A ocupação de leitos hospitalares está em 96% no SUS e 92% na rede privada nesta quinta-feira (4) em Caxias do Sul e as projeções para aberturas de novas vagas esbarram em um complicador: a falta de profissionais capacitados para atuar em ambientes de alta complexidade por conta da covid-19. Desde o início da pandemia, diversos leitos foram abertos, o que esgotou a capacidade estrutural e de recursos humanos nas instituições de saúde.
No Hospital Virvi Ramos, existe a possibilidade de implantação de quatro novos leitos de UTI em breve, mas a instituição terá de lidar com a escassez de equipes. Segundo a diretora executiva, Cleciane Doncatto Simsen, faltam técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos. Na última semana, o Virvi chegou a suspender atendimentos no setores de urgência e emergência por conta da lotação das UTIs.
Até o início desta semana, 17 funcionários estavam afastados por algum motivo de saúde. Oito deles apesentaram testes positivos para covid-19. Para abertura dos quatro leitos, o hospital Virvi precisaria de 20 funcionários. No dia 22, foram abertas seis novas vagas. A capacidade de atendimento ultrapassou os 100%. Na segunda-feira (1º), as vagas para UTI adulto para casos de covid em leitos privados era de 122,22%.
— Houve um esgotamento da capacidade instalada. Caxias praticamente triplicou o número de leitos que tinha. No Virvi, tínhamos dez de UTI antes da pandemia e atualmente estamos com 32. Isso requer profissionais com experiência e, muitas vezes, eles trabalham em mais de um hospital. Os afastamentos também exigem margem de mais pessoal contratado. Não estamos abrindo (leitos) por uma questão de falta de profissionais e também de equipamentos — afirma Cleciane.
No Hospital da Unimed, o ideal seria a contratação de mais 50 a 70 profissionais da saúde. A abertura de novos leitos, porém, fica prejudicada pela falta de pessoal capacitado e por outro agravante: o cansaço de quem está na ativa. O diretor técnico do Complexo da Unimed, Vinícius Lain, afirma que o clima é de estresse nos ambientes de atendimento.
— Estão cansados e não temos funcionários suficientes para que as equipes possam ser oxigenadas. Os turnos são fechados, o clima é bastante estressante e os médicos trabalham muitas horas seguidas. O hospital constata a falta de profissionais qualificados no mercado para que possam trabalhar em ambientes de alta complexidade como UTI — cita.
No Hospital Pompéia, o trabalho é realizado dentro do limite da capacidade. Segundo a diretora Lara Sales Vieira, não há viabilidade para aumentar leitos. Cerca de 20 profissionais estão afastados por algum motivo de saúde.
— Não temos falta de médicos e o funcionamento não está prejudicado. O que não conseguimos neste momento é prever aumento de leitos tanto por capacidade quanto por equipamento, mas sobretudo por recursos humanos. Esses pilares estão comprometidos. Hoje, não teríamos capacidade técnica nem formação de recursos humanos para conseguir aumentar o número de leitos — diz.
No Hospital Geral (HG), foram abertos sete novos leitos no domingo (28) por conta de uma contratação via prefeitura. O município pagará o aluguel de R$ 4 mil diários pelas sete vagas. O HG conseguiu readequar equipes e disponibilizar profissionais capacitados para as vagas. No HG, 26 profissionais estão afastados por questões de saúde. De acordo com o diretor, Sandro Junqueira, há profissionais no mercado, mas que precisam de capacitação.
— Estamos com a equipe completa. Não temos dificuldade para enfermeiros e técnicos, mas o que acontece é que não há treinamento adequado e, por isso, temos que capacitar. Estamos priorizando isso desde 2020 — afirma.
Situação agravada após viagens no verão
Se o cenário já mostrava comprometimento da capacidade de atendimento no final de 2020, o atual momento é ainda complexo. Segundo Cleciane Simsen, do Virvi Ramos, os casos pioraram depois do retorno das pessoas de viagens de férias.
— Estamos vivendo diariamente a situação de perda para muitas famílias, com pessoas chorando no pátio do hospital. Parece que estamos em outro mundo porque parte da população vive num mundo paralelo. Se frequentassem um hospital, saberiam! Estamos vivendo o pior momento e ainda acho que não chegamos no pior de fato. E é em função de todo o verão, litoral, férias, Carnaval, aglomeração, encontros de família, todos esqueceram — lamenta.
