Essa é terceira reportagem da série Educação em Pauta, que é veiculada no Pioneiro, em GZH e na Gaúcha Serra. A primeira abordou a saúde mental de alunos e professores e a segunda apresentou as maneiras de combater a violência no ambiente escolar. Nos próximos meses, serão abordados a evasão escolar e a preparação dos estudantes para além do currículo básico. A ideia é que, além de mostrar os desafios, as reportagens também apresentem soluções e bons exemplos.
A inclusão de crianças e adolescentes com deficiência física ou cognitiva, autismo e altas habilidades em escolas comuns ganhou fôlego nas últimas décadas. Em Caxias do Sul, 11% desses estudantes frequentam escolas especializadas ou salas especiais. Em 2007, eram 78%. Essa inversão é resultado de uma compreensão de que o convívio entre estudantes com diferentes características é enriquecedor para todos, além de ser uma representação da vida em sociedade. Apesar dos avanços na política de inclusão educacional, ainda paira sobre alguns grupos a ideia de que é preciso separar. Essa visão, no entanto, é contrária à da maioria dos especialistas.
— A principal barreira se encontra nas atitudes. É o que a gente chama de barreira atitudinal, das pessoas olharem a pessoa com deficiência como um problema. É quando você observa a deficiência antes da pessoa. E o que a gente propõe na educação inclusiva é o contrário, é você primeiro olhar a pessoa e não o impedimento dela — salienta Karoline Ferreira, analista de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes, que é voltado ao tema da inclusão.
A coordenadora do Núcleo de Estudos em Políticas de Inclusão Escolar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cláudia Rodrigues de Freitas, afirma que são os espaços e materiais pedagógicos que precisam ser adequados:
— Lugar de criança é na escola e é aprendendo. Tem uma longa trajetória de entendimentos, de observação, de trabalho que demonstra que todas juntas, fica melhor. O trabalho fica mais interessante, há uma interlocução maior entre as crianças. O que precisa, sim, é ter adequações no espaço pedagógico para receber as crianças que têm alguma questão que precisa ser sanada. Não são as crianças que precisariam mudar nesses casos, mas os espaços.
A escola comum representa a sociedade. Nós somos pessoas diferentes e a escola tem de representar essa diferença que representa a sociedade.
KAROLINE FERREIRA
ANALISTA DE ADVOCACY DO INSTITUTO RODRIGO MENDES
A escola vista como uma representação da sociedade inclui as pessoas com deficiência, assim como deve ser nas comunidades em que elas vivem.
Para a oficial de Educação do Unicef, Erondina Barbosa da Silva, ainda há o predomínio do capacitismo, que considera pessoas com deficiência incapazes:
— A gente vive em uma sociedade em que há muitas diferenças. Conviver com essas diferenças dentro das escolas é benefício para todos. Eu fui professora por quase 30 anos no Distrito Federal e, quando a gente tem um estudante com deficiência em sala de aula, a gente percebe que esses meninos se beneficiam, mas os outros se beneficiam muito mais, porque eles aprendem o sentido de cuidar, de respeitar a diferença, de respeitar o tempo, a capacidade de cada um — analisa.
Formação, investimentos e legislação
Para especialistas, o principal caminho para superar a segregação de estudantes com deficiência é justamente mostrar bons exemplos de que a inclusão traz resultados positivos. Para isso, os desafios incluem investimentos em material pedagógico e infraestrutura dos prédios escolares — 40% das escolas do país têm acessibilidade e 47% contam com sanitários acessíveis, segundo o Censo Escolar 2021. Mas não só. O estímulo central deve ser aos professores.
No Brasil, 40% dos docentes não têm formação sobre inclusão, conforme estudo da Fundação Lemann realizado pelo Datafolha e divulgado neste ano. Cláudia Rodrigues de Freitas aponta que até 2016 havia uma política nacional de formação de professores nesta área, inclusive com núcleos regionais que tinham a missão de organizar esses treinamentos. Porém, nos últimos anos, houve uma interrupção nessa política:
— Existe uma carência muito grande das escolas, dos professores, de formação. Esse é um ponto fundamental. O que se observa é que quando os professores têm acesso às formações, ao conhecimento, mesmo na universidade quando os alunos estão em formação, as pessoas têm a possibilidade de conversar, pensar, conhecer o que tem de mais novo — aponta a professora.
A inclusão começa quando a gente convence a família de que é bom para o estudante com deficiência estar em uma classe comum.
ERONDINA BARBOSA DA SILVA
OFICIAL DE EDUCAÇÃO DO UNICEF
Para Erondina Barbosa da Silva, a mudança passa por superar o que ela chama de “cultura do fracasso escolar”, que naturaliza o abandono da escola, a reprovação e a distorção série/idade (que é quando um estudante está com dois ou mais anos de atraso escolar) para determinados grupos. No Brasil, todos esses indicadores são piores entre estudantes com deficiência.
