Nos contos de fada, as princesas encontram o príncipe encantado, formam uma linda família e são felizes para sempre. Um enredo, sem dúvida, belo, mas bem distante da realidade, principalmente para boa parte do público feminino. Na vida real, a história, geralmente, é outra. Com a chegada dos filhos, as mães enfrentam mudanças no corpo e na mente, lidam constantemente com a culpa, a sobrecarga de tarefas, a privação de sono, as demandas domésticas e tantos outros fatores que as distanciam dos contos que ilustram os livros tradicionais.
Recentemente, as publicações de duas famosas viralizaram nas redes sociais justamente por mostrarem o outro lado, uma maternidade bem real. Passando pelo segundo puerpério, a atriz Thaila Ayala desabafou sobre as dificuldades na amamentação da filha Tereza e a culpa por não conseguir dar atenção suficiente ao primogênito Francisco, de um ano e cinco meses. Também com um bebê recém-nascido em casa, a influencer e ex-BBB Viih Tube compartilhou com o público o corpo pós-parto e as dores ao amamentar a filha Lua.
As publicações geraram milhares de comentários de apoio e de identificação. Mulheres, em sua maioria, utilizavam o espaço para contar suas próprias experiências e até agradecer pelas famosas compartilharem aspectos tão íntimos, mas tão comuns na vida de recém-mães. O fato é que as redes sociais e os grupos de conversa permitiram que esse tipo de anseio pudesse ecoar. Um movimento recente, mas que, inclusive, pode colaborar para a saúde mental materna, na opinião de especialistas.
É muito difícil, nós, mães, admitirmos que não gostamos de todas as partes da maternidade
TATIANA PERIN
Psicóloga perinatal
— As mulheres sempre passaram por estes desafios que a maternidade traz. As demandas, as questões hormonais do pós-parto, a falta de apoio emocional... Mas, agora, estamos podendo falar mais sobre isso sem sermos tão julgadas. É como se tivéssemos mais permissão. Porque é muito difícil, nós, mães, admitirmos que não gostamos de todas as partes da maternidade. O que acontece agora é o que chamamos de humanidade compartilhada: quando sabemos que a outra mãe está passando pelo mesmo que nós, nos sentimos mais à vontade de admitir que sofremos, que também temos dificuldades, que sentimos determinadas dores... — explica a psicóloga perinatal Tatiana Perin.
Para a profissional, embora o lado vulnerável da maternidade esteja cada vez mais à mostra, ainda existe uma fantasia de que as mães devem dar conta de tudo. Tal pensamento, inclusive, dificulta que mulheres busquem ajuda, tornando o maternar solitário.
— Precisamos aceitar a ajuda e entender que não somos mães piores porque estamos tendo o apoio de outros familiares ou dividindo as tarefas com o pai — aponta Tatiana.
O cuidado com a saúde mental, seja no puerpério ou em outras fases da maternidade, é essencial para que as mães possam se reorganizar e se ver além do novo título. Para isso, a psicóloga recomenda manter os cuidados pessoais (de saúde ou de estética), praticar atividades físicas, manter relações sociais (seja em grupos de mães ou não) e buscar profissionais da psicologia ou da psiquiatria, quando necessário.
— Quando estamos mais saudáveis, conseguimos aproveitar mais a maternidade, entender todas as transformações pelas quais passamos e admitir que não vamos dar conta de tudo e que podemos falhar e está tudo bem — finaliza.
"A construção de ser mãe foi demorada"
Ser mãe era um desejo distante na vida da costureira e estudante de Design de Moda Luana de Souza Grando, 29 anos. Ela não tinha contato com bebês ou crianças pequenas na família, até que em março de 2020 tudo mudou. Enquanto pessoas de todo o planeta se questionavam sobre o rápido avanço de uma nova doença e se confinavam em casa, o universo da própria jovem também estava prestes a mudar completamente. A confirmação de uma gestação de dois meses trouxe inúmeras dúvidas.
— No meio da pandemia, a primeira gravidez, toda aquela loucura, eu pensei 'meu Deus do céu, o mundo vai acabar e eu estou grávida. O que eu faço agora?'. Foi um misto de emoções, um medo gigantesco — recorda-se Luana.
