A fiscalização trabalhista também entra em debate com o caso de Bento Gonçalves, onde 207 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão. De acordo com o Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho do Rio Grande do Sul, o número de servidores para fiscalização, que são ligados ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), deveria ser, pelo menos, três vezes maior. Hoje, conforme a entidade, o Estado tem 132 profissionais, enquanto o Brasil tem 1.952. Na Serra, são 14 servidores para fiscalizar 42 municípios.
Conforme a entidade, o artigo 33 da lei 8.112/90, que trata sobre as vacâncias de servidores públicos, apresenta o dado de que o país precisaria, pelo menos, 3,6 mil novos auditores fiscais do trabalho. Mas, para preencher estas vagas, o próprio governo federal precisa realizar concursos públicos.
O presidente do sindicato, Renato Futuro, nota que há muitos anos não é aberto concurso para o cargo - são, pelo menos, 10 anos sem seleção de servidores Com aposentadorias e outras situações, o quadro foi reduzido. Para fiscalizar todo o Estado, seria necessário novos fiscais.
— Tira a importância da fiscalização e desmonta os quadros. As condições de deslocamento para viagens e essas coisas (também). É um quadro geral em que existe um desmonte — afirma Futuro.
Outra situação citada pelo sindicalista foi a redução da verba destinada ao departamento que combate o trabalho análogo à escravidão, vinculado ao MTE. Em 2020, durante o governo Jair Bolsonaro (PL), o valor foi o menor em 10 anos, de apenas R$ 1,3 milhão, distribuído para todo o país. Do outro lado, houve um reajuste no valor das diárias para os fiscais em julho de 2022, passando para R$ 300, conforme o sindicato. A verba é usada para hospedagem, alimentação e outras despesas.
Na Serra, o gerente regional do MTE, Vanius Corte, concorda que existe uma defasagem no número de auditores fiscais do trabalho e também nas despesas para viagens. Ao mesmo tempo, o valor para auxiliar no deslocamento para os fiscais que utilizam o próprio veículo está congelado desde 2005, sendo de R$ 17 por dia - independente da quilometragem percorrida.
Sobre servidores, para o gerente, o número deveria ser de pelo menos 30 pessoas.
— A gente é responsável por 42 municípios, que pega toda a região da Serra, vai até Cambará do Sul, São Francisco de Paula e Barão. Então, é uma área abrangente e com muitos municípios importantes, que tem uma produção industrial grande, um número de trabalhadores elevado, que tem uma área rural produtiva. Para nós fiscalizar todos os estabelecimentos que têm empregados, temos 14 auditores fiscais, incluindo Caxias (na área). É claro que o número é insuficiente — relata Corte.
Como explica o gerente regional, a fiscalização, assim, se torna sempre de "reação". Falta recursos para um trabalho preventivo, que poderia evitar situações como acidentes de trabalho.
— De uns anos para cá, o tema do trabalho foi tratado como era o do meio ambiente. Diziam que isso era um problema, que quanto menos regulamentação tiver, melhor, que quanto menos fiscalização tivesse, melhoraria. E vimos como está. Então, realmente é bem difícil trabalhar com essas limitações. Mas é o que temos, é o que se faz — descreve o gerente.
O que leva a casos como o de Bento
Para Futuro, presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho do Rio Grande do Sul, mudanças feitas na legislação trabalhista auxiliaram a intensificar o quadro de exploração. O sindicalista lembra que ocorrências de trabalho análogo à escravidão existem desde 1980. Mas a Reforma Trabalhista, iniciada no governo Michel Temer (MDB), na visão do sindicalista, foi "danosa" ao trabalhador por permitir uma "terceirização irrestrita".
— Antes, funcionava (a terceirização). Podia ser para alguns setores, com regras bem específicas. E a reforma trabalhista disse, “pode terceirizar tudo”. Criou até a figura do autônomo permanente. Ou seja, quem perdeu? Só os trabalhadores. As empresas que não perdem tempo usaram da regra para criar o fenômeno da 'pejotização". Hoje, em muitos casos, o sujeito vai numa empresa conseguir emprego e dizem para ele fazer uma pessoa jurídica — analista Futuro.
Outro ponto crucial, como opina o sindicalista, foi a extinção do Ministério do Trabalho no governo Bolsonaro. Na gestão, a pasta virou uma subsecretaria do Ministério da Economia. Hoje, a pasta retomou como Ministério do Trabalho e Previdência.
— Quer uma simbologia pior que essa? — questiona Futuro.
Em nota para reportagem, os procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) que atuam no caso de Bento, Ana Lucia Stumpf González, coordenadora da unidade do MPT-RS em Caxias; Lucas Santos Fernandes, coordenador regional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas) do MPT-RS; e Franciele D’Ambros, vice-coordenadora, citam como fatores para o surgimento de casos como o de Bento Gonçalves a pobreza e a maior vulnerabilidade social, além de um aumento de conscientização da população e dos trabalhadores, que passam a fazer mais denúncias. Leia a nota abaixo:
"São vários os elementos para explicar a recente elevação dos casos envolvendo resgates. Um pouco disso se deve aos índices de pobreza e a maior vulnerabilidade social resultado tanto da crise econômica quanto ainda dos efeitos da pandemia de covid-19. Também é claro que há um aumento do número de denúncias. A sociedade está mais consciente do tamanho do problema, o que permite que a fiscalização esteja presente. O aumento dos índices do Rio Grande do Sul está também incluído nesse contexto. Com o maior grau de vulnerabilidade econômica provocado pela crise, aumentam os casos de trabalhadores desesperados dispostos a acreditar em falsas propostas de emprego. A dificuldade econômica faz com que muitos trabalhadores saiam de seus Estados acreditando em propostas enganosas de outros lugares em situação financeira aparentemente mais promissora, como o Rio Grande do Sul. O perfil que vem sendo encontrado nas operações é muitas vezes de trabalhadores migrantes de outros Estados (muitas vezes do Nordeste), ou de imigrantes vindos de outros países."