— Eu acho que é esse o desafio, é a gente desnaturalizar essa lógica excludente. Quando a gente aposta na inclusão, a gente aposta nessa capacidade de identificar e quebrar barreiras para todos. E essas barreiras não são apenas físicas. Existem barreiras atitudinais, existem barreiras sensoriais. E quando a gente fala em identificar e derrubar, quebrar essas barreiras, a gente está falando dos estudantes com deficiência e também dos estudantes sem deficiência, porque na ideia de inclusão, a diferença é inerente à pessoa humana — explica.
Outro apontamento de Erondina é a articulação intersetorial para atender pessoas com deficiência, porque a falta de meios de transporte adequados, por exemplo, pode resultar na evasão escolar. A ausência de uma cadeira de rodas para estudantes com deficiência física é outra barreira possível. Isso significa que não só a área da educação precisa pensar e planejar a inclusão, mas outros setores públicos também.
Em relação à legislação, ao longo das duas últimas décadas, o Brasil avançou em normativas para garantir a educação inclusiva. Por exemplo, hoje não se pode reformar ou construir prédios sem que eles sejam adequados para receber pessoas com deficiências. No entanto, um decreto federal de 2020, que definiu uma nova Política Nacional de Educação Especial, separa alunos com deficiência dos demais em ambiente escolar. Neste momento, ele está suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal:
— Ele institui uma nova política de educação especial, segundo a qual os alunos da modalidade voltarão a frequentar escolas especiais, o que representaria um retrocesso na educação brasileira, cuja a perspectiva inclusiva é uma das mais elogiadas no mundo. E esse decreto também fere a Constituição e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, um documento da ONU que foi ratificado pelo Brasil como Proposta de Emenda à Constituição — pontua Karoline Ferreira.
Escola concebida para acolher
Em Caxias do Sul, a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Catulo da Paixão Cearense, no bairro Panazzolo, se destaca pela estrutura e foco no aprendizado qualificado dos alunos. A instituição, que fica ao lado da Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Visuais (Apadev), na Rua Luiz Antunes, existe desde 16 de maio de 1949, mas está no prédio atual desde 1970.
De acordo com a diretora Adriana Scott Amaral Restelatto, apesar da construção ser antiga, o prédio foi projetado para alunos cegos ou com baixa visão. Ao longo dos anos, outras adequações foram feitas, como um banheiro adaptado, a colocação de corrimão nos corredores e a construção de rampas para melhorar a acessibilidade
— A Catulo foi pensada para que fosse o mais acessível possível. É uma escola em um prédio de um pavimento só e térreo, então já de saída a gente tem algumas vantagens na acessibilidade. Com a evolução da questão da educação, as escolas foram se adaptando para se tornar mais inclusivas. Na Catulo, com relação aos espaços, as crianças conseguem transitar por com bastante tranquilidade e mais independência — afirma a diretora.
A gente vai conseguir mostrar para sociedade que é possível esta convivência, refinando o nosso trato, o olhar para o outro, tendo um limiar de tolerância diferente e aprendendo que é na diferença que a gente consegue estruturar possibilidades de convivência melhor.
ADRIANA SCOTT AMARAL RESTELATTO
Diretora da EMEF Catulo da Paixão Cearense
Hoje, há 17 alunos da educação especial matriculados na Catulo. São crianças cegas, com deficiência física ou cognitiva, autistas e crianças com altas habilidades. Outros estudantes estão em avaliação e ainda não têm diagnósticos fechados.
— A escola já teve mais de 30 crianças com necessidades especiais incluídas. Tem épocas que dá uma baixa na procura e agora voltou a ter essa demanda maior. A nossa maior demanda nos últimos anos tem sido de crianças autistas. Temos uma longa caminhada nesse sentido de incluir as crianças. Por isso, muitas vezes, a escola é indicada, e os pais chegam até nós em busca da educação inclusiva com esse olhar voltado e focado no aprendizado e bem-estar das crianças.
"Fez amizades, criou vínculo"
O diferencial não está apenas na acessibilidade, mas nesse olhar focado em acolher as crianças e ensinar a todas elas que é normal ser diferente. Nos murais, quadros e na parede da quadra coberta, há frases inspiradoras sobre o respeito e a aceitação às diferenças. Vicente Antônio Pierucchin, sete anos, é um dos alunos que enfrenta desde cedo a luta por inclusão.
Aos dois anos, ao recorrentemente perguntar "por quê", não se contentava com respostas que não tivessem cunho científico. Aos três anos e meio, aprendeu a ler sozinho, aos quatro já sabia contar os números além do cem e, aos cinco, se interessou por arqueologia. No pátio de casa, montou um "sítio arqueológico" e fez descobertas que compartilhava com a família. Vicente é superdotado e tem dificuldade na socialização porque interage melhor com adultos:
Acredito que seja importante aprendermos a valorizar as potencialidades de cada um, evitando comparações. Ao meu ver, impedimos muitas pessoas de brilhar porque queremos que se encaixem em padrões. Somos todos diferentes, e é isso o que torna a convivência interessante.
