Fiéis de diversas religiões celebram, neste domingo, a Páscoa, considerada a principal festa do Cristianismo. A data sucede os eventos que marcaram crucificação, morte e sepultamento de Jesus, que ressuscitou no terceiro dia.
O pós-doutor em Filosofia e diretor da área do conhecimento de Humanidades da UCS, Everaldo Cescon, explica que o ressuscitar tem a ver com a volta à mesma vida, porém transformada.
— Pessoas que têm uma aproximação da morte ou que passam por uma situação de grande risco ou que se vêm salvos desta situação, acabam transformando sua própria vida, porque ela adquire um significado diferente. Normalmente são pessoas que acabam valorizando muito mais cada momento de vida, o contato e a relação com as outras pessoas — afirma.
O conceito defendido pelo estudioso é o que cinco moradores de Caxias do Sul têm em comum. Situações que mudaram suas vidas e os fizeram renascer. Reinserção à sociedade após três décadas de prisão, experiência de quase morte e até contato com Deus fizeram com que Amarildo Rubinei Moreira, Claudia Polli, Iriane Martins, Vanessa Garbin e Carlos de Oliveira olhem para a vida com mais valor, otimismo e coragem.
Quebrando as barreiras do preconceito
O primeiro título da vida de Amarildo Rubinei Moreira, o Véio, foi "o maior assaltante de bancos da Serra". Ele, que já esteve na lista dos 10 homens mais procurados no Rio Grande do Sul há 20 anos, hoje foca em um outro título: Poesia que liberta, nome dado ao primeiro livro escrito por ele e lançado no mês passado. Com 60 anos completados nesta quinta (6), entrou numa penitenciária pela primeira vez em 1981. Fugiu diversas vezes. Trabalhou na prisão. E também colocou sentimentos no papel, onde nasceu o livro.
— Eu não fiquei ocioso dentro do sistema. Eu estudei, fiz o primeiro e o segundo graus, fiz cursos, acompanhei a vida aqui fora. Quando cheguei aqui fora, me surpreendi, tem muito mais gente aqui fora vagando, de bobeira, sem perspectiva na vida, no primeiro obstáculo já para — relata.
Amarildo não tem nenhum problema de contar sobre a vida no crime, quando assaltou mais de 80 bancos. Porém, virou a página. Após 32 anos de regime fechado, há sete anos vive uma liberdade restrita. Progrediu para prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica. Diz que até hoje paga pela condenação. Entretanto, não aceita parar a vida. Em 2016, abriu uma recicladora. E, hoje, tornou-se escritor:
— Entre estudos, trabalho, na madrugada eu acordava, com o pensamento sendo reconstruído, com tudo que eu fiz, tudo que deixei de viver, tudo que estava passando ali, pelos meus erros, me impossibilitando de estar aqui fora vivendo uma vida normal, construindo família. Acordava nas madrugadas, com papel e caneta na mão, começava a escrever algumas coisas que eu ia pensando, acompanhando o desenvolver de cada um dos meus companheiros, vendo o sofrimento de cada um deles, o sentimento. Basicamente este livro é escrito por sentimentos.
O renascimento de Amarildo não se dá após uma experiência de quase morte, mas sim após quebrar as barreiras do preconceito na reinserção à sociedade após passar pelo sistema penitenciário. De viver a frustração, tristeza e decepção potencializadas pela privação de liberdade.
— Penso em escrever uma biografia, contando histórias da prisão. É um projeto futuro. (Hoje) eu me sinto inserido de volta à sociedade, uma vida estabilizada — afirma.
Professora não deixa de aproveitar seu renascimento
Neste domingo de Páscoa (9), completam-se dois anos que a professora Claudia Polli foi extubada durante o tratamento contra a covid-19. A manifestação da doença nela não era comum. Começou com um mal estar no fígado, progredindo para um estado em que não conseguia mais falar, tremendo de febre e de pressão baixa. Mesmo com dificuldade, mandou uma mensagem para uma amiga da igreja relatando o medo de morrer. A resposta foi uma oração, mentalizada enquanto recebia a notícia que seria intubada.
— Eram quatro pessoas, fazendo teste para intubar, nada dava certo. Começaram a dizer que eu estava vazando sangue, eu estava tendo uma hemorragia. Alguém me disse que eu ia dormir e o restante era com eles — conta, emocionada.
