A catástrofe climática de maio despertou mais uma vez questionamentos a respeito da estabilidade das encostas às margens das rodovias da Serra. Embora os volumes de chuva tenham atingido níveis nunca antes vistos, as estradas da região já são conhecidas por apresentarem problemas em períodos úmidos.
Diante de tamanho estrago e com orçamento reforçado, principalmente pela ajuda da União, órgãos rodoviários iniciaram elaboração de projetos para resolver definitivamente os pontos onde houve deslizamentos. A promessa, contudo, também é reforçar pontos que podem ter risco, mas que não sofreram danos na enchente.
Para Bruno Susin, professor de Engenharia Civil da Universidade de Caxias do Sul (UCS) com atuação na área de geologia aplicada à engenharia, existe deficiência na gestão dos pontos de risco nas rodovias gaúchas. A consequência é a perda de vidas, maior custo de reparos e o que chama de "apagar incêndio" quando os deslizamentos ocorrem. Confira abaixo a entrevista concedida ao Pioneiro:
Pioneiro: Deslizamentos aqui na Serra não chegam a ser novidade. Normalmente ocorrem com chuva um pouco mais intensa ou prolongada, mas em maio a situação foi muito mais grave e generalizada. O que temos de característica de relevo e solo e também de estradas? Elas são adequadas para a região?
Bruno Susin: A tecnologia vai avançando, vai evoluindo, e nesse sentido podemos pensar também na questão ambiental, que é um tema que vem se tornando mais complexo no meio técnico. À medida que o ser humano vai entendendo o impacto que ele gera e como que esse impacto pode repercutir no futuro, começam a surgir leis, regras e normas para se ocuparem nessas áreas, se intervir em áreas de proteção ambiental. Vamos fazer uma comparação da BR-116 de Caxias até Vila Cristina, e a Rota do Sol, que são estradas executadas em momentos bem distintos. A Rota do Sol já teve que conviver com toda essa restrição ambiental. Então os projetos, as soluções adotadas já tinham que estar resolvendo esse conflito. A BR-116 não, é uma obra muito mais antiga e foi ocupada de uma outra forma. Aquela história que dizia que se largava o burro e ia fazendo a estrada atrás. A tecnologia, os equipamentos, a percepção que se tinha do meio físico na época era outra, comparado com a época em que se executou a obra da Rota do Sol. O trecho que desce a Serra, que tem viadutos, túneis, uma preocupação com a preservação ambiental. Quando se fala de uma obra antiga como a da BR-116, foi realizado um corte. Você tem uma região muito declivosa, então se corta esse barranco, com esse material resultante do corte, eu conformo um aterro e aí eu consigo construir a pista. Só que isso coloca o material geológico ali numa situação de risco. Esse risco tem que ser analisado e estudado. Se vamos conviver com risco, então que pelo menos a gente saiba disso, saiba onde está esse risco.
Você citou a questão ambiental. Não se fazia avaliação, na época da construção da BR-116, por exemplo, de precipitação, de características de solo?
Na engenharia a gente projeta, executa e testa. Eu preciso de um bom projeto, de uma boa execução, de um acompanhamento de qualidade, uma fiscalização, um controle tecnológico ao longo da execução dessa obra para garantir que aquilo vai atender os requisitos especificados no projeto. Eu penso que antigamente se usava muito mais essa testagem, se preocupava mais com a qualidade da obra do que hoje em dia. Uma obra rodoviária tinha um respaldo técnico maior. Hoje temos algumas situações em que não existe controle ou não existe projeto, existe um "fazejamento", principalmente nessas situações de crise, de acidente, de perda catastrófica. O cara vai lá e refaz a estrada de qualquer jeito, é isso que não pode acontecer. O que temos que ter na engenharia é acompanhamento técnico do início ao fim e depois também, durante a operação. Os hidrólogos estão falando que essa chuva aconteceu nessa intensidade antes, mil anos atrás. É muita água, não sei se os empreendimentos do futuro vão estar preparados ou devem estar preparados para essa quantidade de chuva. Mas tanto o empreendimento lá da década de 1960, 1970, como esse aqui da década de 2000, têm que ter um sistema de drenagem bom, que funcione, que atenda, que tenha sido dimensionado, que tenha sido executado dentro dos parâmetros, testado, fiscalizado.
Antigamente se preocupava mais com a qualidade da obra do que hoje em dia
E que depois ela fique desobstruída, porque muitas vezes há falta de manutenção...
Exatamente, e mais importante de tudo, precisamos pensar e entender que a engenharia existe também na operação das estruturas. O maior custo da engenharia civil está na operação. O que que é mais barato? Eu ficar todo ano indo recolher as pedras que caem do talude, fico 10 anos fazendo isso e vou gastar R$ 1 milhão, ou hoje eu pego esse R$ 1 milhão, projeto e executo uma contenção ali para não cair mais pedra? A questão é justamente trabalhar essa nossa cultura de que a infraestrutura é uma despesa, um custo. A infraestrutura é um investimento. E um investimento mal feito às vezes é pior do que não investir nada.
Em projetos novos de estrada, as encostas são em um ângulo de 45 graus normalmente, o que não é o caso dessas estradas mais antigas. Teria que se trabalhar melhor as encostas da região?
