A neve da última quarta-feira foi linda, o chão se fez branco e muitos comemoraram o fenômeno natural. Contudo, a gélida neve não é motivo de comemoração para todos. Afinal, como ficam aqueles que não tem um lar quentinho e aconchegante para retornar depois de apreciar a neve? Aqueles para os quais a beleza do fenômeno é passageira, pois permanece apenas a sensação cortante trazida pelo vento?
Foi pensando nas pessoas em situação de rua que muitas entidades e iniciativas sem fins lucrativos decidiram, a sua maneira, ajudar como podem. Em Caxias do Sul, diante da força da frente fria, a Fundação de Assistência Social (FAS) se mobilizou para criar a força-tarefa Unidos Contra o Frio.
A força-tarefa é formada por diversas entidades do município, como Defesa Civil, secretarias municipais de Trânsito, Habitação e Saúde, Projeto Mão Amiga, Guarda Municipal, Brigada Militar, Samu, Bombeiros, Fundação Caxias, Cruz Vermelha e Recreio da Juventude, por meio das Damas do Bem.
A mobilização busca alcançar as cerca de 580 pessoas que vivem em situação de rua no município, segundo dados da FAS de maio deste ano. Os dados são baseados nos atendidos pelo Cadastro Único. Entretanto, ninguém sabe precisar exatamente quantos são, pois fatores como a constante migração dificultam a contagem.
Força-tarefa ampliou vagas de hospedagem
Em Caxias do Sul, pessoas em situação de rua podem ser acolhidas pelo Hospedagem Solidária, da Diocese de Caxias, que tem capacidade para até 90 moradores. É oferecido jantar, pernoite, banho e café da manhã, no salão da Igreja Nossa Senhora de Lourdes. O acolhimento também é realizado nas casas de passagem Irmã Dulce, Casa São Miguel e Casa São Francisco. Outra forma de cuidado é pelo PopRua RS, programa que atende a população por meio da Associação Mão Amiga, que contempla 60 vagas, sendo 50 para homens e 10 para mulheres.
Com o frio intenso desta semana, a força-tarefa uniu forças para não deixar ninguém desabrigado ou desassistido. O esforço de todas as entidades envolvidas tornou possível aumentar de 175 para 252 vagas de hospedagem em Caxias do Sul. A iniciativa não tem data para terminar e foi possível acolher 201 pessoas na madrugada da última quarta-feira (28) e outras 194 pessoas na quinta (29).
A população também pode contribuir acionando a FAS pelos telefones da abordagem social quando encontrar alguém em situação de rua que deseja ser ajudado. De segunda a sexta-feira, até as 22h, o contato pode ser feito pelo telefone (54) 98403-8864 e, nos finais de semana e feriados, o telefone de plantão é (54) 98404-9921.
— Nós podemos oferecer a hospedagem, mas não podemos obrigar as pessoas a serem acolhidas devido a uma orientação do Ministério Público. Muitas pessoas pensam que eles não aceitam ir por causa dos animais de estimação, mas as casas de passagem aceitam os animais também — destaca Katiane.
Quem quiser contribuir de outras formas pode doar roupas e agasalhos para a Fundação Caxias. Alimentos podem ser encaminhados para o Banco de Alimentos. De fato, é verdade a máxima que afirma que nem todo herói usa capa, pois além dos órgãos assistenciais do município, quem também está sendo mobilizado pela chama da solidariedade é a sociedade civil. E, nessa linha de frente, também não faltam voluntários.
Pix do Cobertor
Um desses voluntários é a Level Cult, em parceria com o pub Doca Beer Garden e a rede de solidariedade Belchior Solidarius. A proprietária da Level, Lídia Ribeiro, que já costuma doar marmitas aos recicladores a cada 30 dias, conta que, com a previsão de que esta semana seria gelada, surgiu a ideia de arrecadar cobertores para a população de rua por meio do Pix do Cobertor.
A campanha começou a ser organizada na sexta-feira passada (23) e foi colocada em prática na segunda-feira. O projeto solicitava doação de R$ 15, que seriam convertidos em um cobertor e um prato de comida para pessoas em situação de rua. Conforme Lídia, a expectativa era arrecadar cerca de R$ 1 mil. Entretanto, ela foi surpreendida. A campanha encerrou na quinta-feira (29) e arrecadou R$ 16.415.
— A gente não esperava toda essa mobilização e solidariedade. A campanha foi bem longe, em nível nacional. Até mesmo um pessoal da Europa mandou verba. Então foi bem bonito, bem bacana— explica Lídia.
Na quarta-feira, a iniciativa já se mobilizou para distribuir roupas, cobertores e sanduíches às pessoas vulneráveis nas ruas. Durante a ação, os voluntários se encontraram com funcionários da FAS e somaram forças na campanha.
Com a verba arrecadada, a iniciativa adquiriu 230 cobertores, 1,2 mil pares de meia para adultos e crianças, 120 toucas e 80 marmitas. Além disso, foram recebidos 20 cobertores de lã, doados pela empresa Cootegal e costurados por voluntárias do Laboratório Magnabosco, bem como pães doados pela Pane Salute.
