Pelas ruas da cidade, perde-se o controle na imaginação ao tentar contabilizar quantas histórias foram vividas em um determinado lugar. Quantos encontros, desencontros, reencontros. Quantas pessoas cruzaram caminhos em comum, nunca mais se viram, se cruzaram novamente tempos depois. Encontros assim, fazem parte também do mundo pet e de pessoas em situação de rua em Caxias do Sul.
Uma amizade conquistada só pelo olhar. Pelo rabo abanando indicando felicidade. Lambidas e latidos. Não é raro - pelo contrário, é muito comum - encontrar uma pessoa em situação de rua com um animal acompanhando - na maioria das vezes, cães. A Fundação de Assistência Social (FAS) não tem um número preciso de quantas pessoas que estão na rua têm algum animal que esteja sob responsabilidade, entretanto, ao conversar com quem atua no Centro Pop, não é estranho falar o nome do humano junto do nome do pet que o acompanha.
Valdir e Doralice. Ederson e Cara. Rafael e Pablo. Carol e Lasanha. A educadora social Cristina Souza sabe o nome de todas as duplas que já passaram e passam pelo Centro Pop. Para ela, o vínculo criado com o cãopanheiro é fundamental na construção do processo de tirar essas pessoas da rua. Com isso, sempre que uma pessoa em situação de rua procura os serviços de casas de passagem - atualmente, são duas e um residencial em atuação em Caxias -, é informado que a família, ou seja, o cachorro ou os cachorros que acompanham aquela pessoa, também é bem-vinda.
— A gente conhece, sim, pela dupla. É uma relação muito parceira entre eles, é a família deles, faz parte da família deles. Sempre é informado para eles que podem vir para casa de passagem com os seus animais. A gente sempre deixa isso muito claro e que nunca é o nosso desejo separá-los e que isso não é um impeditivo para que deixem de sair da rua — comenta Cristina.
No ponto de vista da educadora social, o processo de saída da rua se inicia pelo desejo daquela pessoa em deixar daquela situação. E a companhia de quatro patas contribui para trabalhar a responsabilidade, o cuidado e a entrega aos vínculos de pessoas castigadas pelas realidades e a frieza das ruas.
— O animal, muitas vezes, é um fator de motivação e ajuda muito nas relações. É por meio do animal, do cuidado com a relação com o cachorro, com o gato, que a gente vai chegando na pessoa, trabalhando neste vínculo também para transformar este cuidado que eles têm com o animal em um cuidado com ele mesmo. Quando eles estão na rua, os animais são mais bem cuidados, eles têm um cuidado muito maior com o seu pet do que com eles mesmos. De levar para o pet shop, de deixar de comer para dar comida para o cachorro e a gente vai trabalhando isso, esse cuidado que eles têm com os animais, do quanto é importante também cuidarem de si — afirma.
É no Centro Pop que fica à disposição o serviço de complexidade que regula as vagas de casas de passagem e também o encaminhamento de atendimentos necessários, desde oferta de banho e café da manhã, até encaminhamento de documentos, guarda de pertences e assistência social e psicológica.
Uma das casas que é destino para quem busca um local temporário é a São Francisco de Assis, na Avenida Circular Pedro Mocelin. Não à toa, o local tem no nome o padroeiro dos animais. O local conta com um canil e já teve até mascote.
Simultaneamente, a casa já recebeu quatro cachorros. Dos cômodos, o único onde não é permitida a entrada é nos dormitórios, em respeito aos demais moradores. Na hora de se recolher, a porta dos dormitórios vira ponto de descanso dos cachorros, que não perdem o costume de guardar o sono do companheiro humano. Quem relata essa rotina é a assistente social, Nilva Paniz, que trabalha no local há 10 anos - a São Francisco de Assis funciona desde 2013 e conta com canil desde 2014.
Um ano após a criação do canil, um casal chegou com uma cachorrinha. Segundo Nilva, o casal ficou apenas uma noite. A cachorrinha, Nikki, ficou por oito anos. Se sentiu tão em casa naquela noite que escolheu o lugar para ficar durante o resto da vida. A assistente social conta que Nikki deu cria a sete filhotes, foi castrada e cuidada por toda a equipe, que fazia vaquinha para subsidiar alimentação e o atendimento veterinário à mascote.
— Nós adotamos ela, como mascote da casa, todos os profissionais faziam vaquinha para a ração, para as roupinhas, caminhas. Os acolhidos todos conheciam, acho que era uma presença que transformava como se fosse a casa da gente, todos conversavam, gostavam dela, então acho que foi um período bem bom ter a Nikki — analisa Nilva.
