Pelo menos desde os anos 2000, a movimentação de grupos neonazistas no Estado ou até no país têm a colaboração escancarada de moradores de Caxias do Sul ou de outros municípios da Serra. A ligação chama atenção, uma vez que este cenário não parece mudar e até mesmo vem dando sinais de crescimento com o avanço do radicalismo de extrema direita em várias partes do mundo principalmente com o auxílio da deep web - o lado obscuro da internet que dificulta o rastreamento de dados.
São os fatos que mostram essa mobilização de grupos que pregam o ódio contra negros, judeus e pessoas LGBT+. Em julho do ano passado, a Polícia Federal (PF) apreendeu no bairro Panazzolo, em Caxias do Sul, notebooks, celulares e outros dispositivos de armazenamento de arquivos digitais usados para difundir publicações neonazistas em sites, blogs e redes sociais. Meses atrás, em vídeo que circula nas redes sociais, a suástica, símbolo do nazismo, apareceu desenhada em uma mesa de concreto no Parque dos Macaquinhos. Ao mesmo tempo, em recente operação da Polícia Civil em Santa Catarina contra uma célula neonazista no sul do país, um morador de Bento Gonçalves estava entre os detidos e investigados pela polícia. São fatos recentes entre os inúmeros casos que se repetem ano após ano.
A participação de moradores da Serra em grupos neonazistas, porém, remonta a décadas passadas. Em Caxias, o primeiro grupo skinhead com ligações neonazistas, por exemplo, surgiu nos anos 1990. Mas o que leva Serra a ter pessoas que se liguem a ideologias extremistas ou até mesmo atrair fanáticos de outras partes do mundo para cá?
Para o doutor em História e professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Roberto Radünz, o motivo pode ser explicado pela cultura regional, com a presença maior de populações que de alguma forma tiveram um maior contato com as experiências do fascismo e do nazismo. Historicamente, são os povos de ascendência germânica e da Península Itálica.
— O Sul do Brasil, notadamente Santa Catarina, mais até que o RS, e o Paraná têm uma costura política muito conservadora. Quando esse conservadorismo encontra as vias da radicalidade, ele começa a nutrir pensamentos do neonazismo. Partes destes grupos (nas regiões com ocupação de povos germânicos e italianos), pequenas claro, que vão encontrar estas ideias. Mas, às vezes, tu vai encontrar pessoas nestes grupos que não tem esse perfil e que estão longe de tê-lo — analisa o professor.
É óbvio que não é uma generalização, uma vez que grupos neonazistas, mesmo que perigosos, significam uma parcela minúscula da população da região. Radünz também explica que as ideias podem encontrar terreno fértil em locais de ocupação colonial, que geralmente possuem uma população conservadora, por conta dos costumes e modo de viver, o que era ainda mais forte no século 20.
— E aí, conservadorismo não é uma coisa ruim ou boa… As nossas áreas da Serra carregam uma tradição conservadora por sua perspectiva colonial. Então, esse conservadorismo de essência pode chegar a um conservadorismo político e quando esse conservadorismo político alcança um patamar de radicalidade, ele pode se enamorar com o que se chama de neonazismo. Por isso que nessas regiões tu vai encontrar mais. Mas, tu também vai encontrar na cosmopolita São Paulo. Aqui parece, e pela própria autoimpressão do grupo, eles parecem que se rejubilam, eles se alimentam com a ideia de que as pessoas ficam sabendo que são isso — observa Radünz.
O ativista Jair Krischke, cofundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do RS, combate o neonazismo no Estado desde os anos 1980. A entidade, inclusive, conseguiu a condenação judicial de uma editora gaúcha que vendia livros de apologia ao nazismo e com propaganda antissemita e racista. Para Krischke, 84 anos, essa recorrência de casos na Serra e no Estado também pode estar ligada à cultura. O ativista afirma que há grupos dentro da colônia alemã que ainda são admiradores de Adolf Hitler, líder do nazismo, e que pensam que o Regime Nazista foi bom para Alemanha.
— Ali há um caldo de cultura que alimenta essa postura e o surgimento destes grupos. E eles se comunicam, que é outra coisa que a internet facilita. Eles se comunicam muito com nazistas do Chile, que são muito fortes, e na Argentina — relata Krischke.
O combate contra os extremistas
Além das operações realizadas e das investigações em andamento pela Polícia Civil, pessoas envolvidas neste tipo de grupo também são monitoradas. A titular da Delegacia de Combate à Intolerância, Andrea Mattos, nota que um desafio atual é a internet. Desde a pandemia, os grupos passaram a utilizar mais a rede para eventos, do que simplesmente marcar encontros presencialmente. Atrás das telas, inclusive, essas pessoas ficam “mais corajosas”.
A delegada também vê um paralelo entre este tipo de criminoso e aqueles que cometem outros crimes, incluindo de intolerância.
