A superstição de que dá azar o noivo ver o vestido da noiva antes do casamento, definitivamente, caiu por terra. Ao menos para Ignacia Maria de Braga, 78, e Renato Baptista de Braga, 86, a "maldição" prevista em crença popular parece não ter surtido efeito. Ainda que cada etapa da confecção do traje, costurado pela própria noiva, tenha sido compartilhada com o noivo antes da cerimônia matrimonial, eles completaram neste mês de dezembro nada menos do que 60 anos de casamento.
As admiráveis e raras Bodas de Diamante foram celebradas na Igreja Evangélica Assembleia de Deus, no bairro São Pelegrino, em Caxias do Sul, na qual dona Ignacia e seu Renato, diante de amigos e familiares, renovaram os votos pela terceira vez — o mesmo já havia sido feito nas bodas de Prata e de Ouro.
— Para cada casamento, uma aliança. Nesta de agora decidi apenas colocar umas pedrinhas no anel que foi o de noivado ainda, o primeiro de todos — relatou dona Ignacia, ao exibir com orgulho o dedo anelar da mão esquerda.
A espera pelo noivo
Ainda que seis décadas tenham se passado, o casal não esquece de um episódio que marcou o dia do enlace, em 16 de dezembro de 1961: o atraso do taxista. A estória que hoje é motivo de risos causou certa apreensão no dia em que ocorreu. Era um dia de verão, não tão quente quanto os mais recentes. Ignacia levantou cedo para finalizar os preparativos que começara semanas antes.
— Eu que arrumei a igreja, fiz o vestido, fiz o bolo... Naquele tempo, minhas primas trabalhavam fora e não tinha empresas como hoje para preparar tudo — lembra a noiva.
Também naquele tempo, ela conta que poucas pessoas tinham carro próprio e que precisou providenciar o serviço de táxi para as madrinhas. Do padrinho, como presente, ela ganhou a ida até a cerimônia em um Simca Chambord preto, segundo ela, bem bonito. Enquanto isso, o noivo, que dispunha apenas de uma bicicleta, aguardava na varanda de casa o taxista com quem tinha combinado a corrida para aquele sábado.
— Eu morava na Rua Raposo Tavares, bairro Sagrada Família, e o casamento era na Avenida Júlio de Castilhos, na Assembleia de Deus que ficava no bairro Nossa Senhora de Lourdes. Todos foram pro casamento e eu fiquei na varanda aguardando o táxi que não veio. Até que decidi ir a pé — conta seu Renato.
Naquele momento, o trajeto de 1,5 km, que seria percorrido tranquilamente de carro em cinco minutos, transformou-se em um percurso que demandaria quase meia hora de caminhada.
Pra felicidade - e principalmente alívio - do noivo, após caminhar duas quadras, ainda no bairro Sagrada Família, o taxista decidiu aparecer e o apanhou. No final das contas, o atraso nem foi tanto, cerca de dez minutos, mas, sem saber o que tinha acontecido, Ignacia chegou à igreja e descobriu que o noivo ainda não estava lá.
— Pensei até que tinha desistido. O motorista deu ré e aguardamos um pouco, até que ele chegou. O que não suou da caminhada, suou de medo — brinca dona Ignacia.
Equipamento roubado
Ao lado do marido, no sofá da sala da casa localizada no bairro Medianeira, onde ambos vivem há cerca de 50 anos, Ignacia - que é mais de falar do que seu Renato - lembra de outra situação marcante para a família: o roubo do equipamento de fotografia.
Braga, aliás, é um dos fotógrafos mais antigos de Caxias do Sul e, ao longo de décadas, registrou incontáveis celebrações de casamento, aniversário, formatura, a Festa da Uva, além de ter mantido, por 22 anos, o Foto Stúdio Ideal, na Avenida Júlio de Castilhos, no bairro São Pelegrino, contando com assessoria da esposa. As atividades por lá foram encerradas em 1987, mas os trabalhos com fotografia continuaram até pouco tempo atrás. O fotógrafo tinha 83 anos quando fechou seu último "job".
