Era feriado do Dia do Trabalhador, 1º de maio, e a chuva não cessava nas cidades da Serra. Na manhã daquela quarta-feira, o cenário formado por paredões de pedras, terra e vegetação da BR-470, na Serra das Antas, entre Bento Gonçalves e Veranópolis, começou a desmoronar. O acúmulo de água dos últimos 30 dias até esta quarta-feira (22) foi de cerca de 890 milímetros, quantidade esperada para seis meses nos dois municípios. Com o solo encharcado, as duas cidades registraram 500 deslizamentos de terra, que derrubaram trechos da rodovia, casas, estabelecimentos comerciais, veículos e causaram a morte de pelo menos 17 pessoas. Até o momento, cinco mulheres continuam desaparecidas e mais de 1,6 mil pessoas foram resgatadas entre as duas cidades.
O cenário deixado pelos deslizamentos passa por uma série de trabalhos e estudos feitos por equipes do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Por causa da destruição e os riscos de novos desmoronamentos de terra na região, não há qualquer previsão mínima de retorno do tráfego entre Bento Gonçalves e Veranópolis pela BR-470.
De acordo com o superintendente regional do Dnit, Adalberto Jurach, para viabilizar um tráfego emergencial entre as duas cidades, 91 funcionários atuam na região. Os trechos da rodovia que antes estavam tomados pelos deslizamentos, foram liberados no dia 16 de maio e a passagem está atualmente restrita para a realização dos trabalhos e tráfego de equipes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Corpo de Bombeiros.
— Ainda tem áreas que estão passando por remoção dos deslizamentos, árvores e vegetação. Outras estão na etapa de limpeza de bueiros. Para os estudos relacionados à reconstrução, estamos fazendo o mapeamento tridimensional com uso de um sensor que é embarcado em drone. Ele permite a substituição da topografia tradicional e, com um escaneamento 3D que mostra a situação atual da região, ganhamos tempo nos projetos e, consequentemente, nas obras — explica Jurach.
As imagens tridimensionais, as sondagens e as vistorias técnicas, permitem que os engenheiros envolvidos possam projetar soluções detalhadas para cada local atingido pelos desmoronamentos. Quando os drones sobrevoam um ponto onde houve um deslizamento de terra, escaneiam os dois lados da rodovia que foram afetados.
— Concluímos todo o segmento da BR-470 que sofreu estragos, escaneando 80 metros para cada lado da rodovia, a partir do eixo, e iniciamos nesta quarta-feira, dia 22, o escaneamento dos locais onde os desmoronamentos ultrapassam esses 80 metros. Já os trabalhos de sondagens servem para identificar os materiais e a profundidade de material, como solo, rocha e rocha alterada, e colabora com o detalhamento de solução que está sob responsabilidade dos engenheiros — pontua o superintendente.
Todos os estudos e avaliações relacionadas às condições da rodovia tem como objetivo encontrar soluções para a liberação do tráfego no local. Devido aos estragos, segundo a prefeitura de Veranópolis, cidade que registrou sozinha 300 deslizamentos de terra, não há acesso direto com Bento Gonçalves. O trajeto atual para o município vizinho passa por Vila Flores, Antônio Prado e Flores da Cunha e tem cerca de quatro horas de duração.
— Em diversos locais as ocorrências geotécnicas causaram danos à plataforma da rodovia. Houve danos parciais em alguns lugares e em, no mínimo seis locais, foram danos totais da rodovia. Com isso, não há possibilidade para a liberação de tráfego. As equipes trabalham pelo caminho emergencial, mas é uma condição crítica — afirma Jurach.
A fase atual dos trabalhos de limpeza e estudos da rodovia são a base para o início da reconstrução da BR-470. A estimativa inicial é de que o custo para as obras seja de R$ 500 milhões. Segundo o superintendente, estão sendo avaliados a possibilidade de viadutos, cortinas atirantadas, tela grampeada, tela atirantada, concreto projetado, muros de gabião e barreiras para contenção de fluxo de detritos em todos os pontos atingidos pelos desmoronamentos.