Há poucos especialistas, aponta sindicato
A formação médica como intensivista tem ganhado projeção e mais importância em relação à visibilidade dos casos graves desde o início da pandemia. Esse profissional é especializado em cuidar de pacientes dentro das UTIs, mas para isso precisa passar por residências hospitalares, além de especializações, o que pode levar dez anos.
Até então, a disponibilidade de mão de obra na cidade era considerada razoável, o que mudou com o coronavírus.
— Temos um número limite de qualificados. Estávamos tranquilos em Caxias. Agora, agravou desta forma e é lógico que começou a faltar gente. Mesmo que tenha equipamentos, o pessoal está se desdobrando em plantões, mas não tem como formar intensivistas na pressa. Improvisar? Até já estão. Alguns hospitais começaram a usar médicos pneumologistas. Eles têm ajudado muito nesse momento — diz o presidente do Sindicato dos Médicos, Marlonei dos Santos.
Conforme os registros do sindicato, são 40 médicos intensivistas em Caxias e 40 pneumologistas. Os que estão no mercado de trabalho atuam em mais de um hospital e fazem horas extras, além de plantões mais frequentes para dar conta da demanda.
Terapia e desligamento de notícias depois do expediente para manter força no trabalho em UTI
Uma das profissionais que atua na linha de frente no combate ao coronavírus em Caxias é a enfermeira Kellen Perozzo Lopes, 34. Ela gerencia 46 funcionários que atuam dentro da UTI 1 do Hospital Geral (HG). Há 15 anos na área e há seis em atendendo no setor de tratamento intensivo, Kellen vivencia diariamente a triste realidade de pacientes e familiares. Ela passou a fazer terapia no ano passado, programa que é ofertado pelo HG, e parou de se informar por meio de notícias em tempo real quanto ao coronavírus, principalmente ao encerrar o expediente.
Kellen chega ao hospital por volta das 7h30min e cumpre oito horas de trabalho. Dentro da área da UTI, fica atenta principalmente à paramentação necessária a cada um dos profissionais - os colegas precisam ficar num verdadeiro "bota e tira" sem fim a cada entrada entre um box e outro onde estão os pacientes. Kellen e equipe são responsáveis por dez leitos de UTI para casos suspeitos e confirmados do vírus. Todos os leitos estavam ocupados nesta quinta-feira (4).
São sete técnicos de enfermagem, um enfermeiro e dois médicos por turno. Quando é necessário "pronar" um paciente, dez pessoas são acionadas. Pronar é mover o paciente para uma posição diferente diversas vezes por dia. Nas últimas semanas, Kellen tem observado uma mudança: o perfil de idade dos doentes que recebe.
— A parte mais pesada é avaliar qual paciente tem condições de alta e qual de ir pra enfermaria, por exemplo, para podermos receber o que está no pronto-socorro. Outro fator é que é visível o perfil de pacientes mais jovens. Na minha UTI hoje, tenho quatro deles entre 20 e 30 anos — relata.
Para garantir a higiene sanitária, Kellen é uma das funcionárias do HG que utiliza a estrutura para tomar banho no local ao encerrar da jornada de trabalho. Para isso, toalhas são disponibilizadas pela instituição. Com a medida, há menos risco de contaminar o marido, com quem reside.
— Não tive nenhum sintoma até agora, não precisei coletar nem PCR. É muito de ter o cuidado mesmo! — diz
Além do trabalho técnico, Kellen e a equipe ficam na observação quanto aos colegas. A qualquer sensação de que alguém está mais afetado ou estressado, o funcionário é encaminhado para o atendimento psicológico do hospital. No início da pandemia, alguns pediram desligamento por medo de se contaminar, segundo Kellen. Dos 46 da equipe, 11 já tiveram covid-19, mas todos com sintomas leves, conforme a enfermeira.
"Para a família é muito triste! Eles não têm acesso e muitas vezes não veem mais o paciente"
Um dos fatores que mais emociona as equipes é o contato com o familiar do paciente. Os profissionais acompanham despedidas e momentos de profunda emoção.
— O paciente entra, a família não vê mais e não tem acesso à UTI porque é UTI Covid. O que pode acontecer é a visita virtual por uma chamada de vídeo, conforme organização da equipe de psicologia. Mesmo assim é triste porque muitas vezes o paciente está entubado e sedado. Muitos acabam se despedindo, é muito triste!— conta
Em casos de óbito, o familiar é chamado para fazer o reconhecimento pelo vidro da UTI. Esses casos ocorrem semanalmente com acompanhamento da equipe de profissionais da saúde.
— É o último momento que ele vai ver o familiar porque depois não terá velório e é caixão fechado — cita.