Enquanto a região e o Estado como um todo travam uma batalha para reduzir o ritmo de contágio por coronavírus e aliviar o colapso sobre o sistema hospitalar, Canela começa a vislumbrar uma redução significativa de casos positivos da doença desde que foram implantadas medidas da bandeira preta, embora ainda enfrente superlotação de UTIs e aumento no número de mortes. A cidade de 45 mil habitantes, segundo estimativas do IBGE, impôs restrições mais rígidas no dia 23 de fevereiro, quatro dias antes do decreto do governador Eduardo Leite, que colocou o território gaúcho como área de altíssimo risco.
Por esse motivo, a reportagem analisou quatro períodos distintos para entender e comparar como o distanciamento social se refletiu na pandemia na cidade turística. Também foi analisada a situação em outra cidade do mesmo porte e no Estado, para mostrar se o ritmo de contágio teve desdobramentos semelhantes. No caso, foram considerados os cenários dos seis dias anteriores a 23 de fevereiro e os dados posteriores a essa data. Assim, a avaliação cobre quatro semanas diferentes:
:: 17 a 23 de fevereiro (antes da implantação da bandeira preta e Canela)
:: 24 de fevereiro a 2 de março (com bandeira preta em Canela. A partir do dia 27, todo o RS adotou a regra)
:: 3 a 9 de março (com a bandeira preta)
:: 10 a 16 de março (com a bandeira preta)
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Canela diz que ainda é cedo para estabelecer uma relação direta da bandeira preta com os números registrados nas últimas semanas, mas a redução de casos confirmados ao longo das duas semanas seguidas é entendida como um dos prováveis efeitos da restrição de mobilidade. De acordo com a titular da SMS, Cristiani Patricia Stange da Silva Valle, também houve uma queda significativa de procura por atendimento médico em situações mais brandas, mas quadros mais agravados ainda demandam internação em UTI e excedem a capacidade do Hospital de Canela — que dispõe de 10 leitos para pacientes. A cidade tem enviado doentes para tratamento em outros municípios.
— A gente não tem nenhuma avaliação definitiva, ainda, em relação aos impactos da bandeira preta porque precisamos de, pelo menos, mais 15 dias para uma análise mais concreta. O que estamos percebendo é que houve uma redução de casos positivos, como mostram os dados das últimas semanas, e também percebemos que casos brandos reduziram significativamente — aponta a secretária.
De acordo com ela, os atendimentos de síndromes gripais giravam em uma média de 200 a 250 pacientes diários e, desde domingo (14), as equipes de Saúde estão recebendo uma média de 55 pacientes por dia. Ou seja, um público entre três a quatro vezes menor. No boletim de terça-feira (16), a cidade registrava 178 casos ativos para a doença, uma redução de 39,88% em relação à semana anterior às regras da bandeira preta. Nas duas últimas semanas, dados dos boletins epidemiológicos de Canela indicam diminuição na confirmação de novos casos, após um salto de registros na semana de 17 a 23 de fevereiro, o que levou Canela a antecipar a bandeira preta antes de todo o Estado.
— Reduzindo a circulação de pessoas, o vírus circula menos, isso é visto. Tivemos um aumento de casos e agora está diminuindo — comenta a secretária.
CASOS CONFIRMADOS EM CANELA
:: 17 a 23 de fevereiro - 471 casos (sem bandeira preta)
:: 24 de fevereiro a 2 de março - 459 casos (redução de 2,5% em relação à semana anterior, já com a bandeira preta)
:: 3 a 9 de março - 365 casos (redução de 20,47% em relação à semana anterior)
:: 10 a 16 de março - 196 casos (redução de 46,3% em relação à semana anterior)
Quando os números são comparados a Osório, cidade de 46 mil habitantes no Litoral Norte, número similar ao de Canela, é possível enxergar mais claramente que o ritmo de contágio na cidade serrana está menor. Osório só adotou a bandeira preta a partir do dia 27, assim como a maioria dos municípios gaúchos. A cidade do Litoral Norte, inclusive, teve aumento de casos e só a partir da terceira semana em bandeira preta é que começou a observar redução, algo que Canela vem conseguindo há mais tempo e num percentual maior por ter adotado antes as restrições.
