A pandemia de coronavírus e o tempo maior em casa — o que pode ter facilitado a procura de documentos necessários —, podem explicar o aumento da busca por cidadania europeia na Serra. As solicitações vêm aumentando desde 2018, quando o Brasil registrou 265 mil pedidos, segundo a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE), mas, ano a ano, os profissionais especializados no assunto percebem que há crescimento no interesse das pessoas em providenciar o documento. A cidadania, se aprovada, permite aos brasileiros morarem fora do país.
Um das empresas especializadas no assunto, a Nostrali, que tem sede em Caxias, registrou crescimento de 200% em 2020. Com mais de 600 processos de cidadania italiana aprovados nos últimos cinco anos, a empresa pretende contratar profissionais especializados, além de investir ainda mais em tecnologias.
— Mesmo em ano de pandemia, sem dúvidas foi o nosso melhor ano. Inicialmente as pessoas ficaram assustadas, mas com o passar do tempo, os clientes voltaram a ter interesse, principalmente na via judicial, que não necessita de uma viagem para a Itália — afirma o consultor David Manzini.
Manzini explica ainda que a alteração na Lei nº 37/1981, de novembro de 2020, que atenuou as regras para o reconhecimento da nacionalidade portuguesa, em especial com a supressão da necessidade de se comprovar vínculo com o país, também serviu de estímulo para o aumento da demanda de reconhecimento da cidadania lusitana. Atualmente, a Nostrali tem quase 60 processos em andamento deste documento:
— Muitos têm direito, mas muitas vezes desistem do sonho no meio do caminho devido à burocracia.
Para o consultor jurídico italiano Agostino Calvi, que reside em Caxias do Sul desde 2013, e também é especialista em processos de cidadania, a procura aumentou porque os consulados ficaram parados e ainda não é possível entrar na Itália desde o Brasil:
— Percebo um aumento superior a 60% no número de clientes que atendi em 2020. A pandemia influenciou, porque a impossibilidade de viajar à Itália estimulou as famílias a se reunirem para requerer a cidadania de uma maneira viável e segura, o pedido via ação judicial.
Antes, como explica o consultor, a opção mais procurada era fixar residência no país. Agora, como a Itália está com uma série de restrições para receber brasileiros, encaminhar a documentação diretamente no Tribunal de Roma se tornou a alternativa mais procurada em escritórios especializados no assunto em Caxias do Sul. Contudo, para quem sonha em ter dupla cidadania surge um alerta: é necessário buscar informações de empresas e assessorias especializadas que garantam a transparência no processo e que tenham conhecimento jurídico para evitar fraudes ou problemas.
— Essa via é mais segura e até mesmo menos onerosa porque não tem a necessidade de ir para a Itália. Quando se opta pela viagem, além de ter um alto custo, tem que fixar residência e o prazo legal é de 45 dias morando no país. Com a pandemia e os consulados fechados, a alternativa é a via judicial. Entraram juízes novos no Tribunal de Roma e eles têm decidido no prazo de aproximadamente dois anos — afirma.
O advogado Lonis Stallivieri atua há 34 anos com processos de cidadania e também tem a mesma impressão:
— Sempre tivemos períodos de altos e baixos, mas no momento, pelo fato de atuarmos com a possibilidade judicial via Tribunal de Roma, este caminho começa a ser bastante procurado.
Ele também acredita que o ano de 2020 foi atípico devido a demanda que ficou reprimida, em função das regras de isolamento.
— Como tínhamos muitos processos em andamento, a estes foram dado continuidade. Havia uma expectativa de que o Consulado Geral da Itália retomasse o recebimento dos processos já agendados para entrega, o que não aconteceu — ressalta o advogado.
Ele aponta que, em relação a novos processos, no momento, se o cliente deseja encaminhar o processo pessoalmente na Itália, terá que esperar:
— Não temos perspectivas otimistas para que ocorra em breve. Não temos uma luz que dê a possibilidade de acontecer uma livre circulação entre Brasil x Europa em breve tempo. Além disso, a desvalorização do Real frente ao Euro acabou inibindo o interesse neste tipo de procedimento também.
Além disso, Stallivieri afirma que a fila de espera junto ao consulado italiano no Brasil está tão longa e incerta que a perspectiva futura de entrega de um processo pode amargar até 15 anos:
— Isto enfraquece a vontade dos interessados na busca do direito ao reconhecimento da cidadania italiana. Por isso, a via judicial está em crescimento de busca pelas famílias interessadas pois, mesmo que demore mais do que requer a cidadania pessoal e diretamente em algum comune (município) italiano, é impossível se deslocar até a Itália no momento.
