O Ministério Público (MP) irá buscar informações para esclarecer o que houve durante o resgate do último sábado (7) de cães e gatos, supostamente, vítimas de maus-tratos em Caxias do Sul. Na ocasião, um conjunto de protetores de animais acionou a Brigada Militar (BM), contudo os policiais militares não constataram um crime alegando precisar do laudo um veterinário da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Semma). O MP discorda deste entendimento sobre a nova lei municipal. A BM propõe um encontro entre todos os setores competentes para alinhar a forma de atendimento em flagrantes.
Sobre a ação do final de semana, as voluntárias das ONGs Sem Raça Definida (SRD), Vida, Instituto Patinhas e Grupo de Apoio Pet (GAP) relatam que foram atender uma denúncia e encontraram 33 animais. As protetoras conversaram com o tutor que permitiu o resgate de 31 animais e assinou um termo de doação. Contudo, ele quis ficar com outros dois cães ficaram na moradia. Segundo as ONGs, estes dois animais estavam em condições insalubres, em meio a sujeira e sem acesso à água e comida, por isso acionaram a BM.
No atendimento, os policiais militares teriam solicitado um laudo de um médico veterinário mas, depois, informam as voluntárias, afirmaram que só seria aceito o documento se elaborado por um profissional da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Semma). Sem este laudo, não foi considerado um crime em flagrante e, desta forma, os cães continuaram com o dono.
A promotora Janaína De Carli ressalta que o Ministério Público (MP) está em busca de informações para esclarecer e entender o que aconteceu:
— Temos que analisar se esse resgate de animais foi feito na forma da lei. As ONGs não têm poder de polícia. Não têm o poder de recolher animais de seus tutores sem a concordância dos mesmos. Assim, estamos oficiando para os órgãos públicos, a fim de saber se realmente houve crime de maus-tratos, se os animais foram recolhidos, onde se encontram, se foi feito registro de ocorrência.
A promotora afirma que não são apenas os veterinários da Semma que podem atuar em casos de maus-tratos, caso seja configurado o crime.
— O procedimento correto da BM é fazer o boletim de ocorrência e encaminhar o preso para a Polícia Civil, que é quem tem a atribuição de analisar se é ou não caso de lavrar o flagrante, com base nas provas.
Procedimentos adotados geram dúvidas entre ONGs
O argumento que teria sido repassado às ONGs de que apenas um veterinário da Semma pode atestar maus-tratos surge logo após o município ter divulgado, na última semana, que iria promover uma reunião de alinhamento sobre a atuação em casos semelhantes.
Em material divulgado no site do município e encaminhado à imprensa, a prefeitura afirmou que o encontro é necessário diante de "episódios recentes que foram acompanhados pela equipe da secretaria e que evidenciam certa confusão, não apenas do público leigo, como, em alguns casos, até entre agentes oficiais, quanto ao correto encaminhamento de situações envolvendo suspeitas de animal mantido sob condições inadequadas". A prefeitura não detalhou quais são os casos recentes que entrarão na discussão.
Na ocasião, o secretário João Osório Martins afirmou à reportagem que esses encontros eram para que os procedimentos fiquem mais claros, mas não haveria interferência na atuação e resgate das ONGs. Ele ressaltou que a intenção do município é facilitar o processo, contando com o apoio das entidades:
— Nós dobramos o número de veterinários, mas ainda não temos o suficiente para atender todos os casos. Contamos com a colaboração das ONGs e das protetoras e vamos seguir contando dentro das nossas possibilidades. Em momento algum vamos negar ajuda porque os animais necessitam — apontou, na última semana.
Após o ocorrido deste final de semana, a prefeitura divulgou, na tarde desta segunda-feira (8), uma nota na qual cita uma “nova sintonia” entre os envolvidos na causa animal. No texto divulgado, a prefeitura ressalta que não há impeditivo para que Brigada Militar ou Polícia Civil façam o recolhimento e encaminhem um animal para algum abrigo. Segundo o comunicado, a prerrogativa é “exclusiva das forças da lei”.
A nota ainda aponta que não há obrigatoriedade de que as forças policiais só resgatem animais em situação suspeita de maus-tratos quando houver respaldo da equipe técnica da Semma. O critério, em cada situação, seria das forças policiais.
A nota termina afirmando que, em data ainda a definir, uma nova reunião “dará ajustes na sincronia de ações entre município e forças da lei”.
Brigada Militar afirma seguir decreto municipal
O comandante do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM), tenente-coronel Emerson Ubirajara de Souza, afirma que a Brigada Militar (BM) cumpre a lei e respeita o que diz o artigo 24 do decreto municipal Nº 22.019, de 14 de abril de 2022. Nos incisos 12 e 13, segundo o comandante, consta que a competência para fazer os laudos de maus-tratos e acompanhar as ocorrências é responsabilidade da Semma.