A maternidade me trouxe muito mais maturidade. Se não fosse a Alice, eu seria uma pessoa completamente diferente
LUANA DE SOUZA GRANDO
Costureira e estudante de Design de Moda
Passado o susto inicial, ela decidiu mergulhar no universo materno, ao mesmo tempo que encontrou apoio nas redes sociais, com doações de roupas e acessórios. Alice chegou em novembro de 2020, em um parto sem a presença do pai, Rafael, e com equipe reduzida em função das medidas para conter o vírus. A parte mais delicada, entretanto, ainda estava por vir:
— Ninguém queria me ajudar porque tinham medo de levar covid-19 para mim e para a bebê. Então, eu e o meu marido ficamos completamente sozinhos. Fiquei três meses sem colocar o pé para fora de casa. Para mim, foi bem complicado criar essa identidade de mãe, entender o que estava acontecendo comigo, junto com a correria do dia a dia, sem ter um descanso para a mente. A construção de ser mãe foi muito demorada, não tinha tempo para pensar nisso — conta Luana.
A maternidade acabou trazendo consigo um amadurecimento forçado à jovem e a motivou a retomar os estudos. Luana conseguiu uma bolsa para cursar o ensino superior e se viu diante de novos desafios — o casal conta apenas com a ajuda da avó paterna em algumas horas por semana.
— O resto do tempo somos eu e o Rafa sempre, o que acaba nos deixando um pouco sobrecarregados. A Alice nunca ficou longe da gente mais do que umas três horas. Já aconteceu de faltar aula ou ter que sair antes porque eu precisava amamentar — conta a estudante.
Apesar dos medos da gestação e do puerpério em meio à pandemia e a falta de uma rede de apoio mais ativa, Luana diz que não se vê de outra forma senão como mãe:
— A maternidade me trouxe muito mais maturidade. Se não fosse a Alice, eu seria uma pessoa completamente diferente. Não teria tanto orgulho de quem eu me tornei. Depois da Alice, eu vi a força que tem a mulher — afirma.
Os aprendizados de uma mãe de três
"Três. São três puerpérios, imagine quantas fraldas e quantas mamadeiras. Três são mais filhos do que pais, mais crianças do que adultos dentro de casa. São 60 unhas para cortar, 60 dentes de leite pra nascer".
Este é o começo de um texto da publicitária Marina Grandi, 40, publicado recentemente nas redes sociais e que pode dar uma noção do que é ser mãe de um trio de crianças. Henrique, seis, Arthur, quatro, e Isadora, dois, chegaram para tornar o sonho dela e do marido Guilherme de ter uma família grande, bem aos moldes dos antigos lares de imigrantes italianos.
Da Marina mãe do Henrique à Marina mãe três crianças, muita coisa mudou, na opinião dela. O amadurecimento para assumir este novo papel ocorreu de uma forma natural:
— Com o Henrique, eu era muito mais insegura, mais cautelosa. A Isadora já caiu, já quebrou a perninha. Porque, além de ela ter dois 'professores' em casa que ensinam o tempo todo, eu dei mais liberdade, diferentemente do primeiro filho, que é cercado de medo. E isso é muito bom, porque todo mundo nos diz que eles têm muita autonomia, eles sabem fazer muitas coisas sozinhos — observa Marina.
Com uma rotina apoiada pelos familiares mais próximos e pelo ambiente escolar, a publicitária entende que atualmente um dos aspectos mais desafiadores é lidar com as demandas simultâneas de três crianças em fases diferentes.
— Tem coisa que a Isa traz para nós que são novas, mesmo a gente tendo a experiência com os dois meninos. O Henrique, que é o primeiro, já está entrando em uma fase que sentimos que queremos guardá-lo em uma bolha, que é muito cedo para determinadas coisas. Já o Arthur nos traz outros tipos de desafios — comenta a mãe do trio.
As três gestações próximas também impactaram na visão sobre o próprio corpo:
— Faz pouco tempo que consegui me resgatar, porque estava numa fase de aumentar o peso por conta das gestações e sentia que não era a Marina, sabe? Faz pouco tempo que comecei a fazer esportes e consegui tempo para a academia. Agora acho que estou numa fase legal — avalia.