O fato é que em um domingo de 1965, anterior à segunda-feira na qual o estúdio abriu as portas pela primeira vez, todo o equipamento de trabalho foi roubado.
— A gente tinha começado a construir a casa e nos mudamos aqui para o terreno, numa casinha de madeira que não era muito segura. Os ladrões conseguiram invadir e levaram tudo, a sorte que deixaram os rolos de filme de um evento que eu tinha fotografado — conta o fotógrafo aposentado.
Apesar da péssima surpresa, seu Renato não desanimou e, com ajuda de amigos, que o emprestaram equipamentos até que ele pudesse adquirir novos, o estúdio não deixou de abrir.
Fotografia como sustento, solidariedade como missão
Até então e, dali por diante, a fotografia foi a principal fonte de renda da família, garantindo, sobretudo, a conclusão da obra da casa na qual cresceram os três filhos do casal: Edson Jair de Braga e Jackson Joacir de Braga, que moram em Ivoti, além da caçula Jaqueline de Braga Derlam, que mora em Caxias do Sul e, profissionalmente, seguiu os passos do pai. Ela se formou em Fotografia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) abordando a trajetória dele em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
— Eu já trabalhava com isso e resolvi cursar a faculdade em homenagem ao meu pai, como forma de valorizar à profissão. O meu sonho ainda é abrir um estúdio no mesmo lugar onde ele teve o dele — relata Jaqueline, que mantém um espaço hoje ao lado da casa dos pais, no Medianeira.
Natural de Cazuza Ferreira, localidade de São Francisco de Paula (RS), seu Renato mudou-se para Caxias aos 16 anos, para trabalhar na Metalúrgica Eberle. O interesse por fotografia surgiu a partir de um amigo que o abordou para tirar uma foto, em 1957, incentivando-o a também adquirir uma câmera. Foi na Ótica Caxiense que o profissional comprou uma Kapsa que guarda até hoje. Depois de algum tempo fotografando aos finais de semana, ele foi contratado no Stúdio Tomazoni, que atendia em Nossa Senhora de Lourdes.
Foi nesta época que casou com Ignacia, a jovem catarinense natural de São João do Sul que recém havia se mudado para Caxias. Por anos ela foi uma das grandes parceiras do negócio, atuando no estúdio e também nas coberturas de eventos, como fotógrafa. Nos dias de hoje, ela se mantém como uma das protagonistas de ações sociais desenvolvidas pelo grupo da igreja que sempre frequentou com o marido.
— Fazemos isso há muitos anos. Vamos realizando ações conforme as necessidades que surgem e sempre tem arrecadação de roupas também para a doação. Felizmente a nossa família foi abençoada e a gente faz aquilo que pode para ajudar aos outros — comenta dona Ignacia.
O maior presente: a família
Ainda na sala de casa, onde a reportagem foi gentilmente recebida no dia em que completaram 60 anos de união, rodeados por porta-retratos e quadros com fotos de familiares, Ignacia e Renato também falaram de um acontecimento recente que, por detalhe, não transformou a data feliz em uma dura memória para toda a família.
Em maio deste ano, ambos foram acometidos pela covid-19. Seu Renato teve sintomas mais graves da doença e chegou a ficar com 25% do pulmão comprometido; dona Ignacia ficou com algumas sequelas também por três meses.
Recuperados e esbanjando saúde, diga-se de passagem, os dois celebram o fato de ainda estarem juntos e, sobretudo, de ainda acompanharem, cheios de orgulho, os passos dos três filhos, oito netos e três bisnetos, que são frutos daquela decisão de seguir a vida juntos, tomada lá no começo da década de 1960; renovada, mais uma vez.
— O que me motiva é a alegria de ter casado com ele e de ter hoje a família que eu tenho, que Deus nos deu. É a minha riqueza, nossa base, não existe alegria maior. Eu sou realizada — afirma dona Ignacia.
— Fico contente de ter durado desde aquele tempo, e sempre com saúde — completa seu Renato.