— A Brigada está cumprindo o que está escrito no decreto municipal, onde diz que a competência é da Semma. Por isso que, muitas vezes, quando a Brigada Militar é acionada para uma ocorrência de maus-tratos, quando o policial chegar pela análise suspeitar ou verificar quaisquer sinais, ele aciona a Semma, que deve comparecer ao local para fazer o laudo.
O comandante ressalta ainda que, a partir disso, o policial conduz a ocorrência para a delegacia. A reportagem questionou o funcionamento aos finais de semana, uma vez que não há plantão da secretaria fora de horários de expediente.
— Nós fazemos o atendimento e tentamos acionar a Semma. Quando isso não acontece, encaminhamos a ocorrência para o plantão da Polícia Civil e conversamos com o delegado. A partir daí ele toma as providências que entende necessárias. Em algumas situações, foi nomeado um veterinário fora da Semma para que estabelecesse um laudo e ele pudesse efetuar o registro. Às vezes, não é adotada a providência que deveria ser adotada devido a falta de atendimento — admite o comandante.
No decreto citado pelo comandante consta que compete ao Departamento de Bem-Estar Animal "elaborar parecer técnico nos processos de denúncia relativas a maus-tratos e abandonos de animais dentro do Município"; e "acompanhar e averiguar as denúncias de maus tratos registradas junto à Secretaria Municipal de Meio Ambiente". Contudo, o MP afirma que esse atendimento é para casos administrativos.
O comandante ressalta que se há desencontro de informações, ele deve ser ajustado em reunião futura com o município e demais órgãos da cidade.
Especialistas afirmam que qualquer veterinário pode apontar maus tratos
O advogado Rogério Rammê, professor de Direito Animal, entende que não está previsto em lei quem pode fazer o laudo, porque não estão claras na legislação quais são as condutas que caracterizam o crime. Contudo, o especialista explica que não há como exigir que a Semma esteja presente em todas as ocorrências. Por isso, basta o laudo de um médico veterinário.
— Qualquer delegado pode se valer de prova técnica de qualquer veterinário, não exclusivamente da Semma. Seria um absurdo a Semma estar presente em todas as ocorrências. Isso é inviável. Então, via de regra, o serviço de segurança pública pode se valer de um veterinário que atue junto a ONGs.
Ele ressalta, inclusive, que a resolução 1.236, de 2018, do Conselho Federal de Medicina Veterinária, deixa claro que o profissional é o único que pode laudar maus-tratos:
— O veterinário é o único profissional habilitado para atestar maus-tratos. Não precisa ser um veterinário concursado que integra o órgão público ou uma secretaria para estar habilitado.
O coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do Ministério Público do Rio Grande do Sul, o promotor Justiça Daniel Martini, ressalta que com a nova lei, que prevê reclusão, há a possibilidade de flagrante, e por isso são aceitos laudos de veterinários que não sejam da Semma.
— Para que haja uma situação de flagrante qualquer prova é hábil. Uma coisa, por exemplo, é o policial que dá voz de prisão. Outra coisa é chegar na delegacia e o delegado dizer não, não é o caso de flagrante. Ele tem essa possibilidade se verificar, por exemplo, que não ocorreu o delito. Mas pode lavrar o flagrante, atendidos os demais requisitos, com o laudo de uma ONG.
O que diz a Polícia Civil
O titular do 3º Distrito Policial, delegado Edinei Albarello, ficará responsável pelo caso. Nesta segunda-feira, contudo, Edinei informou que não havia localizado a ocorrência sobre o caso do final de semana e, portanto, não poderia comentar o fato específico.
Em relação a procedimentos para caso de maus-tratos de animais, ele explica que a prisão em flagrante do autor vai depender da análise do delegado plantonista. Ou seja, a autoridade policial é que decidirá se cabe a prisão em flagrante de acordo com as provas apresentadas e as circunstâncias do fato.
Por outro lado, a condução de um suspeito à delegacia, em casos de maus-tratos de animais, também é definida pelo policial militar envolvido na ocorrência, segundo Edinei. O delegado frisa que toda ocorrência gera um inquérito policial, ou seja, leva a uma investigação para esclarecer fatos e apontar responsabilidades.
— Leigos acham que, por não ter flagrante, o tutor não irá responder se houver crime. Mas, por ter um inquérito policial, ele pode responder, sim — garante o delegado.
Conforme o delegado do plantão de sábado, Rodrigo Bernardes de Assis, por ter sido feita a retirada dos 31 animais antes da Brigada Militar chegar ao local, não foi possível constatar nenhum crime referente a esses. Sobre os outros dois animais que continuaram, o registro da ocorrência ficou o feito pela BM.