Anita Garibaldi desbravou caminhos simbólicos por onde passaram mulheres gaúchas, catarinenses, italianas e de tantas outras origens. A história da jovem que pelo amor se tornou guerreira – e que por fibra manteve- se na trincheira – é inspiradora.
No ano do bicentenário de seu nascimento, ela é a homenageada dos Festejos Farroupilhas. A expectativa é que a determinação, a humanidade e o senso de Justiça da "heroína de dois mundos" brote com o mesmo vigor com que floresceu nos Centro de Tradições Gaúchas (CTGs) Rio Grande afora. Serra acima, são abundantes os exemplos de prendas que não se contentaram em fazer apenas o que era esperado. Elas só surpreenderam aqueles que não sabiam que elas seguiriam os caminhos de Anita.
Anita Garibladi
- Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva nasceu em Laguna (SC), em 30 de agosto de 1821. Casou-se aos 14 anos com Manoel Duarte de Aguiar, que logo a deixou para se juntar às tropas imperiais que lutavam na Revolução Farroupilha.
- Em 1839, quando o italiano Giuseppe Garibaldi chegou a Laguna para proclamar a República Juliana, apaixonou-se por Anita. E ela seguiu com ele. Para isso, aprendeu a manusear armas e, dizem, em mais de uma ocasião, o fez com um filho nos braços.
- Anita é também chamada de “heroína de dois mundos” pois, em 1847, cruzou o oceano para lutar nas guerras de unificação da Itália. Ela morreria dois anos depois, de febre tifóide, na cidade de Ravena.
PRESIDENTE DO CONCLAVE DO MTG
A palavra pioneirismo é bastante adequada para se referir a Iraci Dalla Valle, 62 anos, proeminente cidadã de Bento Gonçalves. A escrivã foi a primeira mulher a integrar a Polícia Civil no município, há 32 anos.
Quem ficou de queixo caído ao ver a moça com um revólver na cintura certamente desconhecia seu poder – garantido e desarmado – na patronagem do Laço Velho. No CTG, Iraci cevou a credibilidade que a colocaria na liderança de um dos mais importantes eventos do tradicionalismo anos mais tarde.
A trajetória começou na adolescência. Por volta dos 18 anos, Iraci tornou-se 1ª prenda do CTG e da 11ª Região Tradicionalista (RT). O passo seguinte foi integrar a patronagem da entidade, onde serviu em diversos cargos. Até que, em 1996, foi eleita coordenadora da 11ª RT.
Foi a primeira mulher a assumir aquela liderança. E poderia, talvez, ter sido reeleita, não fosse um convite para assumir uma cadeira no Conselho Diretor do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), formado pelo presidente da casa e 33 representantes regionais. Iraci aceitou, e o pequeno quórum de mulheres desse fórum contou com a participação da policial por nove anos.
– Além de motivo de orgulho, foi uma experiência maravilhosa. Viajávamos muito para representar o presidente. Conheci o Estado e muitas pessoas. Isso é enriquecer a vida. É ali que se conhece realmente o sentimento da tradição, os fatos e os impactos da história – comenta Iraci.
O Conselho do MTG é como se fosse uma reunião do presidente com os seus ministros. Em analogia semelhante, o Parlamento seria o Congresso Tradicionalista Gaúcho, uma assembleia de três dias que define os rumos do movimento. Da indumentária oficial ao estatuto, tudo é debatido entre entidades filiadas, a mesa diretiva e a presidência do evento. E em 2016, ano em que o MTG completou 50 anos, quem presidiu o 64º Congresso Tradicionalista foi Iraci.
– Nunca imaginei que exerceria esse cargo. Ser convidada, aceita e aprovada é muito honroso. Em 64 anos, apenas seis mulheres foram presidentas do Conclave. É muito pouco.
Após deixar o Conselho Diretor do MTG, a tradicionalista voltou a dar atenção integral ao Laço Velho. Antes da pandemia, também fazia parte da organização da Semana Farroupilha de Bento Gonçalves – tendo sido a personalidade homenageada pelo evento em 2018. Um justo reconhecimento para uma mulher que se tornou constante em espaços antes apenas ocupados por homens.
– Tradicionalismo exige muito trabalho. Minha trajetória sempre foi baseada nisso Fui uma pioneira e abrir caminhos para que outras pessoas pudessem seguir depois. Se houve preconceito, foi velado. Nunca me senti discriminada, mas acho que temos de ter uma forma de se impor – finaliza, com orgulho.