A partir de então, a história passa a ser contada pela bioquímica Viviane dos Santos, que atua no Hospital Geral, para onde Claudia foi mandada. Ela soube da internação da professora por grupos da igreja, conhecia Claudia através do marido e tomou para si a missão de tentar acessar a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para rezar pela paciente. A exceção foi aberta, numa época em que não havia vacina e vivia-se o pior cenário de toda pandemia.
— Na segunda vez que fui orar por ela, aconteceu algo de sobrenatural. Comecei a cantar 'Deus está aqui, Deus está aqui', cantava em lágrimas, sentindo muito a presença de Deus. Como era UTI de isolamento, era tudo fechado, ninguém sabia o que estava acontecendo ali dentro, acho que foi uns 10, 15 minutos. A equipe disse que enquanto eu estava na UTI, eles sentiram um aroma suave que tomou conta de toda UTI e saiu da ala, indo para o corredor, e eles começaram a chorar — diz Viviane.
Ali, todos acreditavam que Deus estava naquele lugar. Enquanto estava em coma induzido, Claudia teve duas visões. A primeira, ela tem certeza que estava morrendo, pois via um cenário sombrio, sem vida, com um enterro. Depois, uma nova visão surgiu:
— Tinha muitas luzes, flores, achamos que foi quando teve o aroma, quando tiveram a experiência com Deus, porque eu sentia um cheiro de flor. E ali eu soube que era vida.
Com algumas sequelas, a professora não deixa de aproveitar o que considera seu renascimento. Defende que nenhuma idade irá limitá-la de novos projetos e de seguir dando aulas.
— Eu já tinha minha fé, mas ela só aumentou.
Uma nadadora com uma perna e meio pulmão
Uma dor no joelho virou uma luta que já dura 14 anos para Iriane Martins. Foram diversos os diagnósticos até o veredito final. Bursite inflamatória, lesão meniscal, rompimento de menisco. Mais de um ano após o início da investigação, o osteoplastoma — um tipo de tumor raro — foi encontrado no joelho.
— Quando cheguei no (Instituto do Câncer do Hospital Pompéia) Incan, me apavorei, só tinha eu e minha sobrinha. Só aquela palavra já dá aquela reviravolta na tua cabeça, é difícil pensar o positivo. Quase nesta época (início de abril), mais ou menos, recebi o diagnóstico — conta Iriane.
A necessidade de amputar a perna era uma possibilidade até dia 19 de maio de 2006, dia da cirurgia. Dependia do estado do tumor, que só podia ser avaliado após a abertura da perna. De possibilidade, passou para realidade.
— Chorei, entrei em pânico, perguntava como seria minha vida, mas logo em seguida eu pensei nos meus filhos e agradeci pela chance do renascimento. Nunca tive vergonha de sair sem perna — garante.
Foi durante a adaptação da amputação e do uso da prótese, que Iriane descobriu alguns nódulos nos dois pulmões. Eram metástases do primeiro tumor. Segundo ela, esse avançava mais rápido. O primeiro passo foi fazer sessões de quimioterapia — embora não existam estudos que comprovem efetividade para esse tipo de tumor. Quatro sessões e nenhum resultado.
— Em janeiro de 2011, tirei meio pulmão esquerdo e dois meses fiz no direito. Em 2012 tive que fazer novamente a cirurgia porque surgiu outro tumor. Hoje eu controlo as novas lesões. Em 2013 surgiu uma nova medicação, fiz ela por quase cinco anos, mas tive que parar por causa de uma necrose no maxilar, mas os nódulos estacionaram — comemora.
Fazendo jus às duas chances de viver, Iriane transmite alto astral, desconhece de onde tira forças e se sente realizada por ver os dois filhos crescerem e tornarem-se homens. Mantém a rotina de conquistas nas piscinas: há um ano participa de um projeto de natação da UCS para pessoas com deficiência (PCDs).
— É um lugar que me senti bem de chegar lá, porque todos estão adaptados para receber a gente. Continuo firme, aprendendo, porque é muita coisa. Eu amo fazer, amo nadar, me faz feliz — diz Iriane, que na terça (4) nadou 800 m pela primeira vez.
