobreviveu. O grupo havia entrado na água para tentar salvar Gabriel, que, minutos antes, havia caído de um cavalo dentro do açude no sítio de Adão, avô dos adolescentes.
Palandi refletiu bastante nos últimos dias. Após ter presenciado a morte de pessoas que sequer conhecia, o agricultor se deu conta da possibilidade de isso ocorrer novamente em qualquer propriedade rural:
– Todos que têm açude em suas casas, em seus campos, coloquem coisas para evitar afogamentos, para facilitar o resgate de pessoas. Façam isso. Ninguém dá muita atenção, mas é perigoso, é muito perigoso – brada Palandi.
O apelo faz sentido. Peças flutuantes como bombonas e caixas de isopor geralmente podem ser encontrados nos galpões das propriedades. Na mata que cresce perto de açudes, há galhos grandes e taquaras. Numa emergência, porém, dependendo da distância, é difícil recorrer a esses objetos, caso do afogamento testemunhado por Palandi em Vila Oliva.
– Então por que não deixar isso na beira dos lagos? – questiona o agricultor.
Pedido de socorro
Palandi cruzou a família por acaso na terça-feira. Ele seguia para casa depois de ter trabalhado o dia todo num pomar em Vila Oliva. Na estrada que percorre duas ou três vezes por semana, entre a localidade e o distrito de Fazenda Souza, viu uma jovem acenando nervosamente na beira do asfalto. Era Bruna. Palandi parou a caminhonete e a moça pediu se o agricultor sabia nadar.
– Ela me disse que alguém tinha caído no açude. Rapidamente, voltou para dentro da propriedade passando pela cerca. Vi o avô (Adão) e a outra menina (Brenda) correndo para o açude. Voltei para a caminhonete para achar alguma coisa que pudesse ser usada – lembra Palandi, que ainda gritou para que eles não entrassem na água.
O agricultor não localizou nenhum objeto. Do asfalto, a cerca de 10 metros do açude, viu Adão, as duas jovens e Paulo darem as mãos e formarem um cordão. O grupo se aproximou do lago.
– Eu não sei o que estava acontecendo. Gritei novamente para não entrarem na água. Atravessei a cerca e tentei barrar, mas foi um efeito cascata: todos caíram na água, um atrás do outro. Me aproximei a uns dois metros e todos se debatiam.
A mulher de Adão e o filho assistiam à cena e também gritavam.
– Pedi para a mãe cuidar do menininho e tentei ajudar. Dei dois passos dentro da água, mas meus braços não alcançavam eles. Percebei que havia um poço ali. Eu iria morrer se continuasse. Gritava para eles irem até o barranco, mas não conseguiam.
Segundo Palandi, Adão foi o primeiro a perder a consciência. As duas jovens afundaram em seguida. Paulo, por sua vez, bateu os braços até alcançar a terra firme e se agarrar. Toda a cena durou cerca de três minutos. O agricultor parou estupefato diante do lago sem acreditar no que acabara de presenciar.
– Esse menino foi um herói. Ele saiu da água e apenas me disse que não estava aguentando mais e pensou que ia morrer. Não olhou mais para trás e foi para casa. A mãe e a criança também saíram. Pensa numa cena triste. Não tinha mais o que fazer. Uma vara ou um galho de dois metros teria mudado tudo – desabafa o agricultor.
Apelo às autoridades Os corpos foram retirados da água por outras pessoas. O agricultor tenta imaginar o que levou o grupo a dar as mãos e entrar na água. Ninguém da família sabia nadar, mas todos se arriscaram para tentar resgatar Gabriel.
– Quando cheguei, não havia ninguém se debatendo na água. O menino já não estava mais na superfície. Mas a família não desistiu e foi atrás. Seria diferente se alguém pudesse ter jogado alguma coisa que boiasse. Quantas vidas teriam sido salvas? – pondera Palandi.
Na próxima semana, o agricultor pretende procurar a Câmara de Vereadores e a prefeitura para levantar um debate sobre açudes e lagoas. Para ele, o poder público pode encontrar formas de estimular e exigir o uso de artefatos improvisados ou fabricados especificamente para salvamentos em locais assim.
O sargento dos bombeiros e coordenador-adjunto da Defesa Civil do RS, Cristiano Becker da Silva, concorda com as alternativas citadas por Palandi. Ele sugere botijões de gás, estepe, taquaras e galhos compridos, entre outros.
– Qualquer objeto que a pessoa possa se agarrar é de grande ajuda. Entrar na água é pior. Em toda a minha carreira, todos as pessoas que entraram na água para salvar alguém não voltaram. Se tu vais entrar num rio ou açude, por que não deixar isso por perto? – reforça Becker.