Marina brilha como Instrutora
– Sempre tive como espelho mulheres muito fortes. Meu pai foi ausente, mas minha mãe foi uma guerreira, muito ativa. Tudo o que tive foi através do meu esforço. É da minha personalidade.
A forma como Marina Martins, 40 anos, apresenta-se não deixa dúvidas: essa prenda não veio ao mundo a passeio. A inquietude é uma característica que ela traz da infância. E isso já foi percebido quando começou a dançar na invernada mirim do CTG Rancho de Gaudérios, em Farroupilha.
Eu era “piolho de CTG”. Quando era mirim, juvenil, estava sempre ali, pronta para dançar. Se faltava alguém, eu entrava no lugar. Se alguém queria aprender, eu ensinava. Mas lá por 1993, 1994, só havia instrutores de dança homens
MARINA MARTINS
Instrutora de dança
O potencial de Marina para ser instrutora de danças tradicionais só foi posto à prova em 2006. Junto com o diretor Emerson Ribeiro, ela preparou a invernada adulta do jovem CTG Rodeio Minuano, de Caxias do Sul, para as classificatórias do Enart. A missão era difícil, mas eles não apenas conseguiram a vaga como, em Santa Cruz do Sul, onde ocorrem as provas finais, classificaram- se entre os 15 melhores grupos do Estado. Desde 2010, Marina passou a defender a bandeira do CTG Herói Farroupilha.
– Em 2015, participamos de 10 rodeios e ganhamos 10. Desde 2010, a invernada adulta sempre foi finalista do Enart. Ficamos em 4º lugar em 2016, 2018 e 2019.
É o melhor resultado das entidades de Caxias nos últimos anos, conta, orgulhosa. Recentemente, Marina passou a colaborar com o CTG Negrinho do Pastoreio, também de Caxias do Sul. O resultado é orgulho dobrado.
– Em 2017, foram o sexto melhor do Juvenart. Em 2019, pela primeira vez, foram para a final em Santa Cruz e ficaram entre os 20 melhores – valoriza.
Marina diz que o posto que ocupa é 95% masculino. Talvez porque a competitividade e liderança ainda sejam pouco associadas às mulheres.
– A dificuldade no mundo tradicionalista é que a mulher tem de provar muito mais que pode fazer a diferença. Vejo a mulher com um olhar mais abrangente. Nós somos poucas, mas nossos resultados são grandiosos e isso nos dá confiança.
Construtora de um ícone
Aos 75 anos, Inês Busetti comenta que hoje não participa tão ativamente do movimento tradicionalista quanto no passado. A saúde frágil do esposo a fez ficar mais caseira e atida à rotina de sua Farroupilha natal. Ainda assim, não se surpreenda se avistar a professora aposentada cruzando a porta de algum CTG para dar uma palestra.
– Um tradicionalista está sempre de plantão – afiança o presidente do MTG, Manoelito Savaris.
Quem conhece dona Inês não seria capaz de duvidar de sua capacidade em surpreender. Afinal de contas, ela mobilizou a comunidade para construir um centro de tradições.
A bem da verdade, o CTG Rancho de Gaudérios já existia em 1980, quando Inês e a família passaram a frequentá-lo, ainda na antiga sala do Clube do Comércio. Foi a compreensão do papel social que instituições como aquela teriam nas famílias que a fez desejar que o centro de tradições tivesse sede própria.
Eu tenho quatro filhos. Naquela época, eram todos novinhos. Disse ao meu marido: vamos construir esse CTG? Vamos ocupar o tempo dessas crianças, dessa juventude que não tem onde ir
A epopeia da construção do Rancho de Gaudérios – um dos CTGs mais premiados no Enart – levaria dez anos, com dona Inês mobilizando a prefeitura, o MTG e toda a comunidade em prol do sonho.
Tanto fez que conseguiu uma área para sede e, depois, organizou ajuda para alicerçar e erguer a entidade. Não fez nada sozinha, diz ela. Mas de 1990 a 2015, foi referência, patroa eleita e reeleita. Uma heroína.
– Se houve machismo, não percebi. Fui eleita pelos sócios e eram todos homens. Todos amigos. E foram muitos. Uns 400. Sempre fui bem aceita. Tenho o maior carinho pelo movimento tradicionalista, porque conheci muita gente boa.