Em busca de conscientizar negócios da Serra e de aumentar a inclusão, a unidade do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) em Bento Gonçalves trabalha em um projeto inédito, que criará um Guia de Acessibilidade ao Enoturismo. O material abordará como estabelecimentos podem acolher melhor as pessoas com deficiência. Da mesma ação ainda surgirá um glossário em Libras do mundo do vinho. A coordenação é do Centro Tecnológico de Acessibilidade (CTA) da instituição, que tem uma parceria com a Vinícola Salton para o desenvolvimento das iniciativas.
A parceria iniciou no final de 2022, com uma pesquisa e ações dentro da própria vinícola. A partir de um planejamento, o CTA fez a análise aprofundada de site, estabelecimentos da Salton, contato com consumidores finais e até o sistema de pagamento. Após isso, orientações foram repassadas e uma capacitação foi realizada com funcionários.
— (Buscamos) Que todos consigam se sentir incluídos nas nossas experiências, com os nossos produtos. Assim conseguimos ter uma experiência de marca muito positiva. Isso acaba influenciando para a comunidade, para o entorno. Conseguimos abraçar diferentes frentes e para que outras empresas eventualmente consigam espelhar nesse trabalho algo positivo para a própria empresa deles — descreve Nicole Salton, coordenadora do projeto na vinícola.
A partir desta experiência, surgirá o guia e o glossário. O guia englobará desde atendimento até a estrutura. Por exemplo, mostrará como faz diferença ter uma mesa que comporte uma cadeira de rodas, ter acesso para pessoas com deficiência visual ou com mobilidade reduzida, ou ainda um cardápio em que cegos e surdos possam ter autonomia de identificar os itens e fazer o pedido. O servidor do IFRS e coordenador do projeto, Anderson Dall Agnol, destaca que um benefício da parceria é a inclusão de outros servidores, estudantes e pessoas com deficiência. Todo o material, inclusive, passa e é validado por PCDs:
— O que eu acho mais legal no projeto como um todo é que estamos envolvendo as pessoas com deficiência para soluções que são para elas. Temos o apoio da Salton e a gente consegue trazer as pessoas com deficiência para esse projeto para elas legitimarem as soluções que são para elas.
O lançamento do guia deve ocorrer em outubro e o material será disponibilizado ao público.
O guia
Como explica Dall Agnol, o guia consolidará todo o conteúdo construído no projeto. Ele trará explicações sobre o atendimento às pessoas com deficiência e orientações para melhorar não apenas a acessibilidade física, mas também a atitudinal, que diz respeito a ações tomadas para diminuir barreiras e acolher sem preconceitos. No fim, o coordenador destaca que haverá um checklist para que o próprio negócio levante o que já tem ou o que falta. Inicialmente, o guia contará com:
- Explicação de conceitos gerais sobre deficiência e as barreiras existentes.
- Itens para contemplar a acessibilidade física, baseada em Normas Técnicas da ABNT.
- Orientações sobre acessibilidade digital, auxiliando em como trabalhar nas redes sociais e site.
- Acessibilidade atitudinal para o setor do enoturismo, sobre como atender reduzindo as barreiras.
- Checklist para as empresas.
A elaboração conta ainda com especialistas em turismo, letras, Libras, arquitetura e informática. O servidor do IFRS nota que, mesmo que um estabelecimento não ofereça ainda uma acessibilidade total, um passo importante é dar atenção a atitudinal.
O que é jornalismo de soluções?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Um passo inovador
Outra inovação do projeto entre Salton e IFRS é um glossário do enoturismo para a comunidade surda. Como relatam os coordenadores Dall Agnol e Nicole, não existem sinais em Libras para termos referentes à experiência ligada à vitivinicultura, como brut, levedura ou barricas de carvalho. Como forma de reduzir essa barreira, o projeto fez uma imersão na vinícola com surdos da região, a intérprete Gisele Oliveira Fraga do Nascimento, que trabalha na construção da comunicação, e um enólogo. Toda a experiência leva à criação do glossário, que depois deverá ser disseminada pela Serra, Estado e, quem sabe, para todo o Brasil.
