Basta um olhar mais atento no dia a dia para perceber que as calçadas seguem sendo utilizadas como moradia improvisada por pessoas em situação de rua em Caxias do Sul. Espaços em prédios desativados ou com menor movimentação, principalmente onde há cobertura para proteção do sol, da chuva e do frio, são os pontos que costumam abrigar a população sem-teto. Diante do desafio, a Fundação de Assistência Social (FAS), órgão ligado à prefeitura de Caxias do Sul, afirma que o trabalho das equipes busca garantir acolhimento e formação de novos vínculos para que essas pessoas retomem a autonomia e possam ultrapassar a barreira da desproteção ao deixar de viverem nas ruas.
Segundo dados do Cadastro Único da FAS, atualizado no final de dezembro do ano passado, são 644 pessoas em situação de rua no município, sendo a grande maioria homens. O número é maior que o percebido no início da pandemia, em abril de 2020, quando 354 pessoas ocupavam as ruas da cidade para morar, conforme números divulgados na época pela FAS. O mesmo material, disponibilizado pela prefeitura, informa também que, no início de 2020, eram 741 sem-teto na cidade.
No cargo desde janeiro de 2021, a atual presidente da FAS, Katiane Boschetti, disse que não reconhece os dados sobre a população em situação de rua e qual a metodologia foi utilizada nos números de 2020. Segundo ela, com base no cadastro do órgão, eram 643 pessoas morando de forma improvisada em ruas e calçadas do município em abril daquele ano.
— Desconheço qual foi a base de dados utilizada para os números disponibilizados antes de 2021. As informações que usamos são baseadas no cadastro único, tanto para o dado mais recente, de dezembro do ano passado, como para os de abril de 2020. Mesmo assim, os números do cadastro único mudam bastante porque a população vem ou sai da cidade — explica.
Fatores como a migração e a própria oscilação entre a moradia e a falta dela tornam mais difícil mensurar o número de pessoas que, por vontade própria ou não, escolheram a rua como local para moradia. Nos últimos meses, chamou a atenção a presença de moradores em situação de rua instalados em dois pontos da Rua Luiz Michelon, no bairro Cruzeiro, e também na Rua Plácido de Castro, na calçada do prédio da antiga Metalúrgica Abramo Eberle (Maesa), no bairro Exposição. Esse último foi desocupado nesta quarta-feira (19) (leia mais abaixo). Outros registros foram feitos também no Parque Cinquentenário.
Nesses locais, há casas improvisadas na calçada, construídas com a ajuda de papelão, colchões e cobertas com tecidos mais reforçados. Alguns usam um plástico mais escuro como proteção e para conseguir alguma privacidade entre o vai e vem de pessoas e veículos. Além de estarem em locais mais afastados, são áreas próximas a zonas residenciais, de onde é possível coletar materiais recicláveis, sendo essa a fonte de renda de quem busca sobreviver nas ruas de uma grande cidade.
De acordo com a presidente da FAS, os moradores desses pontos são conhecidos pelos programas de assistência social do município e migram de um local para o outro. As equipes de acolhimento identificaram que os moradores da Luiz Michelon, por exemplo, ocupavam até pouco tempo vias próximas ao prédio da antiga metalúrgica Dambroz, às margens da BR-116, no bairro Sagrada Família.
— O foco do serviço de assistência social é atender a população a partir das suas necessidades, respeitando o ir e vir das pessoas em situação de rua. É assim porque esse trabalho municipal é regrado por uma legislação federal que estabelece como podem ser feitas as ações de acolhimento a essa população. É preciso que a comunidade saiba, por exemplo, que é proibida a remoção de pessoas em espaços públicos por estarem na rua. Há o entendimento também que os domicílios improvisados são equiparáveis a uma moradia e que não podem ser violados — explica.
A FAS monitora também o crescimento de pessoas em situação de rua na Cristóforo Randon, próximo ao Estádio Centenário.
Moradores deixam a Plácido de Castro e são encaminhados para casa de acolhimento
Dois moradores em situação de rua que ocupavam parte da calçada na Rua Plácido de Castro, no bairro Exposição, em Caxias do Sul, deixaram o espaço na tarde desta quarta-feira (19). O local onde eles permaneceram nos últimos dias fica junto à Maesa. Os dois homens aceitaram o atendimento oferecido pela Fundação de Assistência Social (FAS) e foram encaminhados para casas de acolhimento mantidas pelo município. No novo espaço, trocarão a insegurança e o improviso das ruas por uma cama, alimentação, banho e outros serviços de proteção.
De acordo com a presidente da FAS, Katiane Boschetti, um dos homens havia aceitado deixar o local para se mudar para uma casa de acolhimento a partir desta quarta-feira (leia mais abaixo). Ao chegar no local, as equipes do Centro Pop Rua também acolheram um outro morador após ele aceitar a transferência. O Centro Pop Rua é um serviço responsável pela primeira abordagem social na rua, conhecendo as necessidades de cada morador e, inclusive, oferecendo acolhimento. As equipes da prefeitura também forneceram produtos para que eles pudessem fazer a limpeza do local antes de mudarem de endereço.
Além desses dois homens, a FAS havia acolhido na semana passada outro indivíduo que morava de forma improvisada na Plácido de Castro. Na residência, segundo a presidente, ele recebeu orientações para a primeira entrevista de emprego que participou desde que iniciou a carreira profissional, foi selecionado e começará a trabalhar em uma empresa da cidade na semana que vem.