Infelizmente, os verbos no passado se fazem necessários sobre a mascote. Com uma estimativa de 13 anos, Nikki partiu no mês passado. Mas nem por isso deixou a casa. Para eternizar a quatro patas, colaboradores e acolhidos fizeram uma sepultura e enterram a cachorrinha, que agora descansa das peripécias feitas no jardim da frente do local, dentro de um coração desenhado com a terra. No ponto em que foi enterrada, foram colocadas pedras e flores.
— Já quiseram até colocar, em cimento, "Eterna Nikki" — fala, emocionada, Nilva, enquanto olha o túmulo.
"Ele é o cara"
Quem sente falta de Nikki é o Cara, que com o pelo brilhante e as orelhas sempre em pé cheira todos os cantos da casa de passagem, onde está com o companheiro humano, Ederson Machado Dornelles, há um mês. A dupla já é figura antiga no local. Quem tem a possibilidade de contar sobre a amizade é Dornelles, que diz que, em 2022, estava procurando comida dentro de uma lixeira e viu "aquele cãozinho lá, sentado, olhando, machucado".
— Olhei para ele e disse "tu quer um dono, tu me acompanha" e me esqueci dele. Lá na outra lixeira, cheguei e quando olhei ele estava sentado, do mesmo jeito que estava na outra — conta o homem, que é natural de Uruguaiana.
Neste mesmo dia, Ederson e Cara dividiram a primeira refeição. O início de uma divisão de vida, "perrengues" e a esperança de um futuro melhor.
— Parecia que ele conhecia todo o trajeto. Eu morava em uma casa de dois pisos abandonada, cheguei lá, ele já foi na frente, subiu a escada e é um amigo que está comigo até hoje. Ele é meu companheiro, me escuta e eu escuto ele. Eu sinto e ele sente o que eu estou sentindo. No dia que ele estava sentado lá, daquela maneira, parece que ele já me conhecia. Isso é divino — relata Dornelles, enquanto acompanha com os olhos a hiperatividade de Cara, que também está sempre de olho no paradeiro do companheiro humano.
Repetindo várias vezes "ele é o cara", o homem conta que sofreu uma tentativa de homicídio em uma noite. Quem evitou foi o cãozinho, sempre vigilante, que avançou no outro homem e acordou o tutor com latidos.
— Eu quero aproveitar esse acolhimento que tenho com ele, vou procurar um emprego agora e quero alugar uma casa, tocar a vida — compartilha Dornelles.
"Ela faz parte de mim e eu dela"
Um companheirismo de quase duas décadas. Este é o tempo em que Valdir Wagner, 51, e Doralice dividem a rua, nas quatro estações, 365 dias do ano. Wagner é pessoa em situação de rua há 30 anos. Doralice chegou a ele por meio de um outro homem em situação de rua, com quem dividia o pouco que tinha.
— Ele viu uma cria de cachorros e uma pulou nele. Veio com ela na mão. (Quanto filhote) era do tamanho da cabeça que tem atualmente. Ele me disse: "é tua, ela nunca vai te abandonar se tu não mal tratar". Três dias depois ele morreu. Ela nunca mais me abandonou. Eu nunca amarrei ela. Dorme comigo, se interna comigo. É a minha família — garante Wagner, sentado na cadeira de rodas, enquanto Doralice escapa do sol forte de uma tarde sem nuvens na sombra do homem.
Doralice está em idade avançada e Valdir Wagner é cadeirante e tem muitos problemas de saúde. Buscam uma maneira de conseguir um lar. Depois de três décadas, sempre em uma barraca no entorno da BR-116, no bairro Nossa Senhora de Lourdes, Wagner afirma que a rua está o definhando.
— Isso aqui não é vida. Eu quero uma casa para mim. Um fogão, uma cama, um banheiro — desabafa.
Casas de passagem em Caxias do Sul
Carlos Miguel dos Santos
Rua Francisco Meneguzzo, 593 - Fátima Alto
Telefone: (54) 3538-6628 e (54) 3538-7136
São Francisco de Assis
Av. Circular Pedro Mocelin, 421 – Cinquentenário
Telefone: (54) 3223-4384, (54) 3223-5033 e (54) 99204-0748
Residencial Santa Dulce
Avenida Triches, 2729 – Cidade Nova
Telefone: (54) 99155-4176