A chamada fadiga mental é quase unânime entre a população da Serra que, assim como o restante do Brasil, chegou à marca de seis meses sob as restrições do isolamento social em função da pandemia mundial de coronavírus. Em meio às inúmeras restrições decretadas desde março e as campanhas de "fique em casa", o biólogo, professor e pesquisador do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Demetrio Luis Guadagnin, propõe algo diferente: o incentivo ao uso de parques e praças pela população.
Em Caxias do Sul, o acesso aos parques é permitido durante a semana e proibido aos sábados e domingos — embora o descumprimento da norma seja recorrente. A situação ainda é desafiadora para muitos municípios e a proposta do biólogo traz à tona o debate sobre a responsabilidade de cada indivíduo na prevenção ao contágio.
A necessidade de interação (segura)
A sugestão de Guadagnin foi publicada em um artigo "Áreas verdes e o convívio social seguro durante a pandemia" no Jornal da Universidade, vinculado à instituição. Como ponto central de sua argumentação, ele sustenta que manejar a circulação adequada é uma medida mais efetiva do que proibir por completo o acesso. Além disso, ele aponta que o convívio e o contato com a natureza são importantes ferramentas no combate aos efeitos psicológicos causados pela pandemia e, ainda, que "o ar livre dispersa a carga viral e expõe as partículas à desestabilização pela radiação UV, vento, umidade e outros fatores. A maioria dos casos conhecidos de infecção acontece pela convivência em ambientes familiares ou de trabalho", conforme a publicação.
— Somos animais sociais, precisamos de interação. Uma forma segura de se realizar essa interação é nos ambientes externos. Claro que isso tem que ser feito com alguns cuidados, mas é mais fácil tomar esses cuidados num ambiente externo do que em um restaurante — disse Guadagnin, em entrevista à GZH.
De acordo com a médica infectologista Viviane Buffon, que atua no Hospital Geral de Caxias do Sul, mesmo em um parque aberto, o nível de segurança em relação ao contágio depende do comportamento individual de cada frequentador.
— Conforme os artigos científicos que vêm sendo publicados, ambientes abertos e ventilados são mais seguros do que os locais fechados. Ainda assim, é preciso usar máscaras, manter a higiene das mãos e evitar aglomerações e atividades com contato físico — afirma a médica.
"Se não viesse ao parque nem estaria mais aqui"
A preservação da saúde mental tem sido uma das motivações de pessoas que optam por atividades externas, mesmo sob o risco iminente de contágio. A aposentada Maria da Silva, 62, conta que ficou apenas uma semana sem sair de casa, logo no início da pandemia, mas que decidiu manter as idas diárias ao Parque dos Macaquinhos em nome da saúde.
— Se eu não viesse ao parque nem estaria mais aqui, porque dá depressão e eu preciso fazer exercícios por conta da diabetes. Acho melhor vir aqui, que tem verde e é ao ar livre, do que ir a um lugar fechado. Tomo todos os cuidados e não tenho saído para outros lugares. O parque é a melhor coisa — afirma Maria.
A privação de contato com o "mundo externo" não afeta somente seres humanos. Prova disso é a cachorrinha Moana, que adoeceu por conta do isolamento e teve passeios prescritos pela veterinária. A orientação médica fez com que Brenda Peruchin, 16, isolada desde o início da pandemia, também passasse a dar algumas voltinhas no parque.
— Meu padrasto costumava levar ela passear e, agora, que precisamos levar mais vezes, estou ajudando em alguns horários — conta a estudante.
Enquanto conversava com a reportagem, na manhã de quinta-feira (10), muitas pessoas corriam, caminhavam ou deslocavam-se de bicicleta pelo Parque dos Macaquinhos, sendo que boa parte delas não fazia uso de máscara, descumprindo uma das recomendações básicas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e obrigatoriedade municipal estabelecida por decreto.
— As pessoas não se cuidam e a gente acaba não se sentindo seguro para sair — comentou a adolescente.