Os esforços da FAS é evitar que o local volte a ser ocupado.
— Do grupo que estava ali até então, conseguimos acolher todos e o espaço agora não tem mais moradores em situação de rua. Vamos, agora, intensificar o trabalho e as rondas para que outras pessoas não voltem a ocupar esse espaço — garantiu Katiane.
Nesta semana, a presidente da FAS divulgou uma carta em que destaca as ações da pasta como resposta às críticas feitas em redes sociais sobre a população em situação de rua no município, principalmente em relação aos moradores na calçada da Plácido de Castro. Segundo ela, o serviço de acolhimento é a principal ação para diminuir esse problema e tem tido bons resultados, como foi no exemplo dos moradores do bairro Exposição.
Além de banho, dormitório e alimentação, as casas de acolhimento oferecem atendimento com assistentes sociais e assistência em saúde e psicológica. Também são realizadas oficinas e outras atividades coletivas para o fornecimento de orientações gerais, emissão de passagens para que retornem para as suas cidades de origem e elaboração de currículos para serem encaminhados para vagas de trabalho.
Assim que estruturarem as suas vidas, eles devem deixar os locais. As casas de acolhimento operam com grande demanda. Das 140 vagas em três espaços no município, até terça (18) havia 17 vagas disponíveis, sendo uma única para o público feminino.
Ações como essa são bem-vindas pelos moradores, mas que, muitas vezes, acabam retornando em seguida para as ruas. Segundo ela, isso envolve a dificuldade de convivência em grupo, no cumprimento das regras dos serviços, além do uso de álcool e outros vícios.
— É uma escolha das pessoas e precisamos respeitar. Queremos que essas pessoas acolhidas possam encontrar um emprego, nossa cidade tem retomado isso, então acaba ficando mais fácil reinserir essas pessoas no mercado de trabalho.
Katiane reforça também que a comunidade acaba incentivando a permanência das pessoas nas ruas. No caso do então morador da Maesa, as casinhas para os dois cachorros foram doações da comunidade.
— Enquanto uma parte da população cobra que o poder público tome decisões, há outra parcela que faz doações. Mesmo que com boa intenção, acaba incentivando a permanência dessas pessoas nesses locais — afirma.
"Quero ver se consigo deixar de vez a calçada", diz homem que saiu da Plácido de Castro e foi para casa de acolhimento
A reportagem do Pioneiro conversou na terça (18) com os dois homens que moravam de forma improvisada na calçada da Rua Plácido de Castro, junto ao Complexo da Maesa, no bairro Exposição, em Caxias do Sul. Eles aceitaram falar sem informar os nomes, tão pouco as idades e também não autorizaram a produção de fotos que os identificassem.
O homem mais disposto a conversar já havia antecipado que estava se organizando para deixar a calçada e se instalar na Casa de Passagem São Francisco de Assis, um dos locais de acolhimento para pessoas desabrigadas ou em situação de rua em Caxias.
Na terça, quando a reportagem chegou, ele estava arrumando alguns pertences que poderá levar para o local e outros que precisará descartar. As cachorrinhas Magrela e Estrelinha acompanham ele na nova moradia, assim como o carrinho para o recolhimento de materiais recicláveis.
Essa será a segunda passagem do homem pelo local. Na primeira vez, segundo ele, permaneceu por cerca de 30 dias e deixou a casa para "voltar a viver uma vida mais desregrada" nas ruas. Agora, após contato e auxílio do Centro Pop Rua, ele aceitou novamente deixar as ruas, local que faz como moradia há três décadas. A mudança tem uma justificativa: disse que quer um emprego para poder alugar uma casa e ter uma vida melhor.
— Quem não quer uma cama confortável, uma ‘sky’ para ver televisão, um lugar mais quentinho pra viver? É claro que eu quero também. Todo mundo tem os seus sonhos. Na rua, a gente vê tudo que é tipo de gente e, agora, quero ver se consigo deixar de vez a calçada — conta ele, que trabalha com serviços gerais, como jardinagem, instalações e pedreiro.
O homem contou ainda que morou embaixo de pontes, ruas e calçadas em diversas cidades gaúchas, mas afirmou não se lembrar desde quando está em Caxias. Disse também que decidiu morar nas ruas após conflitos familiares e que nunca sofreu nenhum tipo de violência. Na Plácido de Castro, instalou-se há cerca de dois meses. Também contou que nunca percebeu nenhuma reclamação de moradores por ocupar o espaço em uma das áreas mais nobres da cidade. Pelo contrário: disse que há pessoas que os auxiliam, principalmente com alimentação.
Nesse momento da conversa, ele mostrou os sacos de arroz, feijão e embalagens de óleo de soja que recebeu como doação e que estavam armazenados em caixas, também na calçada. Como estava de mudança para a casa de acolhimento, separou alguns alimentos em um saco preto para deixar para outros moradores em situação de rua.
Ambos os homens vivem da coleta de materiais recicláveis, que carregam nos carrinhos. Entretanto, dizem que o valor pago pelo material, principalmente o papelão, caiu muito nos últimos anos.
— Precisamos encher um carrinho para ganhar uns trocados, poder comprar alguma coisa, sustentar o vício e era isso. Trabalha o dobro para receber cada vez menos— reclama.