Embora seja possível ver diversas pessoas vivendo sob marquises, em calçadas ou casas abandonadas em Caxias do Sul, alguns pontos da cidade conhecidos pela presença de moradores de rua têm atraído um público significativamente menor nos últimos meses. A percepção da vizinhança de áreas como os viadutos próximos ao Monumento ao Imigrante e na Avenida Júlio de Castilhos, entre os bairros Marechal Floriano e Cinquentenário, ao lado do Senac, é de que não há tantos homens e mulheres ao relento como no final do ano passado, o que vem sendo demonstrado pela Fundação de Assistência Social (FAS). Segundo a instituição, a cidade passou a ter 52% menos desabrigados.
De 741 pessoas identificadas nessa condição no início do ano, a FAS diz ter encaminhado 387 para suas cidades de origem, para tratamentos contra o vício em drogas e álcool ou de volta para suas famílias. É um feito notável, pois não há notícias anteriores que mostrem uma migração tão grande como essa, visto que o resgate de moradores de rua é uma das tarefas mais complexas e difíceis.
O dado da FAS desperta curiosidade, principalmente, pelo número relacionado à população total de moradores de rua na cidade. O último censo oficial é de 2007, quando o município, a pedido do governo federal, identificou 100 pessoas vivendo em calçadas, casas abandonadas ou terrenos baldios. Não houve outro levantamento mais preciso desde então. A quantidade, obviamente, cresceu. Em 2019, a FAS estimava 400 sem-teto na cidade. Em fevereiro deste ano, sob nova gestão, a fundação divulgou que Caxias tinha 741 moradores de rua, um espantoso crescimento de 85% em relação ao ano passado.
O dado que embasa o aumento populacional foi extraído de duas fontes, de acordo com a diretora de Proteção Social Especial da FAS, Vanda Ferreira Vetorazzi. A primeira coleta se deu por meio das abordagens de rua e dos atendimentos do Centro Pop Rua, em que as equipes produziram listas com com dezenas de nomes. Em seguida, o levantamento foi cruzado com a identificação de cerca de 600 pessoas que se identificam como moradores de rua no Cadastro Único e chegou-se ao número de 741 sem-teto.
O passo seguinte foi trabalhar a vinculação e o encaminhamento desse público. A presidente da FAS, Marlês Estela Sebben, e equipe afirmam que estabeleceram ações a partir de cada caso, com apoio de secretarias municipais, Defesa Civil, voluntários e outras instituições. O perfil de mais de um terço dos moradores de rua é outro dado que chama a atenção. Boa parte dos desabrigados era de outras regiões do Estado e do país. Muitos trabalharam em safras ou perderam seus postos de trabalho e passaram a viver nas ruas. Como estavam com o vínculo rompido com suas famílias, os assistentes sociais fizeram uma escuta para identificar quais eram seus anseios. Em seguida, o município abriu uma ponte entre eles e seus parentes. Dezenas relataram ter vontade de retornar aos municípios de origem, mas não tinham dinheiro para passagens de ônibus ou avião. Logo, a solução foi viabilizar o retorno deles. Entre janeiro e abril, a fundação providenciou o auxílio para o transporte de 277 pessoas, o que representou 37,3% da população de rua.
– Não foi apenas dar uma passagem de ônibus por dar. Houve um acompanhamento, entrevista individual. Eles tinham liberdade de conversar com seus familiares. Foi sendo preparado para quem quisesse retornar. As famílias deles têm todo um acompanhamento assistencial. Alguns ainda estão esperando para ir embora e vão precisar de passagem aérea – frisa Marlês.
"Nos alegra os resultados, mas temos muito a fazer"
Se a diminuição seria resultado de um trabalho mais intenso desenvolvido pela assistência social e pela saúde, é inegável que houve influência do acolhimento temporário de homens e mulheres nos Pavilhões da Festa da Uva em razão da pandemia. No final de março, quando a pandemia forçou a adoção de medidas de distanciamento social em Caxias do Sul, 234 sem-teto foram acolhidos no local. A saída de cena dessa população ampliou a sensação de que a condição na cidade havia mudado, embora não tenha surtido efeito em áreas de consumo aberto de drogas, caso da subida da Rua Borges de Medeiros, entre o Centro e o bairro Primeiro de Maio.
O período de distanciamento nos Pavilhões favoreceu um contato maior entre diversos serviços públicos e a população de rua. Dessa forma, num ambiente organizado, técnicos puderam se aproximar de homens e mulheres de variados perfis e que se mostraram mais receptivos para um resgate social. Enquanto vários acolhidos embarcaram em viagens de volta para a terra natal, outra parte reatou relações com familiares em Caxias ou reiniciou tratamento contra as drogas e álcool. Nesta semana, havia pouco mais de 30 deles recolhidos nos Pavilhões, a maioria homens.
O trabalho do acolhimento foi fundamental, mas não alcançou uma parcela considerável. A dependência química foi uma das razões do esvaziamento no abrigo. Krisiane Zugno, coordenadora da ação, diz que 63 deles voltaram às ruas. Muitos justificaram que não conseguiram se adaptar às regras. Um dos chamarizes foi o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 pelo governo federal. Poucos moradores de rua conseguiram guardar algum dinheiro. Parte desse recurso sustentou o vício em drogas. Esse grupo voltou a se reunir com outras dezenas que não haviam aceitado o acolhimento preventivo em março.