Casal de Caxias do Sul ficou preso entre os deslizamentos e conseguiu voltar para casa
Ainda na manhã daquele dia 1º de maio, David Tramontes e Aparecida Tramontes, de Caxias do Sul, tentavam retornar para a maior cidade da Serra quando ficaram ilhados entre dois deslizamentos na BR-470, no lado de Veranópolis. Das 7h às 17h, o casal presenciou os tremores de terra e viu os deslizamentos acontecendo nos morros íngremes do lado de Bento Gonçalves.
— Estávamos descendo a Serra das Antas e nos deparamos com o primeiro deslizamento, logo depois da curva da ferradura. Ali nós paramos, tentamos voltar, mas logo para cima já tinha outro deslizamento. Uma senhora cedeu uma tenda que estava abandonada e ficamos em muitas pessoas acolhidas lá. Tinha uma equipe da Polícia Rodoviária Federal lá também e eles foram abrindo caminho, disseram que dava para subir a pé, abandonamos o carro lá mesmo e fomos com eles, mas tudo isso demorou muitas horas para acontecer, foi um pesadelo — lembra David.
De acordo com o chefe de policiamento da PRF de Bento Gonçalves, André Benedetti, a equipe que ficou presa no mesmo local auxiliou no resgate de 130 pessoas que estavam ilhadas. Todas as pessoas foram acolhidas em Veranópolis. Enquanto os deslizamentos aconteciam ao longo daquela quarta-feira nas duas cidades, outra equipe da PRF fez o resgate de cerca de 50 pessoas ilhadas na BR-470 no lado de Bento Gonçalves.
Segundo lembra David, o cenário daquele trecho ilhado era pior que qualquer filme que já assistiu com a esposa. A avalanche de terra, árvores e pedras cobriu a rodovia e até que chegasse o momento em que conseguiram sair do local, viram os deslizamentos acompanhados pela chuva que não parava e os barulhos estrondosos da terra.
— Estávamos com frio, todos molhados, a chuva não parou nem um minuto naquele dia. As pessoas gritavam de desespero, tinham crianças lá. Eu lembro das árvores inclinadas e de uma que era enorme caindo. Pensamos o tempo inteiro que o pior ia acontecer. O tremor de terra era o dia inteiro e o barulho das terras caindo também. Tinha uma correnteza de água muito forte na estrada, água escorrendo do morro e nós não sabíamos se conseguiríamos sair de lá. A gente ficava o tempo inteiro olhando para cima para ver se não ia deslizar terra em cima da gente — conta David.
Depois de conseguirem sair com auxílio da PRF e de jipeiros que conhecem a região, David e Aparecida foram abrigados no Recanto Marista Medianeira, de Veranópolis. Lá foram acolhidos por freis que, conforme David, “mostraram a bondade no momento de desespero” até que pudessem voltar para casa.
— No sábado, dia 4, chegamos em casa. Quando colocamos o pé dentro de casa, foi uma sensação como se a gente tivesse chegado no céu. Eu tenho muitos pesadelos de que estou lá ainda. Acho que na primeira barreira, depois de vermos tudo o que a gente viu, quando eu cheguei para atravessar, não conseguia. Me deu fraqueza nas pernas, um negócio ruim, minha pressão foi lá em cima e nós tínhamos ajudado muitas pessoas a passarem, quando chegou a minha vez eu não conseguia. Olhava para cima e via tudo balançando como se fosse cair e não consigo mais dormir sem ter pesadelo com aquilo. O David também não dorme direito, é um trauma que não passa — conta Aparecida.
"BR-470 se tornou um canteiro de obras"
Os trabalhos da PRF para viabilizar os acessos e resgatar pessoas ilhadas, em auxílio com equipes do Corpo de Bombeiros e da Brigada Militar, ocorreram desde a manhã do dia 1º. Conforme André Benedetti, houve autorização para que uma aeronave decolasse de Porto Alegre até a Serra para auxiliar nos trabalhos, mas o helicóptero não pôde pousar porque não havia forma de aterrissar devido às condições climáticas, que poderiam contribuir com um acidente aéreo.
