Mesmo com avanços reconhecidos nos últimos anos ainda é necessária uma data para lembrar que as mulheres não vivem em condições iguais às dos homens tanto no Brasil como no mundo. Um dia exclusivo no calendário para que os holofotes se voltem a elas e às suas lutas, que vão além de direitos políticos, civis e sociais.
Independente se são pessoas da vida pública ou que fazem história silenciosamente no dia a dia, este 8 de março, Dia Internacional da Mulher, serve também para conhecer histórias de mulheres que servem de referência para outras.
Por isso, o Pioneiro perguntou a lideranças femininas de Caxias do Sul na política, em bairros e no movimento social quem são as mulheres que as inspiram, sendo fundamentais para estarem nos cargos onde estão ou na maneira como conduzem o seu trabalho atualmente.
Os depoimentos foram feitos ao repórter Leonardo Portella.
Paula Ioris | Vice-prefeita de Caxias do Sul
“Construí a minha carreira profissional na iniciativa privada, primeiro na indústria e depois na área da saúde. Entrei na política com uma missão e por uma causa quando entendi que esse era o caminho para tornar o mundo um lugar melhor e mais seguro para se viver. Até então, naquele momento, nenhuma mulher havia me inspirado a dar os meus primeiros passos em uma área totalmente nova e desconhecida.
Hoje, consigo ver exemplos de grandes líderes mundiais e que foram primeiras-ministras em seus países, como Indira Gandhi, com uma incrível capacidade de envolvimento com as pessoas. Ou o caso de Margaret Thatcher, um ícone que enfrentou momentos difíceis e que superou isso com muito trabalho. E a Angela Merkel, com uma postura de força e protagonismo na Europa. Além delas, pensando mais perto da nossa realidade, posso dizer que a minha inspiração é a prefeita de Pelotas, Paula Mascarenhas.
O que todas essas mulheres têm em comum? São lideranças de comando, do Executivo, que exige coragem, determinação e muita negociação. E a Paula tem uma visão municipalista que me fez abrir os olhos e mudar meus conceitos. Minha bandeira sempre foi a segurança pública e me coloquei à disposição para concorrer à deputada federal porque queria mudar a legislação penal e defender a redução da maioridade penal. Ainda acredito nisso, mas, vendo o exemplo dela, entendi que podemos trabalhar a prevenção atuando nos municípios. Não preciso estar em Brasília para fazer aquilo que me propus quando entrei na política.
A prefeita Paula comanda um programa fantástico na Zona Sul, que é o Pacto Pelotas pela Paz, que trabalha o social e a educação como medidas de enfrentamento à criminalidade e trouxe resultados para diminuir a violência na cidade. Vi uma palestra dela alertando que, quando olhamos o perfil das pessoas em casas penais, a grande maioria tem apenas o ensino fundamental como escolaridade. Esse também é um problema que precisamos enfrentar e que os municípios têm mecanismos para isso. E essa visão e determinação dela me encantam. Muitos programas criados em Pelotas são exemplos para ações que estamos implementando em Caxias.
Ou seja, aprendi ao longo dos anos com o exemplo da gestão dela que as decisões ocorrem nos municípios e que podemos fazer grandes transformações com a união de todos os setores da sociedade. São nas cidades que as pessoas moram, onde tudo acontece e por onde as mudanças podem começar. O Legislativo tem o seu papel, é fundamental para a nossa democracia, mas as decisões, o papel de gestão, está do outro lado”.
* Paula Mascarenhas é a atual prefeita de Pelotas. Foi eleita pela primeira vez em 2016 e se reelegeu em 2020.
Denise Pessôa | Presidente da Câmara de Vereadores de Caxias do Sul
"Muitas mulheres fizeram e fazem parte da minha caminhada e é um desafio muito grande escolher uma só como inspiração. Mas, quero destacar a influência de Geci Prates na minha decisão de concorrer à vereadora em 2008. Um ano antes da minha estreia nas urnas, trabalhamos juntas no gabinete da então deputada estadual Marisa Formolo — outra referência para mim ao lado da minha mãe Benta.
Eu, jovem, e a Geci, a experiência de quem fundou o Partido dos Trabalhadores em Caxias, a CUT, concorreu a vice-governadora na década de 1980 e que servia como exemplo para a juventude. Ela sempre dizia que era necessário ter pessoas novas no partido e o apoio dela foi importante para que pudéssemos nos eleger pela primeira vez como vereadora em Caxias.
Me recordo bem dos conselhos e da coerência dela nos discursos e sempre nos indicando o melhor caminho. Ao mesmo tempo, respeitava a nossa autonomia enquanto jovens na época. Na minha primeira campanha, lembro que estava preocupada porque o que eu falava era muito diferente do que os outros candidatos diziam. Quando a gente é jovem é comum ir se adequando ao que está sendo posto e não existiam mulheres jovens na política.
E a Geci naquele momento me tranquilizou, falou que eu não tinha que dizer a mesma coisa que os outros, mas sim aquilo que eu representava. Deu importância para a minha voz e para as nossas lutas. Se ninguém mais reproduzia os mesmos discursos que eu, era porque o que eu tinha para falar era importante. Hoje isso está muito claro na minha cabeça porque lá atrás eu tive uma pessoa como a Geci para abrir os caminhos na política.
Ela era tão importante que trabalhou comigo como coordenadora da minha primeira campanha e, depois, como minha assessora no primeiro mandato. No início, cada passo que eu dava eu consultava a Geci, mas, com a piora do estado de saúde dela, ela ficava muito tempo fora por causa do tratamento.
