Domingos Sávio Betança Soares, 60, brinca que deveria ganhar o "Guiness dos ciganos" porque, mesmo entre os nativos de sua comunidade tipicamente nômade, sua trajetória chama a atenção. Desde que deixou a família, em Rio Grande, há quase 25 anos, ele diz ter trocado 64 vezes de lugar. Um deles foi o abrigo provisório montado nos Pavilhões da Festa da Uva, em Caxias do Sul, para acolhimento de pessoas em situação de rua durante a pandemia — ainda em maio, com demanda reduzida, o abrigo foi transferido para o prédio do antigo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Reviver, no bairro Cinquentenário.
O projeto, que chegou a acolher mais de 220 pessoas simultaneamente, também foi destino de André Luiz Guerra Ramos, 38, natural de Ilhéus (BA), que viajava pelo Brasil e ficou sem condições de moradia depois de trabalhar na colheita de maçã, durante o verão, em Vacaria. Para além da rima dos apelidos, o entrosamento entre o artista, conhecido como Cigano, e o capoeirista, chamado de Baiano, foi instantâneo.
Com parceria firmada para a pintura de máscaras sobre cascas de coqueiro, os dois decidiram deixar o abrigo, alugando uma casa no bairro Petrópolis onde estão instalados há cerca de duas semanas. Um dos cômodos foi destinado ao atelier, onde ambos dizem expressar, por meio da arte, a experiência dos meses que passaram no abrigo, em peças que eles intitulam de "As Máscaras do Pavilhão".
— As máscaras que pintamos representam primordialmente as que todos nós usamos, mas a ideia veio do pavilhão. Nas primeiras noites todos chegavam mascarados e eu ficava pensando como seriam a partir do momento em que as máscaras caíssem. Pintamos o que vimos, com referência a cada expressão com as quais nos deparamos: tristes, eufóricos, raivosos... O mais interessante é que, mesmo usando máscaras, os olhos, que mostram a alma, nunca se escondem — relata Cigano, que sempre teve a arte presente em sua vida, atuando também em inúmeros projetos comunitários pelos lugares que passou.
Os dois interesses — artísticos e sociais — fizeram ele permanecer no abrigo pelos 174 dias que contabiliza precisamente, no período que elegeu como sendo um dos mais marcantes de toda sua vida. A convivência com inúmeros desconhecidos, em um ambiente ao qual nem todos se adaptavam, o inspirou a escrever um livro com o título: Ruas da Vida. A inciativa de Cigano conta com apoio da Fundação de Assistência Social (FAS) de Caxias do Sul, que revisa o texto e busca parcerias para a publicação.
Além de organizar os livros da biblioteca improvisada no abrigo, Cigano mantinha a rotina de caminhar na área aberta dos Pavilhões. Foi em uma dessas caminhadas que encontrou cascas de coqueiro pelo chão, coletando-as para dar início às pinturas, hoje realizadas em parceria com baiano.
— A minha aproximação com o Cigano foi uma questão de identificação. A gente se identifica com um pensamento que é de verdade, da busca pelo que é certo e por fazer o bem. Sempre morei sozinho mas achei uma boa ideia alugarmos este canto. Aqui produzimos momentos de arte e formação de objetos de cores fortes e vibrantes, entoando proteção, e que estamos vendendo para nos manter — relata Baiano, que atribui a Deus uma influência em sua decisão de vir para o Rio Grande do Sul após ter morado em cidades como Brasília, Goiânia e São Paulo.
Da experiência artística iniciada no abrigo e estendida para o novo lar compartilhado, a dupla também registra imagens audiovisuais, com a intenção de, futuramente, montar um documentário. Interessados em firmar parcerias ou conhecer as peças confeccionadas pelos artistas podem entrar em contato pelos telefones: (54) 98436.6874 ou (54) 98423.0696.
A criatividade como alternativa
— Ele organizou a biblioteca improvisada do abrigo e foi bem atuante nas atividades propostas, colaborando, por vezes, até com seu próprio material — afirma Marlês Sebben, presidente da FAS, que guarda na sede da entidade uma escultura, também feita por Cigano.
Ela afirma que a assistência municipal continua acompanhando os ex-abrigados, com orgulho da iniciativa de morarem juntos e seguirem produzindo arte. Algo que, na visão dela, pode inspirar muitas pessoas que hoje vivem em situação de vulnerabilidade extrema, habitando as ruas da cidade.
Ainda quando estavam no abrigo, Cigano e Baiano eram vistos como referência para muitos, sendo recorrente, segundo eles, a dificuldade de adaptação ao ambiente.
— Existem pessoas que só deixarão as ruas se deixarem de existir as ruas. São atraídas pela facilidade de pedir dinheiro na sinaleira e usarem a droga que quiserem. O principal motivo é a falta de entendimento familiar. Eles acabam encontrando nas ruas o apoio que nunca tiveram dentro de casa — avalia Cigano, com base nos contatos com pessoas do que ele chama de "meio popular", no qual diz gostar de se fazer presente.
No abrigo, ele conta que buscava atividades que desvirtuassem esse tipo de vivência. Fora do abrigo, ele e Baiano, agora, além de produzirem arte, almejam compartilhar com pessoas em situação de rua as possibilidades que enxergam como alternativas ao sistema consolidado. Para isso, querem buscar a escolarização necessária e prestar concurso aos cargos de educadores sociais.
— É preciso inovar o sistema social, com o ensino de atividades que despertem o interesse, a criatividade, que é muito importante para o ser humano. Eu sou criador, jogo para todos os lados. Nesses meus 60 anos de vida vi muita coisa e nunca desisti de uma causa. A desigualdade é enorme, precisamos enfrentar a realidade, injetando arte e positivismo, porque as coisas ruins já existem — conclui Cigano.
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