— Quando falamos em antissemitismo, temos observado que ele não vem sozinho. O que temos observado é que tem vindo uma questão de pornografia infantil, com LGBTfobia, misoginia... Enfim, o que temos feito é um acompanhamento e a partir do momento que vemos que é possível, entramos com outras medidas, como medidas cautelares, para que possamos ir um pouco além em questão da responsabilidade dos autores — explica Andrea.
Com as investigações e provas, geralmente os investigados, quando denunciados, acabam presos, como destaca a delegada. O ativista Jair Krischke concorda que a internet é um problema quando se trata deste movimento. Para Krischke, há duas ações que auxiliariam no combate: capacitação do poder coercitivo, que deve “dominar o assunto”, e abordagem do assunto nas escolas.
Outro ponto importante é a legislação brasileira. Krischke e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do RS sempre atuaram em formas de combater a intolerância, inclusive por meio de projetos de lei contra o racismo com colaboração do senador Paulo Paim (PT) e o ex-deputado federal Ibsen Pinheiro, falecido em 2020.
— A outra questão é que a escola está falhando. Quando o assunto Segunda Grande Guerra é abordado, é passado por cima, quando o assunto deveria ser esclarecido para os jovens. É preciso criar uma consciência pública, que tem que ser ampla, um conhecimento social. E teríamos que nos valer da escola. Uma é que trabalha a formação da pessoa e outra a que reprime aquele que comete o crime — observa o ativista.
Características do neonazismo
O nazismo é um movimento que está dentro do conceito do guarda-chuva do fascismo. Como explica o professor Roberto Radünz, é a experiência mais “radical” da tendência política totalitária que surgiu no pós-Primeira Guerra Mundial. Além de características gerais, como acreditar em uma autoridade “suprema” para comandar o país, o nazismo também carregou o lado perverso com a xenofobia, os campos de concentração, o conceito da superioridade da raça ariana e o extermínio daqueles que eles consideravam inimigos.
Outras características são a da doutrinação, de ter seguidores como se fosse uma religião - sem debater o que é proposto; criar a sensação de medo com um inimigo em comum, como o comunismo era para o fascismo; a marca da censura, com o controle da informação; e a violência.
Quando se utiliza o “neo” nestes movimentos, o professor lembra que deve se considerar que se está em um outro contexto. Mas os neonazistas carregam ideias semelhantes, principalmente aquelas ligadas às minorias. Estes criminosos costumam apresentar xenofobia, racismo, misoginia (o que acontecia nos anos 1930 também) e, em geral, preconceito contra minorias.
— São movimentos que carregam a fobia em relação ao outro como característica principal — explica Radünz.
Outra marca, em menor escala, é a necessidade de ter um inimigo. Na época de Hitler, por exemplo, os judeus foram escolhidos como um povo a ser subjugado e exterminado. Agora, o ataque é direcionado para variados tipos de pessoas e ideias.
Se a análise for levada a fundo, existe uma contradição nos neonazistas, que é difícil de ignorar. Um dos princípios pregados pelo nazismo é a pureza racial, que como lembra o professor, mas isso é impossível de encontrar nos movimentos atuais.
— Então, veja, aquilo que se rotula de neonazismo, já se esvai numa primeira olhada — conclui o professor.
Relembre casos rumorosos envolvendo moradores da Serra em movimentos neonazistas
:: 8 de maio de 2005: 14 integrantes de um grupo neonazista, incluindo um caxiense, atacaram e tentaram matar três jovens judeus, identificados pelo quipá, na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Células do grupo foram encontradas em diferentes cidades do Estado, como Caxias.
:: Meados de 2009: A polícia descobre no RS uma célula neonazista de um grupo que pretendia criar uma nação paralela no Brasil, a chamada Neuland. Entre eles, havia um morador de Caxias, com fortes ligações com as lideranças com base no Paraná. Contudo, a ação começou a ser desmantelada com o assassinato de um casal ligado ao grupo paranaense por causa de disputas internas. O caxiense, por sua vez, também virou alvo e seria assassinado em Galópólis, mas o plano falhou. Os autores do duplo homicídio foram presos.
:: 8 de dezembro de 2016: Polícia Civil deflagra operação contra neonazistas gaúchos que foram recrutados pelo Batalhão de Azov, grupo paramilitar de extrema-direita que lutava na Guerra da Crimeia. A operação teve mandados de busca e apreensão em Caxias. Duas pessoas do município eram monitoradas por atividades ligadas ao grupo. Na época, um italiano também passou pelo município tentando recrutar candidatos para esse batalhão.
:: Em 2022: Polícia confirma que monitorava pelo menos 40 gaúchos em grupos na deep web. Entre eles, residentes de Caxias. Em novembro, oito homens são presos por integrar uma célula neonazista em Santa Catarina. Um deles é de Bento Gonçalves.