Pandemia acelerou realização de um sonho
O comissário de voo Paulo Henrique Verdó, 27 anos, é natural de Valinhos no interior de São Paulo. Ele cresceu ouvindo a mãe contar histórias vividas pelo bisavó dele, que era italiano, e deixou o país em busca de oportunidades na Itália:
— Eu ouvia as histórias sobre o meu bisavó, mas ainda não tinha despertado essa curiosidade e nem o que significava ser descendente de italiano. Soube que eu tinha direito há uns três anos, quando conversei com a minha mãe sobre o assunto. Foi aí que comecei a pesquisar empresas que fazem esse trabalho que tivessem conhecimento e experiência.
Na época, ele procurou quatro assessorias e todos os consultores explicaram que o processo, até então mais procurado, era ir a Itália, mas para isso ele precisaria se afastar da minha vida profissional por até quatro meses. Isso porque esse procedimento exige que o interessado resida na Itália até ter a cidadania reconhecida. Como ele estava empregado na época, se planejou para viajar entre janeiro e abril de 2021. Ele escolheu a empresa de David Manzini, com sede em Caxias do Sul, para levar o processo adiante. Com a pandemia, ele foi demitido e isso fez com que ele acelerasse a realização do sonho de se mudar para a Europa.
— Aproveitei essa pausa que tive e que não teria trabalhando para reunir toda a documentação. Estar sem emprego foi ruim, mas foi um passo importante para concretizar essa vontade e esse sonho que eu tive de completar o processo e buscar a minha cidadania — conta ele.
O processo pode levar até seis meses, mas em torno de 75 dias, Verdó, estava com a cidadania em mãos:
— Eu fiz todo esse processo em meio aos casos de coronavírus. Eu fui um dos primeiros clientes a chegar na Itália, em outubro, depois do impedimento dos voos brasileiros de chegarem ao país. Foi difícil porque, com a pandemia, tive que buscar outras alternativas porque a Itália estava com as fronteiras fechadas para o Brasil. A minha primeira dificuldade era essa, tive que ir para o Reino Unido, ficar em isolamento por 14 dias, então tive que arcar com custos de acomodação, alimentação, e depois comprei outra passagem para ir para a Itália.
Com a documentação em mãos, em 24 de dezembro de 2020 ele viajou para Birmingham, no Reino Unido, onde vive atualmente com o esposo, o comissário de voo Pedro Henrique de Mello Maciel, 31.
— Cheguei nos últimos minutos, era quase Natal. Meu esposo já estava no Reino Unido e eu tive problemas porque as fronteiras fecharam novamente com o aumento dos casos em dezembro. Mas deu tudo certo — comemora.
Já a aposentada Marilene Sandi Pozzer conta que não tem interesse em morar fora do Brasil, mas quer fazer a cidadania. Ela tem 61 anos e é natural de Antônio Prado. Já viajou para a Europa, mas ingressou com pedido judicial para requerer a dupla cidadania pensando no futuro dos filhos e sobrinhos. Há cerca de 10 anos, ela e as irmãs entraram com o processo, mas acabaram caindo em uma fraude, e o requerimento não teve andamento. A família perdeu tempo e dinheiro quando o consultor contratado desapareceu. Dessa vez, ela procurou uma consultoria especializada e vai reiniciar a busca pela cidadania italiana:
— A família decidiu retomar o processo para obter a cidadania pelos nossos filhos, os meus e meus sobrinhos, porque entramos com o pedido, minhas irmãs e eu. Buscamos um novo profissional e agora sim está andando. Optamos pela solicitação por via judicial, já que a pandemia nos impede de viajar.
Ela é mãe de Bárbara, 30, e João Marcos, 26, sendo que a filha mora na Holanda há dois anos.
— Ela é formada em Medicina e trabalha em um hospital. Mesmo que não tenha interesse em morar lá, facilita até mesmo para passar mais tempo com a minha filha — ressalta ela.
Saiba mais sobre a cidadania
Quem tem direito?
Todo e qualquer cidadão que possui na sua árvore genealógica, em linha reta, um antepassado de origem italiana, que veio da Itália, pode solicitar o reconhecimento da cidadania, sem limites de gerações.
Quais os documentos necessários?
O reconhecimento da cidadania italiana se baseia no direito de sangue. O cidadão interessado deverá demonstrar documentalmente ter origem italiana. Os documentos previstos por lei são as certidões de nascimento e casamento desde o antepassado italiano até o requerente. Será necessário também demonstrar que o antepassado não tenha se naturalizado brasileiro antes do nascimento do seu filho, mediante a emissão da Certidão Negativa de Naturalização.
Onde apresentar o pedido de reconhecimento?
O órgão italiano responsável para analisar e determinar o pedido de reconhecimento da cidadania do interessado que reside no Brasil é o Consulado competente pelo estado de residência do cidadão.
Passo a passo
O processo de reconhecimento da cidadania italiana é dividido em duas etapas, sendo a primeira no Brasil e a segunda na Itália.