"Enxergo que estou tendo uma segunda chance"
Às vezes é bom esquecer algumas coisas. Nisso que a bancária Vanessa Garbin acredita ao comentar que não lembra de nada que aconteceu de 29 de janeiro deste ano até parte de fevereiro. Um acidente de trânsito, no dia 30 de janeiro, faz com que ela saiba que ela saiu de Caxias em direção a Vacaria para visitar clientes. Que, perto de chegar ao município de destino, colidiu com um caminhão. Fotos do veículo em que estava fazem ter dúvidas de como sobreviveu.
— Na hora do acidente, passou um socorrista da Unimed, que me salvou. Eu estava acordada, mas não lembro de nada. Nem da estrada que peguei. Me falaram que ele viu uma cadeirinha de bebê e pediu para eu responder se estava com alguém. Uma piscada de olhos era não. Duas sim. Pisquei uma vez e aí começou o resgate — relata.
Lesões no cérebro, no pulmão, no rim, no coração, duas fraturas em cada fêmur, um joelho destroçado, quatro costelas quebradas, um cotovelo destroçado, perda muito sangue gerando comprometimento no funcionamento dos órgãos foram algumas das consequências do politrauma que sofreu. Vanessa precisou ficar quase dois meses internada, sendo 16 dias de Centro de Terapia Intensiva (CTI). Com alguns fixadores no braço para reconstrução do membro e reaprendendo os movimentos das pernas, hoje os cuidados exigem fisioterapia de segunda a segunda e uma cuidadora de segunda a sexta.
— Eu enxergo que estou tendo uma segunda chance, principalmente por causa da minha filha, dela não perder a mamãe, de eu poder cuidar dela. Ela não tem um aninho ainda. O que eu mais quero é pegar a minha filha no colo. Eu não vejo a hora. Estou tendo mais amor, mais cuidado, agora vem a Páscoa, vai ter almoço de família, eu não iria, mas vou, mesmo de cadeira de rodas — opina a bancária.
Um homem com três aniversários
O florista Carlos de Oliveira se pergunta se é um felino para ter tantas vidas. Em 2023, comemora três aniversários — a família espera que pare por aí. Com 68 anos, além do nascimento, em 2014 uma cirurgia de ponte de safena de urgência foi a primeira vez que lidou com a possibilidade de morte. Sem medo. Ele estava com 80% das veias entupidas e a situação era tão crítica, que um cateterismo não foi possível.
— Eu caminhava e sentia uma dor no peito. Um dia eu fui pegar umas rosas no Centro, bati a porta do carro com a chave dentro e trancou. Fiquei nervoso e senti a dor forte de novo. (Ele foi levado pela esposa, Ilza Oliveira ao médico). Durante o exame, estava fazendo esteira e sentia a dor. Ele mandou eu parar, desligou a esteira e pediu para eu esperar uma cadeira. Me deu um remédio e fiquei ali, já baixei no hospital na hora — compartilha o florista.
Se a memória de Oliveira já seleciona lembranças, Ilza é quase um HD externo. Ela conta que a cirurgia foi feita em Porto Alegre, devido à gravidade e necessidade de maior estrutura.
— Quando abriram o peito dele e botaram a mão mecânica para puxar as costelas e mexer no coração, não teve jeito, tiveram que ligar ele numa máquina, tirar o coração e colocar numa bandeja, fazer o conserto tudo ali para depois reconectar. O caso dele era tão grave que o médico disse que a equipe dele nunca tinha feito uma cirurgia igual. O 'cara' faz cirurgia em Boston, por exemplo — comenta a esposa.
Sete anos depois, em abril de 2021, veio a covid-19. Com 85% do pulmão comprometido, Oliveira deu entrada na UTI em estado gravíssimo. Foram semanas de angústia para a família que o acompanhava, enquanto o florista garante ter passado um tempo "mais lá do que cá", referindo-se à morte. O renascimento não enfrenta nenhuma sequela da doença.
— A gente pensa muito no amanhã, se eu posso fazer hoje, eu não vou deixar pra amanhã, vou fazer hoje. Não quero morrer querendo fazer alguma coisa, tem que aproveitar enquanto pode — aconselha.