O Daer e o Dnit são órgãos técnicos muito bons, muito responsáveis, que têm bons técnicos lá dentro. Eles têm condição, eles têm experiência, para trabalhar nessa parte. Nesse sentido, eles vão apagando incêndio, o que a gente está fazendo agora é apagar incêndio. O Estado, os municípios, devem buscar esse apoio técnico, ter corpos técnicos, equipes que sejam capazes tecnicamente de resolver problemas, de tomar decisões nessas situações de maior crise. Mas o Estado também deve fazer os devidos investimentos para entendermos onde estão esses riscos, como eles acontecem, para sabermos se a gente está convivendo com algum risco ou se a gente vai eliminá-lo, porque é mais barato eliminar esse risco agora do que ficar remendando. É o Estado se organizar e buscar a engenharia, a boa técnica no mercado e aplicar isso, porque quando falamos em uma estrada ou em uma contenção tem envolvidos 10 engenheiros e a responsabilidade técnica desse processo também é compartilhada. Existe um mercado que está "manco" aqui no Estado, a sociedade precisa desse respaldo técnico e não está tendo, daqui a pouco, por questões políticas, financeiras e ambientais também. A questão é colocarmos "eu preciso ir de uma cidade para outra, é meu direito". O Estado tem que garantir isso, como que ele vai fazer?
Muitas vezes tem uma dúvida do quanto se tem de acompanhamento técnico constante e criterioso nessas regiões...
Assusta, preocupa quando o talude cai na estrada, mas aquele talude caindo é resultado de uma série de questões que têm que ser analisadas. Daqui a pouco estamos falando de uma escala de trabalho que tem que ser ampliada. Eu preciso olhar para a estrada inteira e saber onde estão esses pontos de risco e a partir disso entender como que eu vou conviver, administrar, eliminar esses pontos de risco. Acho que é nessa linha que temos que trabalhar daqui para frente.
Nem sempre precisa fazer uma contenção? Às vezes monitorando é possível ir levando?
Identificado o risco, o que fazemos? Tem que fugir, tem que passar por fora da cidade? Temos três opções: ou monitoramos esse risco - e acho que é isso que falta aqui no Estado, um acompanhamento mais sério, mais registrado, correlacionando com outros dados que agora a gente vai começar a monitorar com mais detalhe, como a pluviometria, e então monitora - ou elimina o risco, se faz uma intervenção na área, um ajuste geométrico, implementa uma estrutura de contenção, ou a gente convive com o risco, que é o mais complicado de todos. À medida que se sabe que existe um risco, tem que se tomar uma atitude, e o que a gente acaba vendo aqui no Estado é aquela plaquinha, na beira da estrada, com o carrinho e umas pedras caindo em cima, ou seja, estamos optando por conviver com o risco. Eu não sei qual o motivo daquela placa estar lá, mas significa que se sabe que existe algum tipo de risco ali. O que eu vou fazer se estiver passando de carro?
Acaba se jogando a responsabilidade em quem está passando e, em tese, seria a vítima desse risco...
Exatamente, e nem estamos falando do prejuízo social, regional, que acontece quando uma estrada dessas fica interrompida. É um problema de engenharia e isso vai ter que ser resolvido pela engenharia.
É muito doloroso ter que remediar depois que houve perda de vida, depois que tem um passivo enorme para resolver
Do ponto de vista da tecnologia atual, o que se adota que pode reduzir o risco em relação a estradas construídas décadas atrás?
Os riscos que existiam lá em 1940 são os mesmos que existem hoje. As leis do ser humano conseguimos negociar, as leis da natureza, não. Então precisamos organizar as ideias para entender que, olha, eu vou implementar uma infraestrutura aqui, existe essa legislação ambiental que eu preciso atender, mas antes tem a questão da segurança, da qualidade do empreendimento. Nesse sentido, a boa técnica vem, e o que se fazia lá em 1950, 1940, devemos fazer hoje também. Durante a evolução do país, se perdeu o rigor técnico. Acho que o momento agora é ímpar, temos que retomar isso. Em algum momento se optou por fazer dessa forma e ficou sendo feito assim, e agora a gente tem um problema enorme para resolver. A engenharia civil vai ser muito importante nesse processo, porque eu acredito que, a partir de agora, pesados investimentos em infraestrutura e um aquecimento desse mercado da construção no Estado, vai ser fundamental pra retomada. Não estou dizendo para fazer um muro em toda a BR-116 de fora a fora, mas usar a boa técnica, usar a engenharia, usar a geologia para qualificar, para entender se existem, onde estão, como se comportam esses riscos e tomar medidas a partir disso. Vai ter um lugar que vai ficar a plaquinha com a pedra, mas que seja em um lugar, e que antes e depois desse lugar tenha uma obra. E que tenha monitoramento desse lugar, não é só uma plaquinha que está lá porque está lá. Falta esse fechamento, essa organização maior da engenharia, das geociências aqui no Estado para que a gente comece a abordar esses problemas de uma forma mais confortável. É muito doloroso ter que remediar depois que houve perda de vida, depois que tem um passivo enorme para resolver. É dolorido e é mais caro, é traumatizante.