Geralmente dispostas próximo à paróquia local, pequenas mesas com espaço para quatro ocupantes abrigam um animado e estratégico carteado, que atravessa as horas em longas tardes de sábado ou domingo. Antes de a pandemia instaurar o distanciamento social, a cena descrita acima era uma das mais comuns nas comunidades do interior de Caxias. O quatrilho, trazido ao Brasil pelos imigrantes italianos, no fim do século 19, ainda é um dos jogos mais populares nesses lugares, protagonizado por gente de diferentes idades que mantém viva uma tradição passada de geração a geração. A fim de preservar ainda mais essa memória cultural, uma lei recém-sancionada reconhece o quatrilho como o jogo oficial de Caxias do Sul — a autoria do projeto é do ex-vereador Neri, o Carteiro.
Entre os mais engajados em manter a cultura do jogo italiano viva em Caxias está a Confraria Qu4trilho Colonial — criada em 2014, na localidade de São Luiz da 6ª Légua, e que conta atualmente com quase 100 membros. O grupo organiza torneios interestaduais e participa de eventos como a Festa da Uva e a Festa da Colheita. O presidente da confraria é o aposentado José Ivo de Costa, 70 anos, que herdou o gosto pelo quatrilho do avô.
— Meu nonno contava que o pai dele jogava lá na Itália, e que em noites muito frias, eles se reuniam para jogar na parte de cima dos estábulos, geralmente onde colocam o feno, porque ficava mais quentinho lá — lembra.
Costa diz que o quatrilho é apaixonante por ter uma lógica nada repetitiva. Definido por ele como “xadrez das cartas”, o jogo requer raciocínio rápido e um certo talento para a observação.
— Precisa ter malandragem e boa memória. Tem que ficar alerta aos sinais que o adversário dá. Mas a parte mais divertida mesmo são os xingamentos quando termina o carteado (risos) — diverte-se o presidente da confraria.
Outra característica marcante é a troca de parceiros durante o jogo, particularidade que acabou virando metáfora no livro O Quatrilho.. Escrita por José Clemente Pozenato, a obra é um dos maiores clássicos da literatura regional e virou peça interpretada pelo Miseri Coloni e, anos mais tarde, filme indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1996. O livreiro Arcângelo Zorzi Neto, o Maneco, que integrou o elenco da peça e do filme, tem uma memória afetiva do jogo.
— Aprendi jogar o quatrilho nas noites longas de inverno, quando nos reuníamos com os vizinhos para fazer o filó. Era um dos jogos de cartas mais jogado, pois era fascinante porque a cada mão de cartas não se sabia quem era seu parceiro, mudava a cada rodada — lembra.
Manter a tradição viva
Uma das preocupações da Confraria Qu4trilho Colonial é passar a tradição do jogo para as gerações mais novas. O presidente José Ivo de Costa é otimista nesse sentido, mesmo ponderando que o jogo não encontra muita abertura entre os jovens “da cidade”, que possuem uma variedade maior de opções de lazer.
— Quando organizamos os torneios, reunimos música, merendim, e sempre aparecem jovens interessados. Acho que é uma semente que já foi germinada e semeou — diz Costa, planejando reforçar ainda mais a atuação da confraria agora que a lei foi sancionada.
Na casa da família Dinani, que fica na comunidade de Camaldoli, no distrito caxiense de Santa Lúcia do Piaí, o quatrilho envolve dos mais velhos aos mais jovens. A relações públicas Jussânia Cristina Dinani, 34 anos, conta que a reunião ao redor da mesa da cozinha para jogar é uma diversão da qual ela e os familiares não abrem mão.
— O baralho é muito cultural para o pessoal do interior, a gente fica aqui jogando, faz pipoca, prepara um salame com queijo. É divertido, a gente dá risada, um motivo a mais para estarmos com quem gostamos. Às vezes, começamos às 14h e vamos até as 20h direto, sem nem notar — comenta ela.
Jussânia conta que a mãe, Rosalina, 63, é uma aficionada por quatrilho e que, na última edição da Festa da Uva, as duas foram as únicas mulheres a participarem do torneio em meio a 148 homens.
— É muito legal, porque tem uns homens que não admitem perder. Mas o quatrilho é um jogo que não requer somente experiência, a sorte também conta muito — aponta ela.
Preocupada em perpetuar o gosto pelo jogo na família, Jussânia ensinou o quatrilho ao marido e já mostra os primeiros passos do carteado para a filha, de três anos.
— Ela já sabe diferenciar as cartas, e estou ensinando os nomes de cada uma também — orgulha-se.