DENISE DALLA SANTA
Mãe de Vicente
— Sou arqueólogo, geólogo e estudo astronomia, de que gases são feitos Netuno, Urano, Saturno e Júpiter e do que é feita a água do nosso planeta, de onde veio na origem da vida e até como o universo foi criado, como a terra foi criada —conta o menino, que fica com os olhos brilhando quando fala do espaço.
A professora Denise Dalla Santa, 41 anos, mãe de Vicente, explica que a família sempre soube que ele era diferente, mas não tinha a dimensão do que significava. Para ela, a escola sempre será um desafio para o filho. O menino estudava em uma escola municipal e, na metade do primeiro ano, aos seis, a mãe fez a transferência para uma escola particular:
— Apesar de já ter entrado no primeiro ano com todos os objetivos atingidos, ele não foi acolhido, não se sentiu enturmado e foi considerado um "menino-problema". A escola fez uma série de reuniões comigo e com meu esposo, solicitou exames neurológicos e psicológicos, mas não fez nenhum movimento de acolhimento e valorização dos conhecimentos que ele tinha.
A escola colocou uma monitora para ficar com ele o tempo todo. Denise entende que a formação dela em História fez com que o menino aprendesse ainda mais. A monitora foi quem aconselhou os pais a levarem a criança para avaliação neuropsicológica porque ela tinha certeza de que Vicente possuía altas habilidades. A mãe transferiu o filho novamente para rede municipal:
— A Catulo acolheu o Vicente e nossa família desde o início. Ele se desenvolveu bem, fez amizades, criou vínculos, coisa que não aconteceu nas outras escolas. Ali temos possibilidade de diálogo franco e construtivo. Pensamos em mantê-lo na escola pública para sua escolarização porque sentimos que ali, ele não precisa se encaixar em uma forminha e, apesar das dificuldades, ele pode ser quem ele é. Acho linda a possibilidade que as crianças têm na rede pública de conviver com as diferenças e aprender a aceitá-las.
Respeito às diferenças
Miguel Dellazeri Theo, 10, foi diagnosticado com Drenagem Venosa Anômala Pulmonar Total, (Dvapt) — alteração das artérias que vão do pulmão ao coração. O problema provocou saturação baixa, que ocasionou anoxia cerebral. Aos 11 dias de vida, ele foi operado. As lesões no cérebro ocorreram em uma região que afetou a parte motora, e Miguel não tem o movimento das pernas. Na Catulo, os pais encontraram o respeito e cuidado que esperavam que o filho tivesse.
Crianças...são como borboletas dançando ao vento! Algumas voam rápido, outras voam pausadamente , mas todas voam do seu melhor jeito, porque cada uma é ... Especial
INÊS CLÍMACO
Frase na parede da Catulo
— Eu, como mãe, noto que a comunidade tem muito a aprender com crianças especiais, mas o Miguel, não por ser meu filho, ele tem um jeito de conquistar e conseguiu fazer com que as pessoas olhem para ele de uma maneira diferente — orgulha- se a mãe, Débora Dellazeri Theo, 41.
Há três anos, a família levou um andador para a escola e o cuidador educacional Émerson de Souza, 39, pesquisou como adaptar o equipamento, transformando em um brinquedo para a alegria do menino. Na sala de aula, a atividade preferida de Miguel é desenhar. Ele também gosta de sentar no pátio de acesso à escola, embaixo de uma pitangueira. Está sempre acompanhado por Émerson, com quem tem amizade e cumplicidade.
—Eu gosto de enxergar tudo. Eu tô enxergando o carro do Emerson — conta ele, sorrindo e apontando para o veículo.
Já Sandro Andriel da Rosa Pinto, 12, tem deficiência visual.
— Adoro montar peças — revela o menino sobre a brincadeira favorita.
Ele também tem monitoria.
— Aprendo com ele todos os dias: a conviver com as diferenças e ter pensamento positivo. Ele é um amor. A escola tem esse espírito de equipe, união e acolhida. Todos se ajudam e a diretora é agregadora — afirma Thaís Marcon, que acompanha o menino.
Serviços de Apoio na Catulo
Hoje, há dois serviços de apoio ao estudante na Catulo. Um deles é a cuidadoria prestada pela prefeitura, por meio de uma empresa terceirizada. O outro serviço está disponível pelos planos de saúde, prestado por um atendente terapêutico que recebe um treinamento a partir do programa Análise do Comportamento Aplicada (ABA) voltado ao autismo. Esses profissionais não têm vínculo com a prefeitura, mas passam por um processo e têm a presença liberada nas escolas.