A brisa do mar sopra e balança os pelos escuros de Ingá, uma labrador fêmea, que guia atentamente a tutora Caroline Dall Acua em um passeio pela praia de Torres durante uma viagem. Com cuidado, a cachorra-guia desvia de pedras que poderiam causar algum perigo para a mulher de 36 anos, que tem baixa visão em razão de uma doença degenerativa da retina. A labrador é a única cachorra-guia que se tem conhecimento em Caxias do Sul, segundo o Instituto da Audiovisão (Inav), e está entre os animais que dão origem ao Dia Internacional do Cão-guia, celebrado nesta última semana de abril, no mês de alerta e combate à crueldade contra os animais.
O passeio pela praia é um dos momentos em que as duas caminham lado a lado. Idas ao supermercado, trabalho, aulas de piano, reuniões e academia passaram a ser mais confortáveis e seguras para Caroline desde o encontro entre elas, há quase um ano. A confiança nos olhos atentos da cachorra-guia contribui para que as duas trabalhem em equipe e exerçam juntas atividades que muitas vezes passam despercebidas pela maioria das pessoas.
— São vários trajetos e situações com ela. Aqui perto de casa tem uma calçada que está em obras faz algum tempo. No dia em que a obra começou, a Ingá não me deixou seguir em frente pela calçada como sempre fazíamos. Ela me levou até o meio-fio, sinalizando que havia algo de errado no trajeto. Eu dei a ela o comando "em frente", mas ela seguiu me guiando pelo acostamento até a próxima calçada e prosseguimos no nosso trajeto. Em casa, meu noivo me explicou que a calçada que costumeiramente passávamos estava toda quebrada e que havia um monte de pedras empilhadas — lembra Caroline.
O pelo macio e brilhoso de Ingá combina com a personalidade dócil e simpática, quase fazendo um convite aos apaixonados por animais que muitas vezes, por falta de conhecimento, acabam chamando a atenção da cachorra-guia ou se aproximando para fazer carinho. O ato, que para aqueles que têm visão plena pode parecer não oferecer qualquer risco, para os tutores dos cães-guia pode gerar um momento de tensão e insegurança.
— Quando eles estão com o equipamento de trabalho, o arreio, as pessoas não devem chamar a atenção nem com palavras, nem com gestos, nem com sorrisos e nem com carinhos. O cão-guia quando está em serviço não pode ter a atenção desviada. A pessoa que desvia a atenção de um cão-guia pode colocar em risco a vida da pessoa com deficiência visual que está sendo guiada. Por quê? Tu imaginas se eu estou fazendo uma travessia de rua e alguém chama a atenção e o meu cão-guia perde o foco, isso com certeza pode me gerar uma situação de insegurança muito grande — revela Caroline.
Para entender a importância da cachorra-guia na vida de Caroline, dá para pensar nos cinco sentidos do corpo humano: visão, audição, paladar, olfato e tato. Quando o primeiro, no caso das pessoas cegas ou com baixa visão, é comprometido, o cão-guia entra em cena para oferecer ao tutor, com carinho e dedicação, algo quase como um sexto sentido, a confiança.
Essa relação de confiança entre elas é estabelecida através de trocas, onde uma se doa pela outra. Enquanto Caroline cuida, a cachorra-guia a auxilia nas tarefas cotidianas. Entre os cuidados está levar Ingá para fazer coisas que ela ama, como passear no parque. É nessas horas que o equipamento de trabalho é retirado para que ela corra e brinque como quiser e que, conforme lembra Caroline, aqueles que se aproximam podem fazer o irresistível carinho.
— A presença da Ingá é essencial na minha vida, eu sou apaixonada por ela. Sem ela eu não estaria aqui, passeando, desfrutando de um momento de sol no parque. Porque é diferente você pegar a bengala e sair caminhando. Você não pega a bengala para dar uma volta, você pega para ir à faculdade, médico, trabalho, compromissos que precisam ser feitos. Para lazer, para as coisas boas da vida, é muito difícil. Com a Ingá eu faço tudo o que tenho vontade, ela é a minha liberdade mesmo, é meu amorzão — afirma Caroline.