CASOS CONFIRMADOS EM OSÓRIO
:: 17 a 23 de fevereiro - 278 casos confirmados (sem bandeira preta)
:: 24 de fevereiro a 2 de março - 453 casos confirmados (aumento de 62% em relação à semana anterior, sendo que bandeira preta vigorou a partir do dia 27)
:: 3 a 9 de março - 574 casos confirmados (aumento de 23% em relação à semana anterior)
:: 10 a 16 de março - 516 casos confirmados (redução de 10% em relação à semana anterior)
Em nível estadual, o total de casos confirmados começou a apresentar redução nas últimas duas semanas.
CASOS CONFIRMADOS NO RS
:: 17 a 23 de fevereiro - 41.925 casos confirmados (sem bandeira preta)
:: 24 de fevereiro a 2 de março - 49.907 casos confirmados (aumento de 19,03% em relação à semana anterior, sendo que bandeira preta vigorou a partir do dia 27)
:: 3 a 9 de março - 37.382 casos confirmados (redução de 25,09% em relação à semana anterior)
:: 10 a 16 de março - 15.869 casos confirmados (redução de 57% em relação à semana anterior)
Casos graves ainda excedem a capacidade hospitalar
A lotação hospitalar foi o motivo decisivo para a antecipação da bandeira preta em Canela. No dia 23 de fevereiro, data do decreto, o boletim epidemiológico da SMS tinha nove pacientes na UTI na instituição, além de outros seis pacientes que haviam sido remanejados para hospitais de outras cidades. O número é elevado, principalmente se considerar os boletins anteriores, que costumavam registrar três a quatro internações. Houve uma leve redução na segunda semana de bandeira preta, mas as hospitalizações cresceram mais na terceira semana.
Ou seja, as internações em UTI continuam excedendo a capacidade do município, mantendo uma média de 10 pacientes internados fora da cidade — ainda que nem todos transferidos permaneçam em quadros graves, esclarece a SMS —, além de lista de espera que varia continuamente, mas já chegou ao total de oito pacientes. De acordo com a secretária Cristiani, não houve registro de óbito em espera de leito.
— Notamos que o vírus está mais agressivo e, assim como no restante do Estado, estamos recebendo mais pacientes jovens, sem comorbidade, em estado grave. Isso faz com que o hospital continue superlotado, dependendo da transferência do Estado, onde todos os hospitais estão lotados. Às vezes leva horas, às vezes dias, mas isso acaba, também, influenciando no prognóstico do paciente — lamenta Cristiani.
INTERNAÇÕES EM UTI - CANELA
:: 17 a 23 de fevereiro - 15 pacientes em UTI, sendo 9 no hospital da cidade e seis internados em outros municípios.
:: 24 de fevereiro a 2 de março - 20 pacientes em UTI, sendo 10 em hospitais de outros municípios (aumento de 33,3% em relação à semana anterior).
:: 3 a 9 de março - 19 pacientes em UTI, sendo 10 em hospitais de outras cidades (redução de 5% em relação à semana anterior).
:: 10 a 16 de março (três semanas de bandeira preta) - 10 pacientes em UTI + 15 em hospitais de outras cidades (aumento de 31,57% em relação à semana anterior e de 66,6% em relação à semana antes da implantação da bandeira preta).
Em Osório, o Hospital São Vicente de Paulo dispõe de 20 leitos de UTI para pacientes da covid-19 — o dobro do total de Canela. Ainda que tenha mais leitos e menos internações de moradores, a cidade também enfrenta superlotação, uma vez que funciona como referência para outros municípios do Litoral Norte e, entre casos confirmados e suspeitos para a covid-19, já oscila em capacidade máxima desde o dia 24 de fevereiro.
Ao analisar os números, é fácil ver que o agravamento de saúde foi maior entre os pacientes de Canela, pois havia menos moradores de Osório em UTI no período analisado. A cidade do Litoral Norte, porém, viu uma inversão na última semana, com o agravamento da saúde de seus moradores. Veja como estava a lotação em UTI no mesmo período de Canela:
INTERNAÇÕES EM UTI - OSÓRIO
:: 17 de fevereiro - 17 pacientes em UTI, sendo 6 moradores de Osório e 11 de outras cidades.
