Quanto trabalho, cuidado e poesia cabem em uma videira? A planta que carrega a fruta símbolo de uma região inteira é a personagem principal da série de reportagens Quatro estações da videira, que irá misturar história e cultivo, aproximando o leitor de uma das principais heranças econômicas e culturais dos italianos na Serra gaúcha.
Em oito matérias, ao longo das estações, será possível conhecer melhor todo o processo de preparo das parreiras e o envolvimento dos agricultores logo após o fim da colheita de uma temporada, até a vindima seguinte. Um passo a passo que abordará os detalhes da produção em cada período, fundamentais para garantir qualidade e quantidade da uva consumida in natura ou destinada aos vinhos, sucos e espumantes daqui, tão apreciados mundo afora. Histórias de resiliência, união familiar e incertezas com o clima, que se repetem ano a ano, também farão parte da série.
A percepção de viver todas as estações definidas mescla-se com a identidade dos moradores da Serra, segundo a turismóloga bento-gonçalvense Ivane Fávero.
– Nós temos que nos dar conta que somente o Sul do Brasil tem quatro estações. A maior parte do país tropical não vive isso. Mas aqui, neste clima mais temperado, nós ainda temos isso bem marcado e, justamente, pelas mudanças das videiras – explica.
No outono já em andamento, o primeiro destaque vai para o início dos trabalhos, com os vinhedos trocando as cores das folhas, e os produtores concentrando a atenção na limpeza dos terrenos e na retirada dos galhos velhos e amarração dos que irão substitui-los, na conhecida desponta. Essa ação prepara a videira para a dormência, que dura até o fim do inverno.
E é na estação mais fria do calendário que estão outros dois momentos essenciais do crescimento do parreiral. Entre os meses de junho e agosto, o acúmulo de frio e o combate à geada serão protagonistas, quando serão mostradas as diferentes maneiras de lidar com o fenômeno natural e tecnologia empregada no processo por quem lida com a cultura, tudo para diminuir as perdas na safra.
Na primavera, trabalho intenso e poesia se confundem embaixo dos vinhedos. Em uma das fases mais lindas do seu crescimento, os viticultores iniciam as podas necessárias para manter o crescimento da planta, enquanto a poesia reserva o chamado choro da videira, já no período de pré-brotação. O fluxo de líquido adocicado ocasionado justamente pelas podas indica que as raízes estão ativas e absorvendo água do solo. Depois, a evolução proporciona mais um espetáculo de cores, quando ocorre a floração das parreiras.
O verão traz o ponto alto. Em seu solstício, no mês de dezembro, a videira está quase pronta para a colheita, que se inicia, na prática, geralmente a partir dos primeiros dias de janeiro. Antes dela, há o desenvolvimento da baga e a virada de cor das folhas. E todo o esforço de centenas de famílias será brindado na vindima, que se estende até março. Meses de muita expectativa e trabalho intenso.
– O clima, o sol, a temperatura também mexem com nossa psiquê, nosso estado de espírito. Nós também nos tornamos mais introspectivos no outono e no inverno e mais expansivos, mais alegres na primavera e no verão. Com esse cenário, observando toda mudança, nos conhecemos melhor, nos entendemos melhores como seres humanos – completa Ivane.
"A videira me ensina que tudo tem sua hora", diz integrante de família de cinco gerações de produtores
Plantar uva é coisa séria – e de família. A atividade que permite à Serra se destacar em um mercado que desafia os produtores todos os anos é legado que fica de pai para filho em centenas de propriedades espalhadas pela região.
Na série Quatro estações da videira, os Mariani, de Bento Gonçalves, irão mostrar todo o esforço feito em meio aos parreirais para manter uma tradição que já dura cinco gerações.
Foi no Vale dos Vinhedos que Pedro Mariani ergueu as primeiras videiras e deu início ao cultivo há mais de sete décadas. O filho Agostinho herdou o ofício, passado para o ainda jovem Pedro Mariani Neto. Hoje, aos 74 anos, ele segue ajudando os filhos Gustavo e Cristiano na lida, que também conta com o neto Nicolas, de 22, garantindo a sequência familiar.
– Às vezes, parece que não é verdade. Eu penso no meu falecido avô, que começou com poucas parreiras, há mais de 70 anos e, de geração para geração, olha o que virou. Eu me emociono pensando. É um orgulho muito grande para todos nós – garante o patriarca.
Os irmãos Gustavo e Cristiano dividem as terras da família, que ao todo chega aos 14 hectares. A produção anual de 200 toneladas de uva é toda destinada à Cooperativa Garibaldi, onde são associados. Mais velho dos dois, Gustavo chega aos 46 anos garantindo se sentir feliz com a escolha de dedicar a vida ao vinhedo que cuida todos os dias.
– Tudo é história, porque nós aprendemos com os que estavam aqui e ficamos. Criamos um compromisso de seguir com a propriedade também porque é tanta coisa plantada, tanto investimento e esforço, que sentimos em largar. Mas também não é um problema, porque eu gosto. Faz parte da minha vida – relata Gustavo.