Marina não está sozinha neste cenário de reconhecimento pós-filhos. Um pesquisa realizada com 2 mil mães, em 2019, pela Noz Pesquisa e Inteligência em conjunto com a Associação CineMaterna, revelou que, para as entrevistadas, os maiores desafios não estão ligados aos cuidados com o bebê. O mais difícil é conciliar a maternidade com a vida pessoal e profissional. Uma em cada duas mulheres avaliaram como muito difícil ter tempo para vida pessoal após a maternidade.
Um começo delicado para Alexandra e Guilherme
O puerpério é o período de aproximadamente 60 dias após o parto em que o corpo feminino retorna às condições pré-gestação. Um momento que pode ser bastante delicado emocionalmente para as mulheres diante de tantas mudanças corporais e hormonais. Imagine, então, passar por este processo de redescoberta de si mesma com o bebê entubado em uma UTI, com uma doença nova, hospitais lotados e incertezas, inclusive, por parte da medicina. Foi uma situação assim que a técnica em Enfermagem Alexandra Ferrarini, 27, vivenciou com o filho Guilherme, hoje com dois anos e quatro meses, em março de 2021.
Gui, como é carinhosamente chamado pela família, nasceu no dia 31 de dezembro de 2020. Dois meses depois, no dia 4 de março, testou positivo para covid-19 e foi diretamente para a UTI do Hospital Geral. Uma experiência que mudou completamente o início da maternidade para Alexandra.
Eu queria abraçar meu filho, dar colo, dizer que ia ficar tudo bem, mas nem eu mesma sabia se ia ficar tudo bem
ALEXANDRA FERRARINI
Técnica em Enfermagem
— No mesmo período, minha mãe acabou pegando covid-19 e também ficou internada, mas não tinha leito, ela quase partiu. Eu vivi momentos muito difíceis. Eu queria abraçar meu filho, dar colo, dizer que ia ficar tudo bem, mas nem eu mesma sabia se ia ficar tudo bem — recorda-se a jovem, que não podia sequer tocar na criança sob risco dela piorar.
Apesar de todas as incertezas e do quadro gravíssimo, Alexandra e Guilherme viveram o que ela, hoje, chama de final feliz. Depois de 26 dias sob cuidados intensivos, o bebê recebeu alta e voltou para casa, em Flores da Cunha.
— Cada fase da maternidade é difícil, mas nada se compara ao que eu sofri vendo ele daquela forma. Meu medo era não trazer ele para casa nunca mais — enfatiza a técnica em Enfermagem.
Atualmente, Guilherme e Alexandra moram sozinhos, mas sempre com a presença atenta e o braço direito da avó materna, Juliana Ferrarini, além do contato e atenção do pai que reside em outro endereço. Em meio à rotina de escola, médicos, demandas domésticas e atenção ao filho, Alexandra observa que o mais desafiador é lidar com o sentimento de culpa e buscar a certeza de que está educando o menino da melhor forma.
— A parte mais difícil que eu vejo agora é saber se estou no caminho certo, porque a gente sempre acha que está errada. E como eu faço plantão no fim de semana, na minha folga, às vezes, eu sinto que quero descansar ao invés de brincar ou sair para o parque. Fico em falta com ele e me culpo também — aponta.
Dados
:: Uma pesquisa ouviu 2 mil mães em 2019 sobre a relação com o bebê, a sociedade e o trabalho. O estudo foi conduzido pela Noz Pesquisa e Inteligência em conjunto com a Associação CineMaterna.
:: Apesar de 88% das pesquisadas ser casada ou estar em relacionamento estável, apenas 67% diz ter o apoio do pai do bebê.
:: Mais de dois terços das mulheres sente-se julgada e/ou cobrada, em especial, as mais jovens.
:: 36% dizem estar só a maior parte do tempo.
:: Uma em cada duas mulheres avaliaram como muito difícil ter tempo para vida pessoal após a maternidade.
Fonte: CineMaterna e Noz Pesquisa e Inteligência.