Basta começar a falar de seus alunos para a voz da professora Patrícia Gomes Borges Bisinella, de Flores da Cunha, vibrar em tom de alegria. Na entrevista concedida por telefone, fica claro o empenho dela em tornar mais acessível a educação dos estudantes do 5º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Tancredo de Almeida Neves. Acessibilidade, aliás, tem sido apontada como uma palavra fundamental no debate sobre o futuro da educação em tempos de ensino virtual. Mas, para quem está em formação, o futuro é o acontece hoje.
Em seis meses de aulas presenciais suspensas, dois dos 14 estudantes que compõem a turma de Patrícia ainda não têm acesso à educação de casa. No início da pandemia, a professora fez um diagnóstico da disponibilidade de internet de cada um. Para os alunos que não conseguem acompanhar a aula pela manhã, Patrícia passou a oferecer atendimento individual.
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Outras crianças receberam aparelhos das campanhas organizadas pela professora. As ações arrecadaram dois celulares, dois computadores e um notebook. A mobilização reflete a resposta da comunidade, que também se engajou em outra campanha de solidariedade, organizada pela própria turma. 70 cestas básicas com alimentos e produtos de higiene foram doadas para as famílias carentes da comunidade escolar. Além das cestas, a ação recebeu roupas, que foram destinadas a crianças da escola, ao Centro de Acolhimento ao Imigrante, em Caxias do Sul, e ao Lar de Idosos São Francisco de Assis, também em Caxias.
— Eu não achava que em período pandêmico ia ter tanta colaboração. As pessoas estão dispostas a ajudar — acredita Patrícia.
O projeto de solidariedade foi organizado virtualmente, graças ao portal de conteúdo criado pela professora. Com o objetivo de tornar as aulas mais parecidas com a rotina vivida em sala de aula, Patrícia montou um site que indica o passo a passo das tarefas para os alunos. Há, por exemplo, a hora para o café da manhã — agora com as famílias, em vez dos colegas —, e a hora para a meditação, técnica já colocada em prática na classe antes do distanciamento social. Além das aulas simultâneas, Patrícia começou a produzir vídeos e PDFs para facilitar o acesso de quem não dispunha de boa internet:
— Eles não tinham e-mail para poder usar o Zoom (plataforma de videochamadas). Já outros tinham internet por tempo limitado, às vezes pelos primeiros 15 dias do mês. Hoje, a maioria usa o Zoom, mas, para os que não conseguem, eu ligo por WhatsApp e faço a aula simultânea.
Para dar conta de ensinar o conteúdo e realizar toda a transmissão, Patrícia se desdobra. Ela, que divide o escritório com o marido, também professor, segura o celular para que os que estão conectados via WhatsApp possam enxergar os outros, além de garantir que o som esteja audível para todos.
— É diferente do que estar só no celular. Eles ficaram deslumbrados em poder ver tudo simultâneo, os colegas e as profes — relata.
Em um tempo marcado pela saudade dos colegas, o momento da aula é de aproximação. Patrícia explica que as crianças, que têm entre 10 e 11 anos, precisam de convivência. Como ela ainda não pode ser presencial, a professora decidiu propor encontros semanais para simular o recreio em grupo.
— Eles têm escola em turno integral e meu horário era o da manhã. Quarta-feira de manhã é o meu turno do doutorado, mas os alunos mandam vídeos pedindo ‘profe, não vai ter aula?’. Às vezes, mandam vídeos até de receitas que eles fazem. Mesmo em uma realidade difícil, em que muitos sofrem com questões financeiras, eles se empenham e estão participando.
Projetos de Vida seguem a distância
Baseada no material didático do psicólogo Leo Fraiman, a escola Tancredo de Almeida Neves trabalha com os estudantes questões acerca do empreendedorismo, buscando desvincular a ideia de que o conceito se refere apenas ao sucesso financeiro.
— Tu podes empreender em qualquer área da tua vida — acrescenta Patrícia.
Divididos em módulos, estão conteúdos como educação financeira, profissões, planejamento da vida e liderança, sempre em uma linguagem voltada às crianças:
— É liderança, mas de si próprio, de pensar em si como alguém que pode sempre fazer o seu melhor. Empreendedorismo de empreender em si mesmo, nos estudos, por exemplo, buscando qualidade de vida. Na educação financeira, é sobre como ajudar em casa, entender o que é consumo e o que é consumismo, projetar gastos e fazer pequenas economias — justifica a professora.
A preocupação com a comunidade escolar, inserida em um contexto de vulnerabilidade social, molda o curso do aprendizado. Nas aulas presenciais, Patrícia utilizava meditação e yoga, assim como a criação de um contrato de convivência, para reduzir os conflitos entre os colegas.
Pensando no futuro retorno à sala de aula, a professora quer manter o portal de conteúdo e planeja atividades que sigam ensinando sobre economia e sustentabilidade. São ideias como um brechó para arrecadar fundos para a sala de oficinas, revitalização da trilha que leva ao poliesportivo da escola, incentivo à criação de cooperativas e hortas familiares e divulgação dos serviços de profissionais da própria comunidade. Mesmo lidando com a sobrecarga de trabalho e dificuldades no acesso, Patrícia vê uma oportunidade:
— Toda dificuldade vem para o crescimento. Quando a gente voltar para o presencial, tudo isso vai fazer sentido e vai mudar nossas práticas. Às vezes, eu acho que sou muito otimista, aceito a realidade que tenho e vou atrás. Tenho alunos que estão produzindo melhor agora do que em sala de aula.
Como Patrícia define, as ideias que estão surgindo vão funcionar como uma rede de apoio ao bairro por meio das crianças. Em meio a questões que ainda precisam ser respondidas sobre o futuro do ensino, uma delas já está clara para a professora:
— A educação é sempre uma transformação.