:: 23 de fevereiro - 19 pacientes em UTI, sendo 4 moradores de Osório e 15 de outras cidades.
:: 2 de março - 20 pacientes em UTI, sendo 3 moradores de Osório e de 17 de outras cidades.
:: 9 de março - 20 pacientes em UTI, sendo 6 moradores de Osório e 14 de outras cidades.
:: 16 de março - 19 pacientes em UTI, sendo 12 moradores de Osório e 7 de outras cidades.
Conforme o titular da SMS de Osório, Danjo Renê, a cidade também têm registrado filas de espera que já chegaram a totalizar oito pacientes, e que diariamente aguardam transferência para UTIs de outras cidades.
— Nesse meio tempo recebemos liminares pedindo liberação de leitos de UTI, mas não temos como tirar pacientes, a regulamentação é estadual. É terrível ter que dizer para as pessoas que não temos o que fazer, mas se o leito está ocupado, não temos o que fazer — relata o secretário.
Segundo ele, o número de pacientes com síndrome gripal que procuram o atendimento da prefeitura parece menor nesta semana. Ele afirma que somente na unidade de atendimento covid-19 da cidade, as 100 senhas diárias não estavam mais sendo suficientes. Mas ele diz que a procura aparenta redução. Em contrapartida, a contratação de médicos e a compra de insumos hospitalares, que estão com preços elevados, assim como o recebimento esporádico de doses da vacina contra a doença, têm preocupado a gestão.
— A bandeira preta está sendo aderida, temos uma população consciente e não estamos medindo esforços para reverter esta situação. Porém, acredito que precisaremos de mais alguns dias para frearmos essa situação — projeta Renê, referindo-se ao dia 21 de março, data final de vigência do decreto estadual.
Dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES) mostram que, desde o dia 3 de março, o Rio Grande do Sul tem registrado defasagem de leitos em UTI em relação à demanda de pacientes em geral. Os registros relacionados à falta de leitos variam diariamente desde então, atingindo um pico de 323 no dia 15 de março. Veja a situação das internações por covid-19 nas últimas semanas e da falta de leitos para pacientes em geral:
INTERNAÇÕES EM UTI - RS
:: 17 de fevereiro - 970 pacientes em UTI
:: 23 de fevereiro - 1.217 pacientes em UTI
:: 2 de março - 1.775 pacientes em UTI
:: 9 de março - 2.270 pacientes em UTI e 119 leitos faltantes
:: 16 de março - 2.501 pacientes em UTI e 268 leitos faltantes
Número de óbitos é maior em Canela
Canela, assim como muitos municípios, teve aceleração no número de mortes em decorrência da covid-19. Registrava um total de 111 casos até terça-feira (16). Veja o acumulado:
:: 17 a 23 de fevereiro - 19 mortes
:: 24 de fevereiro a 2 de março - 11 mortes (redução de 42% em relação à semana anterior)
:: 3 a 9 de março - 12 mortes (aumento de 9% em relação à semana anterior)
:: 10 a 16 de março - 18 mortes (aumento de 50% em relação à semana anterior)
Ainda assim, o percentual de crescimento é menor do que em Osório, que totalizava 90 óbitos no total até dia 16 de março, mas teve aceleração de casos:
:: 17 a 23 de fevereiro - 2 mortes
:: 24 de fevereiro a 2 de março - 4 mortes (aumento de 100% em relação à semana anterior)
:: 3 a 9 de março - 9 mortes (aumento de 125% em relação à semana anterior)
:: 10 a 16 de março - 17 mortes (aumento de 88% em relação à semana anterior)
No cenário estadual, os registros de mortes nas mesmas semanas observadas apresentam variação diária, mas se observadas as médias, estiveram em alta, sendo que há uma tímida redução na semana mais recente. Veja a média de óbitos registrada em cada período:
:: 17 a 23 de fevereiro - média de 78 mortes por dia
:: 24 de fevereiro a 2 de março - média de 124 mortes por dia (aumento de 58,9% em relação à semana anterior)
:: 3 a 9 de março - média de 192 mortes por dia (aumento de 54,8% em relação à semana anterior)
:: 10 a 16 de março - média de 188 mortes por dia (redução de 1,93% em relação à semana anterior)
De acordo com o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, que integra a Rede Análise Covid-19, assim como os demais dados da pandemia, o índice de mortalidade resulta de inúmeros fatores. Dentre eles: a pirâmide etária, uma vez que a letalidade é diferente por faixa etária; a capacidade de atendimento do sistema de saúde; e a força do surto.