Os pontos com maior número de pessoas resgatadas e mortas na região foram a Casa Bucco, na BR-470, do lado de Bento Gonçalves, e a Ponte Ernesto Dornelles, que faz a divisa do município com Veranópolis. A guarnição recebeu solicitações de resgate nos locais, mas não tinha forma de acessar os pontos e o apoio aéreo só pôde chegar até a ponte na sexta-feira, 3 de maio. Os trabalhos para acessar os locais mais difíceis por trilha contaram com apoio de voluntários e moradores, que fizeram o uso de quadriciclos próprios.
Desde os trabalhos de resgate e abertura de acessos até os bloqueios na BR-470 para evitar que os moradores da região tentem passar pela rodovia, a PRF tem mantido a fiscalização no local, visto que ainda há risco de novos deslizamentos de terra. Nesta quarta-feira o bloqueio da rodovia que começava no km 203 foi alterado para o km 200, liberando o tráfego de moradores ao local que estava bloqueado.
— Fizemos junto com o Dnit um controle das pessoas que acessam a rodovia, deixando apenas viaturas ou serviços essenciais que estão ali prestando apoio nessa limpeza. Precisamos reforçar o pedido para a população de que não vá para esses locais para visitar a destruição ou tirar fotos. A BR-470 é um local ainda bastante perigoso e qualquer tráfego atrapalha o serviço da frente de trabalho. Então, a gente precisa de compreensão da população nesse momento porque o local oferece riscos, a rodovia se tornou um verdadeiro canteiro de obras que pode desmoronar novamente — afirma o chefe de policiamento.
Por causa da situação de risco na rodovia e do trabalho intenso das equipes para viabilizar os projetos de reconstrução, a orientação da PRF pede para que moradores de Bento Gonçalves e Veranópolis denunciem motoristas que estejam desobedecendo o bloqueio da BR-470, na Serra das Antas. O fluxo está proibido por tempo indeterminado entre o km 200 e o km 186. As denúncias sobre condutores que estejam desobedecendo o bloqueio podem ser feitas pelo telefone da PRF, no 191.
Solo encharcado contribui com risco de novos deslizamentos
De acordo com o geólogo Caio Torques, a chuva excessiva na região da Serra foi um evento extremo e que, como o solo continua encharcado, ainda há riscos de novos deslizamentos de terra.
— O solo ainda está muito encharcado, então qualquer volume de água causa risco. A partir do momento que entre num período de estiagem e sem chuva, o solo se estabiliza, mas como ainda estamos vivendo esse período chuvoso, o risco é bem alto de novos deslizamentos. E esses deslizamentos sempre ocorreram e vão continuar ocorrendo, são áreas de encostas íngremes, que estão propensas a ação da gravidade. E isso é acelerado pela chuva, então, sempre em períodos chuvosos tem o risco de ocorrer desmoronamentos — explica Torques.
Os cerca de 890 milímetros de chuva que atingiram Bento Gonçalves e Veranópolis fizeram a água agir como um lubrificante no solo das duas cidades. Conforme o geólogo, por esta quantidade nunca vista na região, houveram os casos de desmoronamentos nas duas cidades serranas.
— A água serve como um lubrificante e aumenta significativamente o peso do solo. A ruptura, esse desmoronamento, acontece no limite entre a camada de solo e a rocha. Ou seja, o excesso de água faz com que a camada de solo se desestabilize e escorregue sobre a rocha. Quando isso acontece desencadeia o que chamamos de fluxo de detritos, que leva morro abaixo a terra, pedra, blocos, construções, muros, árvores, tudo que está no caminho é levado pelo deslizamento — afirma o geólogo.
Apesar da situação, os estudos para a reconstrução que estão sendo feitos pelo Dnit, como estruturas de contenção, estabilização das encostas e sistemas de drenagem, podem contribuir para que o cenário dos mais de 500 desmoronamentos entre as duas cidades não se repita no caso de novos períodos excessivos de chuva.