Até nisso ela foi generosa, me dando autonomia aos poucos para que depois eu pudesse seguir em frente. Mas, até hoje nos momentos difíceis, sempre me concentro, faço a minha oração e penso o que será que a Geci faria nesse momento. Mesmo hoje, ela ainda segue me dando um norte.
* Geci Prates foi uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores (PT) em Caxias. Também atuou no movimento sindical. Morreu em 2013 após seis anos de luta contra um câncer.
Bartira dos Santos | Presidente da Associação de Moradores do bairro De Lazzer
“Lembro da Geni Peteffi frequentando a minha casa, no bairro De Zorzi, desde quando eu era criança. Ela e meu pai, o seu Antônio, sindicalista da área da construção civil e mobiliária, nutriam uma relação de amizade e que se estendeu para toda a minha família. O bairro tinha muitos problemas de infraestrutura e ela ajudou bastante.
Por isso, aos 12 anos, antes de ter idade para votar, eu saia na rua, com adesivo dela no peito, em cima de carro, quando isso era possível. Não sei explicar como começou ou de onde surgiu, mas sempre vi na Geni uma referência de luta feminina e protagonismo. Estamos falando de uma época, não muito distante, em que os homens predominavam nas posições de destaque, algo rompido muito pela atuação dela e que também serviu para abrir portas para muitas outras mulheres dentro e fora da política.
No início dos anos 2000, no meu tempo de estudante no Colégio Imigrante, apesar de nunca ter feito parte do Grêmio Estudantil, sempre me considerei uma liderança. E tive uma ajuda dela que nunca mais esqueci. Me propus a engajar os alunos de Caxias a participar de um congresso estudantil em Porto Alegre. Fui em várias escolas, de sala em sala, convidando para a programação. Porém, muitos não tinham condições de arcar com as despesas, tanto do transporte como da alimentação.
Essa dificuldade faria com que a viagem e esse momento de encontro dos estudantes não saísse do papel. Mas, como conhecia a Geni, resolvi pedir a ajuda dela. Em pouco tempo, ela arranjou o transporte e arcou com as despesas de alimentação de quem fosse. Compramos os alimentos e montamos sanduíches para levar. Conseguimos dois micro-ônibus e fomos, mais ou menos, umas 50 pessoas, para participar do congresso. Se não fosse ela, não teríamos ido e foi algo inesquecível. Naquele momento, ela me ganhou.
Ela faz muita falta (Geni faleceu em 2013) e esse espírito de comunidade dela se mantém até hoje em mim. Quando cheguei para morar no bairro De Lazzer, cinco anos atrás, não havia uma Amob atuante. Por isso, decidi concorrer em 2019, pela primeira vez, muito por conta da inspiração que tenho na Geni. Venci com mais de 40 votos, um número importante para quem era pouco conhecida. Sigo um pouco dos passos dela para manter esse legado vivo”.
* Geni Peteffi foi vereadora em seis mandatos (1988, 1992, 1996, 2000, 2004 e 2008). Em 2012 assumiu a presidência da Câmara de Vereadores e a prefeitura de Caxias do Sul, como prefeita em exercício.
Cleonice Araújo | Ativista do movimento LGBT+
“Cheguei a Caxias do Sul em 2004 e fui morar no bairro Forqueta. Naquela época, muito diferente dos dias atuais, que mesmo assim ainda são difíceis, era raro ver um casal homossexual manifestar qualquer tipo de carinho nas ruas e outros locais públicos. Eu sabia que as dificuldades seriam grandes para uma mulher trans, nascida no Mato Grosso e descendente de indígenas. Ao mesmo tempo, tinha na minha mente que nunca iria tolerar que meus direitos fossem negados, até o momento que passei por uma situação de discriminação e fiquei sem saber o que fazer.
Naquela época, logo quando cheguei, montei um negócio de álbuns de fotografia e precisava abrir uma conta no banco para poder comprar uma máquina nova. O equipamento era importado, eu tinha o dinheiro em mãos, mas precisava da conta para poder fazer o depósito e a transferência.
Porém, a gerente do banco na época se negou a abrir a conta porque meus documentos ainda constavam com meu nome masculino de nascimento — que eu não falo qual era nem por reza brava —, mas ali na frente dela estava uma mulher. A minha foto do documento também era de mulher trans. Mesmo eu explicando, pedindo para que eu fosse chamada pelo pronome feminino, a gerente insistia em me atender mal e me chamar de ele. Era algo que me doeu muito, mexia com o meu nome, com a minha coragem e conquista.
Naquele momento, indignada, sai do banco, registrei um boletim de ocorrência e procurei a Comissão de Direitos Humanos, na época presidida pela então vereadora Ana Corso. Expliquei o que aconteceu e ela, em uma única ligação, resolveu o meu problema. Ana foi fundamental para garantir o meu direito como cidadã e fundamental para que eu não desistisse mesmo quando tudo parecia conspirar contra. Voltei novamente naquela agência, provei mais uma vez que eu era aquela pessoa do documento, e sai com a conta aberta e disponível para que eu pudesse tocar o meu negócio.
Ao mesmo tempo, ganhei uma amiga, que me abriu portas e incentiva que eu e tantas outras mulheres assumam lugares de destaque, seja na política ou nas causas sociais. Em 2018, após uma lei, conquistamos o direito de usar o nome social e tenho meus documentos como Cleonice Araújo”.
* Ana Corso foi vereadora de Caxias por quatro mandatos consecutivos (1996, 2000, 2004 e 2008). Como suplente, exerceu mandato de deputada federal entre 2001 e 2002.