— Se uma cidade tem um surto muito forte, isso acaba sendo mais mortal no curto prazo do que em uma cidade que vem aumentando gradativamente — comenta o especialista.
Além disso, ele destaca que o registro de mortes não está diretamente relacionado aos casos confirmados, uma vez que o período entre a notificação e o óbito varia muito a cada paciente, contando ainda, em alguns casos, com internação hospitalar.
— As mortes costumam ocorrer e ser notificadas cinco a oito semanas depois, em comparação com a confirmação dos casos. Então, em relação a este período, provavelmente ainda veremos mortes ocorrendo em abril e maio — afirma Schrarstzhaupt.
"Se não dermos as mãos, vamos parar no fundo do poço", diz prefeito de Canela
A regressão no aumento de casos positivados para covid-19 é vista como "animadora" pelo o prefeito de Canela, Constantino Orsolin (MDB). Ele afirma que acolheu a bandeira preta, recomendada pelo Estado, de forma independente, tendo em vista que algumas decisões são difíceis de tomar em conjunto com a Associação dos Municípios da Serra (Amserra), da qual a cidade faz parte, tendo em vista que as referências em Saúde, para hospitalização de casos mais graves, não são as mesmas para todas associadas. Sendo assim, ao longo de quatro dias, Canela permaneceu em bandeira preta enquanto cidades vizinhas, como Gramado, por exemplo, continuavam em regramento de bandeira vermelha até o decreto estadual mais restritivo.
— Talvez estejamos colhendo hoje os frutos dessa decisão tomada lá atrás. Acho que está na hora de todas as cidades construírem a ideia unificada de que o vírus só vai sumir se todo mundo assumir sua responsabilidade. Pessoas mais próximas, amigos e familiares, estão morrendo, e isso faz as pessoas tomarem mais consciência. Em geral, a cidade tem se comportado de maneira extraordinária, entendendo que se não nos dermos as mãos, vamos parar no fundo do poço — afirma o prefeito.
Ainda que tenha adotado o regramento e esteja começando a ver possíveis resultados gerados a partir dele, Orsolin afirma ser favorável a uma flexibilização a partir de 22 de março. O gestor diz que busca, junto de entidades representativas do município, como a de comerciantes, por exemplo, alternativas para que as atividades possam ser retomadas de maneira segura.
— O comércio aqui é uma das nossas principais atividades. Estamos tentando buscar uma solução alternativa, que talvez não seja a abertura completa, algo individualizado, quem sabe. Mas encontrar esse "meio-termo" — comenta Orsolin, enaltecendo medidas estaduais que restringem as atividades à noite, algo que, segundo ele, está dando bons resultados na cidade.
Em entrevista ao Gaúcha Atualidade da última segunda-feira (15), o governador Eduardo Leite afirmou que, se mantida a tendência atual dos indicadores que formam o cálculo das bandeiras, a perspectiva é de que a bandeira preta permaneça até que haja uma reversão no cenário e queda nos números.
— Essas projeções são baseadas nos dados que compõem o modelo de distanciamento controlado. O número de pacientes confirmados com a doença em UTIs, que é um dos indicadores, aponta que houve um aumento de 800 para cerca de 2,5 mil pessoas nessa condição. Isso significa que ainda há uma situação de superlotação dos hospitais, fazendo com que o modelo indique a bandeira preta — afirmou.
Com relação à cogestão, o governo pretende conversar com os prefeitos na tarde desta sexta-feira (19) para definir os próximos passos. Mesmo que haja uma eventual decisão de retomá-la, Leite entende que serão necessários ajustes nos protocolos da bandeira vermelha, tornando as atividades mais restritas.