Primeira etapa
1- Solicitação das certidões (nascimento, casamento e óbito), no formato inteiro teor, do requerente até o ascendente italiano, junto aos Cartórios de Registro Civil brasileiros;
2- Pesquisa e busca dos documentos do italiano (batismo/nascimento e casamento) diretamente na Itália;
3- Solicitação da expedição da Certidão Negativa de Naturalização (CNN) do italiano junto ao Ministério da Justiça;
4- Verificação se o requerente tem direito ao reconhecimento da cidadania italiana (estudo da árvore genealógica);
5- Análise completa dos documentos que irão compor o processo;
6- Retificação de documentos de forma administrativa ou judicial, caso haja necessidade, através da contratação dos serviços profissionais dos advogados especializados;
7- Legalização da documentação completa do requerente junto ao Escritório de Representação do Ministério das Relações Exteriores (ERESP) ou Ministério das Relações Exteriores (MRE);
8- Tradução de todos os documentos brasileiros para o idioma italiano, através dos serviços do Tradutor Público Juramentado;
9- Agendamento de entrevista através do site do Consulado Italiano, visando a legalização dos seus documentos;
10- Comparecimento ao Consulado Italiano na data agendada para legalização de todos os documentos e conclusão do processo no Brasil.
Segunda etapa (na Itália)
1- Fazer a declaração de presença na Polícia da imigração "Questura";
2- Dar entrada na residência;
3- A Polícia Municipal vai verificar a presença e confirmar a residência;
4- Organizar a entrada da cidadania com o protocolo na Prefeitura;
5- A prefeitura faz o pedido da Certidão de Não Renúncia ao Consulado Italiano no Brasil;
6- O Consulado Italiano no Brasil responde a Não Renúncia;
7- O Prefeito assina a cidadania;
8- É elaborada a transcrição dos documentos;
9- Ocorre a emissão de RG e Passaporte.
Na Itália
a) Um funcionário do escritório italiano que exerce a recepção dos clientes no aeroporto que estão chegando do Brasil e os acompanha no regresso;
b) Um advogado responsável pelo processo na Itália, fazendo a supervisão dele e ficando à disposição para explicar e todas as etapas;
c) Um funcionário-advogado designado especificamente para o seu caso, que cuidará de todos os aspectos práticos do seu processo;
d) Um funcionário do escritório, definido por "suporte a cidadania", que prestará assistência necessária na parte de logística.
Via Judicial
Fase preparatória
:: De acordo com o consultor jurídico Agostino Calvi, para ajuizar a ação os requerentes entregam os documentos para análise (caso a família não possua a documentação, o escritório providencia o que for necessário), em que é verificada a ausência de impedimentos para o reconhecimento da cidadania.
:: Após, é redigida a procuração para um dos advogados do escritório que mora na Itália, o qual terá poderes para representar os requerentes perante o Tribunal de Roma.
:: O réu da ação é o Ministério do Interior italiano, responsável pelas questões de reconhecimento da cidadania. Trata-se de uma ação judicial bastante importante, pois precisa de conhecimentos jurídicos específicos para ter resultado positivo. Uma vez recebidos os documentos, a equipe elabora a inicial e procede ao ajuizamento da ação perante o TC de Roma.
Ajuizamento da ação
:: Depois de algumas semanas, os advogados recebem o numero do processo (Numero di iscrizione al Ruolo Generale). O processo pode ser acompanhado pelo aplicativo Giustizia Civile. Após, ocorre a designação do juiz e a fixação da audiência.
:: Na audiência em Roma, o advogado explica ao juiz a situação da família, apresentando os devidos documentos. Nos últimos meses, em função da pandemia, varias audiências foram adiadas, mas a situação está se normalizando com audiências online e tratadas por escrito.
Fase administrativa do processo judicial
:: Após a sentença de reconhecimento da cidadania, a pasta é retirada do Tribunal e enviada para o comune (município) de origem do antepassado italiano para fazer as transcrições e emitir as certidões italianas dos requerentes. Feito isso, se procede com o cadastro no AIRE do Consulado correspondente e com o agendamento e a emissão do passaporte.
Curiosidades
- A cidadania italiana via judicial pode ser dividida entre familiares, uma vez que na mesma ação, podem ser incluídas várias pessoas.
- O processo administrativo via consulado no Brasil é o caminho mais barato, no entanto, pode levar 15 anos.
- O processo na Itália se torna mais rápido, mas pode custar mais de R$ 40 mil, se for levado em consideração passagem aérea, deslocamento, moradia, alimentação, documentação e assessoria.
- Ao fazer uma ação judicial, o reconhecimento da cidadania é feito por um juiz que reconhece diretamente a cidadania dos requerentes, sem qualquer ingerência dos órgãos da administração pública italiana. O judiciário já sentenciou várias vezes que a demora dos consulados equivale à negação do direito. Sendo assim, tudo seguirá de forma lícita e com baixo risco.