– Quem optasse pelo acolhimento e saísse não poderia retornar até mesmo pela preservação (da saúde) dos que decidiram permanecer nos Pavilhões – revela Vanda Ferreira Vetorazzi.
Essa debandada engrossou novamente a presença dos sem-teto e reforçou a junção em pontos relativamente novos, caso da pequena comunidade erguida ao lado da Caixa Econômica Federal, na Rua Os Dezoito do Forte, em Lourdes, e do grupo formado na calçada do Banco do Brasil, em frente à Praça Dante Alighieri. O número que ainda resiste nas ruas portanto, é alto, cerca de 350 – quase a mesma quantidade que a gestão anterior da FAS estimava em 2019.
– A gente se alegra com os resultados, mas temos muito a fazer. Queremos que eles possam ter outro olhar, outra alternativa de vida, dar uma chance para que não fiquem na atual situação – ressalta Marlês Sebben.
Os remanescentes do projeto de acolhimento nos Pavilhões serão levados para o antigo prédio do Caps River, no bairro Cinquentenário. O local está sendo reformado.
NÚMEROS
:: No primeiro semestre de 2019, a FAS estimava 400 moradores de rua em Caxias do Sul. Em fevereiro de 2020, levantamento da instituição apontou que seriam 741 pessoas nesta condição.
:: Desse total, 277 voltaram para suas cidades de origem entre janeiro e abril deste ano. Outros 234 foram acolhidos voluntariamente nos Pavilhões da Festa da Uva entre março e início de abril. O restante permaneceu nas ruas.
:: Do total de acolhidos nos Pavilhões, 141 acessou o benefício do auxílio emergencial de R$ 600 do governo federal _ em toda a cidade, foram 400 moradores de rua que fizeram o saque. Dos Pavilhões, 63 retornaram novamente às ruas. Cerca de 110 deles passaram por casas de passagem e seguiram rumos diferentes como ir embora da cidade, retornar para a família em Caxias, arrumar emprego, alugar uma casa e buscar tratamento contra o vício em drogas e álcool em comunidades terapêuticas.
:: A estimativa é que cerca de 350 ainda permaneçam vivendo em calçadas, sob marquises, em terrenos baldios ou prédios abandonados.
Pontos esvaziados, mas nem tanto
Como o submundo das ruas raramente tem informações confiáveis, é difícil afirmar se a redução constatada em março e início de abril se manteve. Quem está na rua percebe uma leve diminuição, mas com sinais de retomada. Coordenadora da Pastoral das Pessoas em Situação de Rua, Maria Teresinha Mandelli Grasselli integra um grupo responsável pela produção e distribuição de marmitas pelas ruas à noite. No ano passado, foram distribuídos alimentos para 180/200 sem-teto, uma vez por semana. A partir da ação de acolhimento nos Pavilhões, os voluntários reduziram a produção para 100/120 marmitas diárias.
– Você percebe que diminuiu mas, por um lado, todas as nossas marmitas estão sendo consumidas, sinal de que a presença nas ruas é grande. Mas pode ser também que aumentou a quantidade de pessoas passando dificuldade em casa e que vão buscar comida – pondera Maria, mais conhecida como Terê.
Na semana passada, era estranho observar o vazio sob o viaduto da Avenida Júlio de Castilhos, ao lado do Senac. Em outras ocasiões, os corredores nos dois lados da elevada eram dormitório e ponto de encontro para mais de 10 pessoas. Na terça-feira, dia 12, havia somente um homem, que dizia ser de Porto Alegre. Por estar na cidade há pouco dias, ele desconhecia o acolhimento nos Pavilhões.
– Estou na rua há dois meses, sou pedreiro, estou desempregado. Não consegui pagar aluguel. Do outro lado (do viaduto) tem outro homem. Só tem nós dois aqui – afirmou o morador do viaduto.
Vitório Palma, que reside numa casa a poucos metros da elevada, confirma a informação.
– Tem só um rapaz morando ali e isso já está assim há uns três meses. Diminuiu mesmo – atesta Palma.
Outro ponto conhecido pela junção, o viaduto da BR-116, perto do Monumento ao Imigrante, ficou sem ocupantes até a primeira semana de maio. O novo morador é um homem de 30 anos, que diz ter vindo de Uruguaiana há dois meses. Ele não quis o acolhimento da FAS porque considerou que havia muita gente num mesmo lugar. Vizinhos dizem que o ponto estava vazio no início do distanciamento social, mas voltou a atrair pessoas. Entre o povo que nunca saiu nas ruas está um homem de 55 anos, que fixou uma barraca de tapumes na Hércules Galló, quase esquina com a Visconde de Pelotas, no Centro.
– Não quis ir para os Pavilhões. Gosto de morar na rua, não devo nada para ninguém. Sou ajudado, cato material.
– Lá nos Pavilhões é excluir, é tirar a gente de circulação – complementou uma mulher, que dividia a barraca.