O treinamento do cão-guia
Ingá foi trazida de Camboriú, no litoral de Santa Catarina, onde passou por um treinamento no Centro de Formação de Treinadores e Instrutores de Cães-guia e Inclusão, do Instituto Federal Catarinense (IFC). O local é o único do Sul do país com treinamento para esses animais.
De acordo com a coordenadora-geral do IFC, Marinês Kerber, o motivo para a pouca existência de locais de treinamento está na carência de profissionais e instrutores de cães-guia. O instituto, que além de fazer o treinamento e a formação de duplas (usuários e cães), também forma profissionais para atuarem na área. Até hoje, 12 treinadores instrutores foram formados no IFC e, destes, apenas seis continuam em atuação.
O treinamento de Ingá começou quando ela ainda era filhote e desbravava o mundo com curiosidade e as pequenas patas peludas. O processo para se tornar um cão-guia inicia quando os animais são novos e a primeira etapa é diminuir a sensibilidade que possuem em relação a sons, objetos, tipos de pisos, entre outros. Depois disso, conforme Marinês, os cães são recebidos por famílias voluntárias para um processo de socialização. O último passo é o treinamento por profissionais. Ao final de todas as etapas, que dura cerca de dois anos, os cães passam por avaliações técnica, comportamental e física e, caso aprovados, são graduados como cães-guia.
Para que um animal se torne o cão-guia de uma pessoa com deficiência, um processo de formação de dupla é feito. Por cerca de um mês, após os perfis de cão e usuário serem considerados compatíveis, a dupla convive e passa por aulas práticas e teóricas. Entre os ensinamentos estão comandos, de que forma auxiliar o cão, como perceber movimentos e como cuidar do animal. A última semana de convivência ocorre na cidade em que a pessoa com deficiência mora. É nesse momento que o cão-guia aprende os caminhos feitos como trabalho, faculdade e demais atividades diárias.
Marinês explica que o essencial para que o cão se torne o parceiro de confiança da pessoa com deficiência é a compatibilidade e criação de vínculo. Por este motivo, é essencial o período de um mês de contato entre a pessoa com deficiência visual e o animal.
— Eu sempre gosto de falar que o combustível do cão-guia é o amor. Ele vai cuidar da pessoa com deficiência visual da mesma forma que é cuidado, ou seja, ele vai retribuir. Quanto maior o vínculo, mais sintonia e precisão na percepção dos movimentos de ambos e mais sincronicidade — afirma.
Como ter um cão-guia
Conforme os dados mais recentes do censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 18,6% da população possui algum tipo de deficiência visual. Do total, 6,5 milhões apresentam deficiência visual severa, onde 506 mil têm perda total da visão e 6 milhões possuem alguma dificuldade para enxergar. Não existe uma estimativa que mostre o total de cães-guia em treinamento ou já treinados no Brasil e quantas pessoas aguardam para terem um animal treinado.
Para que tenham acesso a um cão-guia, moradores do Sul que tem deficiência visual devem preencher um cadastro regional no site do IFC. A partir do cadastro, quando um edital é aberto para a região onde a pessoa mora, ela deve se inscrever e encaminhar os documentos solicitados. Quando aprovado, a pessoa passa por entrevista para ser encaminhada ao processo de formação de duplas.
Conforme Marinês, todos os cães-guia são patrimônio público federal, ou seja, as pessoas com deficiência visual não pagam por eles. Após a entrega do cão-guia, um termo de outorga é assinado para o período de quatro anos em que o animal fica com a pessoa. Quando o período termina, a pessoa com deficiência pode optar por renovar por mais quatro anos ou assumir a posse definitiva do cão. Os cães-guia comumente exercem a função por um período de oito anos. Depois desse tempo, o equipamento de trabalho é colocado de lado e eles dão início à curtição da aposentadoria.