Marcelina Corrêa Pinto, mais conhecida em Bento Gonçalves pelo apelido de Keka, segue em estado grave na UTI do Hospital Tacchini após ser vítima de um atropelamento durante a madrugada do dia 11 de agosto, na BR-470. Aos 40 anos, Keka era vista perambulando pelas ruas pedindo esmolas agarrada a garrafas de bebida alcoólica. A degradação da jovem começou no final da adolescência, quando ela escolheu a rua para viver após supostamente ver a carreira de modelo frustrada. O triste desenrolar da trajetória de Keka mostra a dificuldade que serviços de assistência social e as próprias famílias enfrentam para resgatar dependentes químicos e alcoolistas das ruas e trazê-los de volta à dignidade. Situação semelhante é vista também em Caxias do Sul, com Viviane Borges dos Santos, a Vivi do Loló, que há mais de 20 anos dorme ao relento e nega qualquer ajuda para tratamento contra o vício.
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– Como tivemos condições um pouco melhores, minha mãe permitia que ela almoçasse lá em casa quando tinha uns 10 anos. Na época, ela já pedia comida. Hoje, é dinheiro para a bebida – lembra uma vizinha, que mora no bairro Municipal.
Amigos confirmam o boato de que a beleza de Keka a levou a vivenciar uma breve passagem como modelo, que resultou em convites para que desfilasse em países europeus. No entanto, a única experiência na profissão teria acontecido em Porto Alegre no início da adolescência, conforme lembra uma amiga que prefere não se identificar. Com uma possível frustração pela carreira não ter deslanchado, ela retornou Bento Gonçalves quando tinha por volta de 20 anos, já com um comportamento bastante diferente.
– Ela se tornou acompanhante de luxo, porque era a mais bonita das gurias. Olhos claros, pele bonita, cabelo ondulado. Com o passar dos anos, porém, a situação dela decaiu bastante e passou a fazer programas na rodovia – revela a amiga, de 38 anos.
Como a mendicância de Keka iniciou ainda na infância, há uma brecha que poderia ser suprida caso o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), recém criado na época, fosse cumprido. Para outra amiga de Keka, a ausência de um Conselho Tutelar na época também contribuiu para que a jovem não deixasse as ruas:
– E por se tratar de uma mendiga, e não mendigo, a situação fica ainda mais criminalizada. O machismo existe até nestes casos. Pouco se fez quando ela era criança e pouco se faz também agora, quando adulta.
Abordagens eram tentativas em vão
Keka estudou somente até o 3º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Félix Faccenda, segundo os registros da instituição. Ela reprovou no segundo ano e, ao insistir na terceira série, abandonou os estudos. Mesmo com a ausência de escolaridade e o vício pela bebida, ela é conhecida pelos bento-gonçalvenses pelo bom humor e respeito. A equipe da Assistência Social da prefeitura confirma que se trata de uma mulher doce e atenciosa, mas que se revoltava diante das abordagens que a convidavam para tratamento.
– Nestes casos, há um trabalho importante com a família, que sempre tentou reverter esta situação, inclusive por via judicial –afirma a coordenadora de Proteção Social Especial de Bento, Lisia Cristina Daros.
Em relatório enviado pela secretaria ao Pioneiro, consta a informação de que Keka não se tratava de alguém desassistido pela família. Em novembro do ano passado, ela foi internada compulsoriamente, com a autorização de uma irmã, que obteve a curatela junto ao Poder Judiciário - o que significa que ela se tornou incapaz em função da dependência química. Keka fugiu da instituição de saúde enquanto a familiar assinava a documentação para baixa. Mesmo padecendo nas ruas, além da dependência química, Keka não possui nenhuma outra doença.
O motorista responsável pelo atropelamento fugiu do local sem prestar socorro médico, e ainda não foi identificado. Ainda que trágico, o acidente era previsto por muitos moradores. Jornalista que atua na Rádio Difusora, cujo estúdio está situado na Avenida Oswaldo Aranha, uma das movimentadas da cidade, Felipe Machado chegou a publicar um vídeo em que a mulher interrompia o trânsito e causava confusão entre os carros. A cena foi flagrada em 22 de janeiro deste ano, mas se repetia todos os dias, segundo o radialista.
– Não era uma semana sim, outra também. Eram todos os dias. Nós chamávamos a prefeitura, que dizia que ela não queria ajuda. Infelizmente, aconteceu – lamenta.
"É preciso fortalecer vínculos"
Dificultar a fuga do dependente químico por meio do fortalecimento de vínculos com equipes de saúde e assistência social é uma das alternativas apontadas pela doutora em Psicologia Clínica e pós-doutora em violência e suicídio, Marta Conte. Em passagem por Caxias do Sul no último sábado, ela falou sobre Vulnerabilidade Social e Desafios para a Integridade, em palestra promovida pelo Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG).
A caxiense trabalha no Hospital Sanatório Partenon, primeiro hospital público do Rio Grande do Sul destinado ao atendimento de tuberculosos. Como 70% dos beneficiários da instituição vivem em condições vulneráveis e boa parte mora nas ruas, ela compartilhou dados importantes: para reverter a rua como morada, é indispensável que o usuário seja apresentado à programas que fortaleçam trabalho e renda. A oportunidade para esta introdução pode acontecer quando ele chega ao sistema de saúde para tratamento de qualquer doença. Se está ao alcance da rede de saúde, não deve-se desperdiçar a oportunidade de deixá-lo ir sem atendimento. Além disso, ressalta que caso as regras de abrigos municipais fossem menos rigorosas, dificultariam o retorno destes hóspedes para as ruas.
– Ele são desligados de um abrigo, de outro, e desistem, preferem voltar para a rua. Se alguém foge de uma instituição de saúde para tratamento químico, por exemplo, não podemos perder o contato com ela. Uma das saídas é trabalhar o vínculo, ensiná-lo que pode abandonar o tratamento quando quiser por conta própria – ensina.
Marta afirma que até mesmo moradores de rua têm tido menos interesse em permanecer nestes ambientes devido aos índices de violência, e que mulheres são minoria. No entanto, é preciso desmarginalizar este público:
– Quando você passa a escutá-los, percebe que são pessoas que já tiveram uma casa, sonhos, uma família. O Movimento Nacional da População de Rua, consolidado há cinco anos, vem para mostrar isso.