Após um ano de investigação, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou, na quarta-feira (24), duas ações civis públicas pedindo reparação por dano potencial à saúde e dano moral coletivo aos responsáveis por um estudo considerado irregular com o medicamento experimental proxalutamida para o tratamento da covid-19. Os casos foram registrados no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre e no Hospital Arcanjo São Miguel, em Gramado, na Serra, em março de 2021.
As ações incluem União, Estado do Rio Grande do Sul, prefeitura de Gramado e responsáveis pelo hospital na Serra. Se condenados, os réus poderão ter de pagar multa em valor que pode chegar a R$ 10 milhões em cada uma das ações.
Nesta quinta-feira (25), a Polícia Federal e a Procuradoria da República cumprem mandados de busca e apreensão em Porto Alegre e Brasília. A ação faz parte da investigação sobre o uso do medicamento de forma indevida durante o estudo científico.
Segundo o MPF, as duas ações buscam responsabilizar a União, por meio da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão ligado ao Ministério da Saúde, além de pesquisadores envolvidos no estudo. A primeira ação ainda tem como réus o Estado do Rio Grande do Sul e um ex-diretor de saúde da Brigada Militar. A segunda ação considera como responsáveis o município de Gramado e funcionários do Hospital Arcanjo São Miguel.
A investigação teve início após um inquérito civil instaurado na Procuradoria da República no Rio Grande do Sul e na Procuradoria da República no Município de Caxias do Sul, a partir de representação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). A denúncia apurava suspeita de transgressões das normas vigentes sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos na condução do estudo Proxalutamida para pacientes hospitalizados por COVID-19. The Proxa-Rescue AndroCoV trial.
O objetivo do estudo seria avaliar a eficácia e segurança da proxalutamida, que é um medicamento experimental utilizado em pacientes com alguns tipos de câncer, como o de próstata, no combate à covid-19.
Segundo verificado pelo MPF, o protocolo da pesquisa foi aprovado pela Conep em janeiro de 2021, mas autorizando a sua realização em uma única clínica, localizada em Brasília (DF), mesmo que a pesquisa fosse apenas para uso em hospitais.
Em fevereiro de 2021, foi assinado termo de cooperação técnico-científica com especialistas da área de saúde para incluir o Hospital Arcanjo São Miguel como participante da pesquisa. Durante aquele mês, mesmo sem autorização dos órgãos competentes, 63 pacientes do hospital da Serra completaram o tratamento com o uso de proxalutamida.
Em março do mesmo ano, foi realizada cooperação técnico-científica para incluir o Hospital da Brigada, em Porto Alegre, na realização do estudo. Também sem qualquer autorização dos órgãos competentes, 62 pacientes do hospital completaram o tratamento com o uso de proxalutamida.
Além desses dois hospitais, segundo o MPF, instituições de saúde de outras regiões do país, como em Manaus (AM) e Chapecó (SC), acabaram sendo utilizadas no estudo, apesar de não autorizadas. No total, a pesquisa contou com 778 participantes, sendo que o projeto inicial aprovado pela Conep considerava 294 pacientes.
A solicitação para a inclusão de centros de pesquisa e o aumento do número de participantes só ocorreu quando o estudo já estava concluído, e não foram aprovadas. Em setembro de 2021, a Conep decidiu pela suspensão definitiva da pesquisa.
O estudo também foi objeto de investigação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que, após as denúncias, decidiu pela suspensão cautelar, em todo o território nacional, da importação e do uso de produtos contendo a substância proxalutamida para fins de pesquisa científica, a partir de 1º de setembro de 2021.
— Além da participação em si, da pesquisa, também consideramos que os responsáveis fizeram divulgação como se fosse um estudo regular, o que não era — avaliou a procuradora Suzete Bragagnolo.
Contrapontos
Na manhã desta quinta-feira (25), a reportagem entrou em contato com o Hospital Arcanjo São Miguel, que informou aguardar parecer da assessoria jurídica para se manifestar. A Brigada Militar divulgou uma nota na noite desta quinta:
"A Brigada Militar comunica que, a respeito da ação civil promovida pelo Ministério Público Federal em relação a pesquisa com o medicamento proxalutamida junto a pacientes do Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre, que, ao tomar conhecimento de denúncias a respeito de possíveis irregularidades e instaurou um Inquérito Policial Militar em 25 de agosto de 2021. O documento foi concluso em 25 de novembro de 2021, sendo remetido à justiça."
Outras irregularidades
No decorrer das investigações do MPF, outras irregularidades foram constatadas, como a utilização pelos pesquisadores de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) diferente do aprovado pelo órgão regulador, com a subtração de trechos que garantiam os direitos dos participantes da pesquisa, como indenização e assistência em caso de danos, ressarcimento de gastos e fornecimento de métodos contraceptivos.
Sobre os óbitos ocorridos durante a pesquisa, os pesquisadores classificaram como não relacionados à droga de intervenção. No entanto, ainda conforme o MPF, esse entendimento não é sustentado por qualquer análise crítica ou informações sobre os critérios adotados para que se chegasse a essa conclusão. Segundo o órgão federal, tal fato “torna inverossímil descartar a possibilidade de morte provocada por toxicidade medicamentosa ou por procedimentos da pesquisa”.
O número de óbitos somente foi informado à Conep após solicitação do órgão, contrariando dispositivo do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que diz ser obrigação do pesquisador responsável comunicar as mortes imediatamente, seguido de avaliação sobre a necessidade de adequar ou suspender o estudo. Dessa forma, em que pesem as sucessivas mortes, o pesquisador continuou o recrutamento e o andamento da pesquisa.
Entre as demais irregularidades apontadas durante a execução do estudo, estão: falta de controle sobre a dispensação e rastreabilidade do medicamento estudado e do placebo; não apresentação de documentos sobre o curso e a condução do ensaio clínico; não acompanhamento da pesquisa realizada no Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre ou no Hospital Arcanjo São Miguel, em Gramado, por um Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP); uso da proxalutamida por pacientes após a alta hospitalar, em violação ao termos aprovados pela Conep.
Apesar de a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa ter suspendido o estudo e representado ao Ministério Público Federal, os procuradores que assinam as ações civis públicas incluíram a União, da qual a Comissão faz parte, no polo passivo da ação por considerarem que o órgão falhou tanto na apreciação ética do protocolo de pesquisa, o que resultou na autorização inicial do estudo, quanto em seu acompanhamento.
O que é a proxalutamida
A proxalutamida é um medicamento experimental, desenvolvido pela indústria farmacêutica chinesa com o intuito de tratar o câncer. Como bloqueia os receptores de testosterona, sua principal indicação terapêutica é para os tumores de próstata. Mais recentemente, no entanto, passou a ser investigada na covid-19 e teve uso defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. No entanto, a droga não tem aprovação de nenhuma agência regulatória do mundo.