— É muito gratificante. Eu vi cada cena, desde senhor que estava deitado na rua e queria nos agradecer, então enviava beijos e abraços, até uma senhora que estava apenas com chinelos e meias e estava nevando. É muito triste — emociona-se Lídia.
Até o momento, foram doados 100 cobertores, enquanto outros 60 foram para a FAS. Devido ao sucesso da campanha, na próxima semana a ação irá adquirir mantimentos para outras entidades assistenciais, como a Entidade Assistência à Criança e Adolescente (Enca), o Lar São Francisco, o Centro de Atendimento ao Migrante Caxias do Sul (CAM), a Fundação Caxias e a ONG Construindo Igualdade.
Amar ao próximo
Quando Jesus disse para amar ao próximo, o casal Ricardo e Amabile Mattos levou ao pé da letra. Juntos, eles fundaram o projeto social Amar ao Próximo, em 2019. Composto por cerca de 43 pessoas, o programa leva dignidade, cidadania e, principalmente, amor às pessoas em vulnerabilidade social.
Mattos, que é aposentado, conta que eles sempre foram envolvidos em questões sociais. Mas, depois de presenciar uma cena muito triste envolvendo pessoas em situação de rua em Caxias do Sul, no antigo Cruzeiro, decidiram se dedicar completamente à solidariedade.
— Devemos pensar no que eles passam, no frio, fome e o desprezo, porque parte da sociedade tem preconceito com eles. Para muitas pessoas, os moradores de rua valem o mesmo que uma lata de lixo — revolta-se ele.
Por meio do Café Solidário, os voluntários levam café, sanduíches, bem como roupas e cobertores aos vulneráveis. Por causa da frente fria intensa da semana, o grupo se preparou para mais uma ação entre essa sexta-feira e o final de semana.
Além do Café Solidário, que atende pessoas em situação de rua, o Amar ao Próximo também organiza os projetos como Família sem Fome, que distribui cestas básicas para cerca de 300 famílias, a Marmita Comunitária, que entrega refeições para cerca de 250 a 400 pessoas, além de ações pontuais como a Mochila Solidária e o Natal Solidário, que arrecada materiais escolares e brinquedos para as crianças, respectivamente. Quem quiser conhecer melhor o projeto, acessar as redes sociais ou entrar em contato, é só clicar nesse link.
Rock e Solidariedade
Não é apenas de rock and roll que vivem os músicos de Caxias do Sul. Uma iniciativa envolvendo diversas bandas busca arrecadar roupas, alimentos, cobertores e materiais de higiene para pessoas na rua. Os itens serão doados para o Projeto Prato Cheio, que tem como base a doação de jantas e roupas para pessoas em situação de rua.
A inciativa é composta pelas bandas Newd, TFML, Peter 27, Sirius, Magnata Joe, Delunar, Yellow Evening e O Pombo e as doações podem ser entregues no RG Park (estacionamento do Shopping Pratavieira), salão de beleza Mix Hair e Kings Gym Academia, que atuam como pontos de coleta.
Prato Cheio
O projeto Prato Cheio é uma ação que surgiu em 2020 e distribui por semana cerca de 80 a 90 jantas para moradores de rua. A ação também arrecada roupas, calçados e cobertores. As refeições são entregues em caixas de leite, que mantêm a temperatura da comida e ajuda a natureza por meio da reciclagem. O projeto divulga as ações pelo Instagram, que pode ser acessado aqui.
Faz a diferença?
Faz! Seja pequeno ou grande, um gesto pode fazer a diferença na vida de outra pessoa, principalmente para quem mais precisa. Tanto Lídia, do Pix do Cobertor, quanto Mattos, do Amar ao Próximo, destacam que se cada um fizer um pouco, os resultados são muitos.
— Muita gente quer ajudar, quer estar junto, mas não sabe como ou onde. Mas quando junta todo mundo, mesmo com pouco, dá para ajudar muita gente — ressalta Lídia.
Cleber, Bruno e Fabiano são a prova viva que a afirmação é verdadeira. Os três eram dependentes químicos e viviam na rua até serem acolhidos pela casa de passagem Carlos Miguel. Lá, recebem um lugar para dormir, roupas, tratamentos de saúde e uma oportunidade. Confira abaixo os depoimentos deles:
Cleber Luiz de Souza, 39 anos (sobreviveu na rua por 30 anos)
— Depois que eu cheguei na casa, minha vida mudou completamente. Hoje estou trabalhando e tenho uma nova perspectiva de vida — relata Souza.
Bruno, 26 anos (estava nas ruas há três anos)
— Estava na rua, estava perdido, mas a Casa cuidou dos meus problemas de saúde e tem me ajudado muito — agradece ele.
Fabiano Borges da Silva, 46 anos (está há dois meses na casa de passagem)
— Vivia nas drogas e na prostituição, mas agora eu encontrei uma casa que me acolheu, cuidou da minha vida saúde, cuidaram de tudo. Estou feliz porque ganhei uma família nova e estou me sentindo em casa — emociona-se Fabiano.
A solidariedade não apenas garante alimento e proteção para as pessoas em situação de rua, como também aquece o coração de quem a pratica.