As lojas do antigo shopping MartCenter, em Caxias do Sul, estão de portas abertas para a solidariedade. O local virou o ponto de coleta para doações em grandes quantidades aos desabrigados pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Somente nesta semana, nove carretas chegaram trazendo cerca de 370 toneladas de alimentos, roupas, produtos de higiene e de limpeza, além de remédios. Outras seis estão previstas até o sábado (18). No local, criou-se o chamado "Comboio Solidário", que nasceu a partir dos primeiros reflexos causados pelas condições climáticas, no ano passado.
— Desde setembro, quando aconteceram as enchentes em Roca Sales, eu comecei a fazer um trabalho social em função de ter familiares lá. Meus amigos e outras pessoas ficaram sabendo, nas redes sociais, que eu tinha familiares em situação complicada e começaram a querer me ajudar. As duas irmãs mais velhas do meu pai vivem lá. Uma perdeu tudo o que havia na casa, e a outra, a parte de baixo da residência de dois pisos — revela uma das organizadoras do comboio, Tatiane Anderle, de 43 anos.
— Chegando em Roca Sales, nos deparamos com um cenário muito triste e resolvemos abraçar uma causa maior, que seria um bairro inteiro. Ali a gente reconstruiu 38 casas do zero, desde a ajuda da limpeza, móveis, eletros, roupas, ajuda nas documentações, tudo — destaca a outra responsável pelo comboio, Franciele Freitaz, de 40 anos.
Mas como uma profissional da área da beleza, trabalhando como lash design (profissional que faz alongamento e extensão de cílios) e micropigmentadora, como é o caso de Tatiane, e uma personal organizer, profissão de Franciele, conseguiram criar um comboio solidário com mais de 140 voluntários?
— A Fran viu que eu estava fazendo isso, começou a fazer também e depois resolvemos unir as forças para formar um grande time. Eu comecei com cinco pessoas, e hoje temos 20 só na organização do time. E com isso nós fomos pegando os voluntários que vieram nos ajudar — destaca Tatiane.
Mas a garagem da casa de Franciele, onde eram destinados os produtos arrecadados até o começo da semana, começou a ficar muito pequena.
— Nós estávamos até segunda-feira atuando na garagem da minha casa, com os vizinhos nos ajudando, emprestando bagagem de garagem e tudo mais — diz Franciele.
Foi então que surgiu a possibilidade de aproveitar a área do MartCenter, uma vez que as lojas estão fechadas.
— Conseguimos estas carretas de doações, porém, nós precisávamos de um local que comportasse essas 370 toneladas de mantimentos que vieram e entramos em contato com um parceiro nosso, a Imobiliária Bassanesi, que conversou com os proprietários e nos cederam este espaço gratuitamente para este momento — aponta Tatiane.
Comboio chega a locais ilhados: "Já não tinham mais o que comer"
E para que a distribuição dos alimentos seja feita no momento certo em que a demanda chegar é preciso organização na entrega. E o responsável por liderar o grupo de camionetes 4x4 é o médico veterinário Tiago Piccoli, de 38 anos. Por volta das 9h desta quinta-feira (16), Tiago e um grupo de amigos já estavam ajustando uma carga de doações que iria a regiões como os vales do Taquari e dos Sinos.
— Esta vai pra Palmas e as outras três ou quatro caminhonetes vão pra Arroio do Meio, e um distrito de Encantado. Estamos com quase 20 caminhonetes saindo todos os dias pra o Vale do Taquari, o Vale dos Sinos e a região de Caxias. Meu trabalho é coordenar um grupo de caminhonetas 4x4 pra fazer a distribuição dos produtos que a gente recebe pelo interior, pro pessoal que a Defesa Civil não consegue atender, porque não tem efetivo, não tem condição — explica Tiago.
O chefe do comboio ainda comentou como o grupo de voluntários tem dificuldade em entregar as doações nas casas de pessoas que estão praticamente ilhadas pelas enchentes:
— É muito comovente, porque são pessoas que às vezes o mantimento não chega a elas. Ontem (quarta-feira) acessamos uma localidade em Roca Sales, na Serrinha. Eles estavam ilhados e o último mantimento que eles receberam foi na segunda-feira, através de um helicóptero. São 20 famílias e já não tinham mais o que comer. Então, pra essas pessoas que recebem, é uma gratificação. Eles tentam dar o que eles têm, caqui, fruta, mandioca, qualquer coisa que eles têm, para agradecer. E esse é o combustível que nos motiva todos os dias pra descer lá de novo.
O sucesso do grupo se espalhou para regiões de todo país. E eles só recebem doações em grandes quantidades. Não adianta chegar ao MartCenter com uma cesta básica ou agasalhos, até porque roupas não são a prioridade no momento.
— E agora está vindo gente do Mato Grosso, de Curitiba, nos procurando para mandar os mantimentos. Mas tudo em função da missão do grupo, da forma de trabalho. Conforme as nossas idas a todas essas cidades afetadas, a gente vai criando a amizade com pessoas de confiança que nos passam informação do que a cidade está precisando. Essas pessoas não têm coligação com nada na cidade, com política, com comunidade. A gente escolhe um pessoa lá e ela nos passa as informações — lembra Tatiane.
— Quem manda as carretas com doações não queria deixar tudo no centro de distribuição, eles queriam que o destino final fosse as pessoas. Nos contataram porque viram o nosso trabalho no Instagram, a nossa entrega "formiguinha", que a gente chama, que é de mão em mão — complementa Franciele.
E além de alimentos e roupas, o grupo recebeu nesta semana uma carga somente com medicamentos para hospitais gaúchos.
— Todos os hospitais de campanha da região de Estrela e Cruzeiro do Sul entraram em contato. A diretoria do hospital de Roca Salles pediu urgentemente ajuda de remédios que eles não estavam recebendo. Como conseguimos uma doação muito grande, começamos, então, a fazer essa distribuição e ter essa medicação para esses centros que estavam precisando — revela Franciele, que ainda completou:
— Hoje a gente tem uma distribuição controlada, conseguimos atender eles com uma demanda muito maior, até de helicóptero já fomos, comboios de carros especializados, medicações extremamente controladas, com hora para chegar, com tempo para chegar.
São mais de 140 voluntários, e ainda é pouco
Rafaela Witt de Liz, de 29 anos, poderia estar pensando no próprio futuro, por estar desempregada. Mas, em vez disso, decidiu ajudar aqueles que mais precisam do que um emprego no momento.
— Fiquei sabendo que aqui vieram nove carretas, aí eu resolvi ajudar. É bem puxado, mas eu acho que é bem prazeroso a gente poder ajudar e contribuir com a sociedade. Eu estou cuidando da parte de cama, mesa e banho, ajudando o pessoal na separação dos lençóis e das cobertas.
Rafaela é uma das mais de 140 pessoas que têm ajudado na separação, carregamento e entrega das doações. E apesar de parecer grande, o número ainda é insuficiente para atender o tamanho da demanda do grupo.
— Estamos usando somente as redes sociais através do @comboiosolidario. Precisamos de voluntários. Às vezes a gente diz: "Amanhã, se vier, traz uma pessoa junto contigo, ou traz duas, quanto mais melhor". Porque a gente precisa de ajuda e temos muita triagem a fazer das 8h às 21h. É só chegar aqui com vontade, com alegria e muita força de vontade — finaliza Tatiane.