Colunistas do Pioneiro escrevem sobre a mística da época natalina.
A porta da frente permanecia aberta. A lâmpada do poste alumiando a esperança. Ele haveria de vir. Havia prometido. Ele nunca havia vindo a minha casa antes. Era a primeira vez. Quantas manhãs e dias e noites e horas diante da porta, quase afundando o caminho marcado a passos entre a espera e a expectativa. Caminho percorrido muitas, muitas vezes. Vamos dormir, minha mãe dizia, e eu ali, firme, esperando. As velas da ceia queimaram até o fim. Se apagaram. Meu pai, sentado no sofá, me chamava para dizer que ele deveria ter perdido o endereço de nossa casa. Afinal, morávamos no interior, a estrada ainda era de chão batido, por ali quase nunca passava carro. Do outro lado da rua havia um parreiral de uvas, que rechearam minha infância de histórias de aventura e solidão. Atrás de casa havia um galinheiro e um filete de riacho onde minha mãe lavava as roupas e eu tomava banho para fugir do calor de dezembro. Eu era pequena, mas já grande o suficiente para me decepcionar. Sentada na soleira da porta, de vez em quando, as luzes tremulavam e pareciam insinuar a chegada de alguém. Mas Laika, minha cachorra, permanecia dormindo logo adiante. Alarme falso. Não era ninguém. Lembro de pensar porque haviam prometido que o Papai Noel viria a minha casa se ele não iria vir. Meus pais sentaram junto. Meu pai contou de quando era criança e de como nem sabia que existia Papai Noel, embora sempre ganhasse algo do Menino Jesus. Minha mãe disse que para ganhar algum presente do Menino Jesus era preciso colher um bom prato de pasto, afinal, ele chegava no lombo de um burro já cansado, com fome e sede. Lembro que revisava a tarefa e era meio confuso. Não sabia bem quem deveria esperar, se Papai Noel ou se Menino Jesus. De todo modo, garanti a vinda de alguém. Colhi o pasto e separei um pote de água para matar a sede do animal. E assim, as horas foram passando. Éramos nós três, a Laika, uma meia dúzia de gatos, galinhas, um porco chamado Chico e as estrelas.
Ir para a escola foi uma das melhores coisas que já me aconteceram na vida. Esperei anos para entrar na escola. No total, seis desde que nasci. Entrei me exibindo por já conhecer as letras do alfabeto. Sabia escrever Adriana, mas o Antunes levou mais tempo, não sei porque mas tinha uma certa dificuldade em lembrar da letra T. Minha caixa de lápis de cor tinha 24 cores. Não durou muito, como até hoje. Com eles corro a folha de papel, fundo reinos e brinco outra vez, como quando criança. Naquela época tinha muita sorte e azar ao mesmo tempo. Sorte porque fiz grandes amigos ainda na primeira série do ensino fundamental. Gente querida com quem vi a vida atravessar as décadas. Brandão virou eletricista aqui de casa. Cristian, amigo de muitas conversas, corta o cabelo do meu pai. Giovanna, amiga de aventuras e peripécias é a veterinária da nossa bicharada. Eliana, amiga de risadas e choros. Tem ainda muitos outros queridos, gente que cresceu como eu e agora principia o envelhecimento. Azar, porque sempre tinha de emprestar meus lápis de cor. E sempre emprestei. Nessa época eu adorava o verde tiffany, que não sabia ter esse nome, mas que escondia até de mim mesma para não gastá-lo, imagine emprestar. E usava o ocre, cor que detestava, para ver se gastava logo. A vida correu. Me apaixonei pelo ocre, esqueci o tiffany, conheci o rosa Veneza, o azul prussiano e caí de amores pelo magenta. Deixei as cores falarem por si mesmas. E assim, me tornei colorida. Muitos anos depois me reencontrei com os lápis de cor. Voltei a riscar o mundo. Abri mão da certeza das cores complementares ou análogas. Então, conheci a Natalia, amiga querida que ilustra essa crônica de Natal, que não vê cores e que me ensinou a olhar o mundo por um outro prisma, em que os pigmentos não existem.
Naquela noite de infância, com o coração partido e sonolenta, lembro do latido da Laika, minha cachorra astronauta, rasgando o silêncio. Meu pai que dormia no sofá, acordou e minha mãe largou a toalha que usava para secar a louça da ceia. Corremos para a porta. Era ele. Era ele no portão. Ele havia encontrado meu endereço. Não chegou montado num burro como imaginava. Na verdade chegou em cima de uma camionete. Não importa. O fato é que ele veio e chamou pelo meu nome. Claro que atendi, mesmo chorando uma mistura de emoção e fúria. Ele abriu o saco de presentes já quase vazio e de lá de dentro, um pacote para mim. Me entregou perguntando: você sabe quantas cores tem no mundo? Aqui tem 24.