Em meio a tantos ensinamentos vindos do pai e da própria experiência com a plantação e as incertezas do cultivo, o viticultor afirma que a relação com a videira trouxe lições que transcendem a profissão.
– Eu penso bastante no tempo. Quando podamos, já imaginamos como ela vai brotar. Quando sai o primeiro brotinho, imagino que cachinho de uva vai sair daí. E como vai ser a safra? Vai amadurecer bem, vai ter qualidade, quantidade? Tudo respeitando o tempo da videira. Ela me ensina que tudo tem sua hora. Que cada etapa é uma etapa, cada passo é um passo. Não tem como antecipar, prever. Ela mostra um pouco de como é a vida. Ensina o caminho certo, sem precisar, muitas vezes, fazer muita coisa, apenas entender o tempo das coisas – avalia.
E no caminho até a colheita, Gustavo espera que todo o esforço que a família Mariani ainda tem pela frente seja recompensado com uma ótima safra.
– Eu quero chegar lá em março e ver que cada momento, cada dia que eu vim aqui trabalhar, valeu a pena. Celebrar o nosso trabalho – projeta o produtor.
A eterna expectativa pelo clima
Planta e viticultor vivem uma expectativa que se renova ano a ano. A videira tem um ciclo independentemente do manejo e do cuidado que o produtor tem com ela.
Apesar de manutenção adequada e tecnologias cada vez mais avançadas, o clima ainda dita bastante o rumo da safra e como a fruta brotará para a vindima. Uma das entidades envolvidas no acompanhamento das culturas locais e que buscam novas formas de melhorar o processo de cultivo é a Embrapa Uva e Vinho.
Quem gerencia a equipe por lá é o chefe-adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da entidade, Henrique Pessoa dos Santos. Depois de uma temporada com a cultura castigada pelas fortes chuvas e pouco frio devido ao efeito El Niño, que gerou muitos prejuízos à região, a projeção para a próxima safra é que o fenômeno não retorne.
– Neste trimestre que envolve abril, maio e junho é a transição do El Niño para La Niña. Como vai ser ainda é especulativo. Se vai ser mais intenso, mais atenuado. A característica dele é com o ano mais frio e seco. O inverno mais frio, mais definido. O que está confirmado é que não teremos chuva em excesso. O que ainda pode mudar (na previsão) é entre a neutralidade – analisa Santos.
E as primeiras impressões, para o pesquisador, já garantem que as temperaturas baixas tão aguardadas pelos setores econômicos, muitos deles ligados à uva e ao vinho, estarão bem presentes nos próximos meses.
– Comparado com o ano anterior, já temos a expectativa de que o inverno será mais frio. Porque há já um prognóstico de menor umidade nesse período. Então, há a tendência de entrar mais frentes frias e, consequentemente, um somatório de um horas de frio maior. O que é mais positivo para a região – projeta.
"A simples mudança de manejo na planta, ela já é uma inovação", afirma engenheiro agrônomo
Tamanho receio com o clima e perdas causadas por geadas e chuvas de granizo, por exemplo, têm sido amenizados nos últimos anos graças à tecnologia empregada no cultivo. E nem todas dependem de grandes investimentos ou implemento de ferramentas modernas no auxílio à função.
Para o engenheiro agrônomo e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, no campus de Bento Gonçalves, Leonardo Cury, muitas vezes a inovação está em técnicas avançadas e melhoradas, na planta e no solo, que oferecem aos agricultores menos perdas e, inclusive, mais facilidade no plantio e colheita.
– Hoje, a tecnologia é fundamental na produção. Até brinco com os meus alunos que as pessoas que não a utilizarem, e não precisa nem ser uma tecnologia de ponta, mas básica, vão acabar saindo do mercado. Porque facilita muito a vida do produtor. E tecnologia é qualquer manejo ou ferramenta que possibilite que a produção seja melhor e com mais qualidade. A simples mudança de manejo na planta, ela já é uma inovação – observa Cury.
Entre as características locais da planta está a colheita única anual, diferentemente de outras regiões, onde cenários diversos e temperaturas altas durante os 12 meses do ano proporcionam mais safras no período. E a origem dos parreirais, trazidos pelos italianos até aqui, explica a força para resistir e crescer na região, como indica o pesquisador da Embrapa.
– A videira vem de uma região que passa por invernos muito extremos, de neve, congelamento, e aqui nós não temos isso, mas ela é preparada para tolerar até menos 34°C, menos 40°C nesse estado de dormência. E essa condição é o que limita a ter só um ciclo no ano. Por isso que ela é bem definida. Outono, caem as folhas, entra nesse período de inverno e vem a dormência. No verão, na primavera, vai brotar, vai crescer, vai vegetar, vai produzir, fecha-se o ciclo. Fecham-se as quatro estações que temos o privilégio de ver – avalia Santos.