— Não tem um lugar melhor para criarmos os sinais como aqui na região de Bento, que é muito conhecida pela questão do enoturismo e das vinícolas. É importante que os sinais saiam daqui — celebra Dall Agnol.
Assim como todos os produtos nascidos da parceria, pessoas surdas participam da criação e validam os sinais. Um dos integrantes do grupo é Leonardo Flamia Viegas. Ao lado de outros surdos, o jovem descreve que teve uma visita enriquecedora na Salton para o glossário. O grupo conheceu o processo de produção, além de rótulos, os tipos de vinhos, onde eles ficam armazenados e tiveram uma degustação. Com experiência visual e informações sobre os termos, os sinais são criados.
— Já tinha ido em outras vinícolas antes, já tinha conhecido, mas era uma experiência pouco tangível para mim. A experiência que vivi na Salton foi diferente. Me senti acolhido, tive prazer em estar lá. Fiquei feliz porque lá tinha acessibilidade para mim e eu nunca tinha visto isso. Também saber do interesse deles, em ter no futuro uma melhoria na acessibilidade. Isso nos torna muito felizes — conta Viegas.
A experiência foi também emocionante para o grupo. Tanto que, já na visita, criaram um sinal para a vinícola, que reúne o sinal de casa, que representa família, e um "S", de Salton. O movimento feito para a comunicação simboliza ainda a diversidade.
Turismo com acessibilidade
A busca por um atendimento mais acolhedor ganha como exemplo um dos recentes empreendimentos turísticos da vinícola, a Casa Di Pasto. Aberto em janeiro, o espaço foi planejado já com estrutura acessível, seja piso tátil, elevador, mesa com tamanho correto para cadeiras de roda, banheiros acessíveis ou vaga de estacionamento preferencial. Além disso, a partir do projeto com o IFRS, a Salton passa a oferecer cardápios acessíveis, podendo ser em braile ou digital, com a possibilidade de áudio e vídeo (para Libras).
— Tudo isso faz com que torne um pouco mais acessível e que a gente não peque em nenhum sentido. Esse é o trabalho — afirma Nicole.
O menu também é pensado com organização e cores para auxiliar quem tem baixa visão, como é o caso de Dall Agnol. Quem auxilia na produção do cardápio acessível é o servidor do IFRS, Everaldo Carniel. Interessado por turismo, Everaldo, que é cego, ajuda a validar os itens, sejam táteis ou virtuais. Para Carniel, é "singular" poder participar de forma autônoma de um ambiente e experimentar o mesmo que pessoas sem limitações.
— É importante colocar que a pessoa com deficiência também é um consumidor, também tem família, também tem renda. Hoje, as pessoas com deficiência tem uma condição em poder comprar e usufruir. Mas só vão fazer isso se o espaço der condições — destaca Carniel.
É da mesma forma que sente-se Rosangela Dalcin. A ex-atleta paradesportiva confessa que busca frequentar lugares acessíveis, em que se sente acolhida. A mesatenista lembra que há 38 anos, quando acidentou-se e passou a usar cadeira de rodas, não existia nada voltado para a acessibilidade. Ela ainda vê que há muito o que melhorar, seja em estabelecimentos ou na infraestrutura urbana, mas torce que mais lugares sigam o exemplo da Casa Di Pasto.
— Tá bem acessível, dá para visitar tranquilo. Consegui entrar, consegui colocar minha cadeira de rodas na mesa. Muitas vezes eu não consigo, minhas pernas não entram. Eu tenho que tirar as pernas, botar para os lados para almoçar e jantar. As pessoas também sabem te receber. Tem essa troca. Acho que são treinados para isso. Porque a pior coisa é tu chegar em um lugar e pegarem a tua cadeira. Eu tenho pavor. Antes de pegar, peça: precisa de ajuda? — aconselha Rosangela.