É em um espaço especial que centenas de novas histórias estão à disposição para serem descobertas pelas 80 crianças e adolescentes, de seis a 15 anos, atendidas no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos Irmão Sol, no loteamento Campos da Serra, em Caxias do Sul. Funcionando desde o mês passado, mas inaugurada oficialmente nesta quarta-feira (13), uma biblioteca formada por doações de uma professora e também de estudantes do Colégio São José ajuda a incentivar a leitura dos pequenos no serviço que atende jovens em situação de vulnerabilidade no contraturno escolar.
Mais do que terem acesso a obras de diferentes gêneros literários, os novos leitores também são guardiões de um acervo construído há décadas. Isso porque a maioria das obras que compõem a biblioteca no Campos da Serra foram doadas pela professora de português Mara Cristina Torresini, que é amiga e foi colega da professora Lorita de Souza. Lorita está à frente do Grupo de Jovens do Colégio São José, composto por mais de cem alunos, do Ensino Fundamental ao Médio, que realizam ações de voluntariado em entidades de Caxias.
Um dos desejos do grupo, segundo ela, era inaugurar uma biblioteca para incentivar a leitura de crianças e jovens nas comunidades. Nos últimos meses, o sonho começou a ganhar forma a partir de um pedido especial. Aos 71 anos, depois de anos lecionando português, literatura e trabalhar também como revisora de redações de vestibular, a professora Mara Torresini precisa de cuidados médicos e mora atualmente em uma casa para idosos. Por isso, todo o acervo da imensa biblioteca, com coleções e títulos variados, precisava de novos donos.
— Ela me disse que queria doar os livros, mas gostaria que eu destinasse para um lugar especial, para que as pessoas pudessem aproveitar e adquirir conhecimento. Desde então, começamos a pensar em quem poderia cuidar dessas obras e realizar o desejo dela de dar continuidade — explica a professora Lorita, que relembrou que as duas foram colegas na década de 1990 no Instituto Estadual de Educação Cristóvão de Mendoza, onde cultivaram uma amizade que perpetuou pelos anos seguintes.
Com o sonho de abrir uma biblioteca e disposta a ajudar a amiga, a professora Lorita e os estudantes do São José se mobilizaram para encontrar um espaço para abrigar o acervo. Pediram ajuda ao Frei Jaime Bettega, responsável pela Associação Mão Amiga, que administra os serviços de convivência e fortalecimento de vínculos em Caxias juntamente com a Fundação de Assistência Social (FAS).
Foi nesse momento que a professora encontrou a coordenadora do Irmão Sol, Fernanda Osório Borges, que já havia manifestado a Bettega a vontade de encontrar parceiros para inaugurar uma biblioteca dentro da casa que ela coordena há quase dois anos.
— Surgiu a vontade da professora Lorita e o grupo de jovens em doar e o nosso interesse em receber essa doação que, para nós, é muito valiosa. São crianças que, mesmo matriculadas na escola, não têm o hábito da leitura e é nosso papel, como educadores, permitir que elas conheçam e tenham cada vez mais oportunidades de inserir isso no dia a dia delas — conta Fernanda.
Como homenagem, a biblioteca no Irmão Sol foi batizada com o nome da professora Mara Cristina Torresini. As paredes azuis também receberam uma pintura especial. Além de parte das obras da professora Mara, os estudantes do São José também contribuíram com obras, principalmente infantis, além do mobiliário onde os livros foram organizados.
A inauguração do espaço permitiu também um momento de confraternização entre as crianças e adolescentes do Irmão Sol com os estudantes do São José. Os jovens do Campos da Serra receberam o grupo com duas apresentações: uma de maculelê, dança de matriz africana com bastões, e também de capoeira. São algumas das diversas atividades que eles aprendem durante o período de permanência na casa. Um estudante do São José, caracterizado como Michael Jackson, preparou uma coreografia da música Billie Jean.
Ao fim, com doces, salgados e refrigerante, todos comemoraram o encerramento de um capítulo feliz para ambos os jovens.
Crianças reservam meia hora para leitura
Com os livros doados e uma biblioteca novinha no espaço, a rotina de aprendizagem no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos Irmão Sol mudou. Diariamente, as crianças e jovens reservam 30 minutos para a leitura. Aos que ainda não foram alfabetizados, o período é para folhearem as obras e visualizarem as figuras e desenhos. O desejo agora é permitir que os jovens levem as obras para casa, por meio de empréstimos, para seguirem desenvolvendo a atividade e criarem o hábito no horário que não estão na escola e nem no serviço.
Ao mesmo tempo, segundo a coordenadora Fernanda Borges, era necessário envolvê-los na organização da biblioteca. Por isso, segundo ela, os próprios estudantes foram organizados para catalogar as obras. Em uma planilha no computador, eles registraram o título, autor, organizaram as coleções e enumeraram os livros para que pudessem saber qual era o tesouro que eles estavam recebendo.
— Pensamos nisso para que eles se sentissem parte de todo esse trabalho. É uma história que eles vão poder contar, de quem ajudou, organizou e pode aproveitar esse presente que recebemos — conta a coordenadora.
Essa atividade de organização ficou sob a responsabilidade dos estudantes Mateus José Luger, 14 anos, e Keli Antunes Teixeira, 15. Ambos também são colegas do oitavo ano da Escola Municipal Leonel Brizola. Para eles, o envolvimento na ação foi uma experiência de organização e trabalho em equipe.
— Um colocava no computador e o outro colocava o número no livro. É uma sensação boa ajudar a organizar um presente como esse — descreveu Mateus.
Quem também está entusiasmado com a novidade é o estudante Bernardo Augusto Brito, 10. Matriculado no quarto ano da Escola Província de Mendoza, ele conta que leu o livro Diário de Um Banana, que faz sucesso entre os jovens e que está à disposição na biblioteca.
— Se a gente não está lendo, alguém está contando uma história. Tem sido legal — relata.
O mesmo sentimento é compartilhado por Davi Floriano Lopes, 12. Procurar por títulos que despertam a curiosidade em saber mais tem sido uma das novas atividades que ele faz no Irmão Sol.
— Eu não costumava ler, mas agora estamos fazendo mais isso. Como está aqui, fica mais fácil pegar para ler — conta.
A vontade de abrir a biblioteca no Irmão Sol, segundo a coordenadora Fernanda, é para ajudar na aprendizagem das crianças e permitir que elas conheçam cada vez mais o mundo das palavras. Mesmo com pouco tempo de atividade, a biblioteca tem permitido mudanças no grupo, segundo ela.
— É visível a dificuldade que eles têm na leitura e na escrita. Senti muito isso quando cheguei aqui. Tem crianças com 10 anos que não são alfabetizadas. Mas temos sentido a diferença. Tem educadores que nos relataram que algumas crianças conseguem pegar um livro da nossa biblioteca e já estão soletrando. Isso é maravilhoso — relata.
O próximo passo é colocar para funcionar uma sala de informática no Irmão Sol. O espaço está sendo organizado com computadores que a casa recebeu de uma empresa da cidade. Além de incentivar a leitura e colocar o hábito como uma rotina diária, o desejo também é inseri-las no mundo digital, algo que não é tão presente no dia a dia dos estudantes.