Para secretário, incentivo poderia agravar situação
O secretário da Saúde de Caxias do Sul, Jorge Olavo Hahn Castro , afirma que não há previsão de reabertura integral dos parques do município, sobretudo pelo monitoramento que está voltado, neste momento, à retomada das aulas presenciais nas escolas. O descaso com os cuidados individuais mínimos recomendados durante a pandemia, segundo ele, também é um dos motivos para a proibição do acesso aos locais em finais de semana.
— O uso regrado dos parques, mantendo distanciamento social e uso de máscaras, realmente seria uma boa opção, mas o que temos visto é justamente o oposto disso: aglomerações, rodas de chimarrão e uso de máscara praticamente abolido pela população. Uma liberação aos finais de semana com certeza agravaria isso e o município não consegue fiscalizar todos os parques o tempo inteiro — justifica o secretário.
Diante desta realidade, ele afirma que a socialização em restaurantes e outros ambientes públicos fechados, por vezes, pode acabar sendo até mais segura, uma vez que ela ocorre sob protocolos sanitários monitorados pelo próprio estabelecimento, que fica sujeito a multa em caso de descumprimento.
O caminho da conscientização
Em entrevista à GZH, quando questionado a respeito dos riscos de ainda mais aglomerações e consequente aumento do contágio após o incentivo ao uso de parques, Guadagnin disse acreditar em mudanças nas formas de diálogo com a população.
— É preciso valorizar a inteligência das pessoas. Não diga "não saia de casa", diga "se for sair, prefira...". Há uma falsa confiança na mania brasileira de proibir. Não é efetivo, as pessoas não respeitam — afirmou o biólogo.
Para a psicóloga, especialista em clínica comportamental, professora e pesquisadora na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Raquel de Melo Boff, campanhas de conscientização a respeito dos cuidados necessários para um convívio seguro podem ser importantes aliadas no combate à disseminação do coronavírus.
— A psicologia comportamental já dizia no século passado que não é possível modificar o comportamento por meio da punição. Um exemplo disso são os motoristas que reduzem a velocidade somente quando passam pelos radares para não serem multados. Punir nunca foi eficaz, é preciso buscar o diálogo — afirma Raquel.
A profissional, pós-doutorada em Psicologia, afirma que o isolamento social e outras situações associadas ao período de pandemia, como a incerteza diante de uma doença desconhecida e das fake news, têm aumentado significativamente os índices de ansiedade, depressão e estresse pós-trauma. Raquel acredita que o uso adequado e seguro dos parques pode, sim, amenizar esses impactos psicológicos negativos.
Por que as pessoas não se cuidam?
Raquel de Melo Boff, psicóloga entrevistada pela reportagem, aponta alguns fatores que levam as pessoas a descumprirem as orientações referentes à prevenção do contágio durante a pandemia:
:: Privação prolongada: "As pessoas estão saturadas desse tempo sem sair de casa, que vem se estendendo cada vez mais. Todos querem fazer o que faziam antes e é difícil aceitar que o mundo não vai ser como antes".
:: Reforço positivo: "Após perceber que o vírus é letal, que deixa alguns pacientes muito mal, mas que existem os que se curam ou que sequer apresentam sintomas, as pessoas começam a ter uma visão de que o pior não irá acontecer com elas".
:: Falta de empatia e compaixão: "Infelizmente, na nossa cultura, somos educados para competir e não para dividir. A partir do entendimento individual de que pode-se superar a doença com tranquilidade, passa-se a excluir a possibilidade de contaminar pessoas mais frágeis. Em países orientais, como a China e o Japão, mesmo com sintomas de gripe comum, a máscara sempre foi usada. No Brasil, adota-se porque é obrigatório".
:: Distorção ideológica: "Muitos estão vinculando a situação da pandemia a questões ideológicas e associam a proteção individual a uma questão política. É muito triste isso, a falta de busca pela informação real faz com que as pessoas acreditem em coisas absurdas e sequer entendam o que é OMS, por exemplo".