"Virei blogueira, youtuber, editora de vídeos e professora não só dos meus alunos, mas do meu filho. As atividades são para serem realizadas em casa com a ajuda dos pais. Só que os pais trabalham. Não estou dizendo que a educação e ensinamento dos filhos não é obrigação dos pais. É! Mas isso não está bem planejado. Largaram somente para os pais. Eu sou professora, mas me vejo alienada com conteúdos do 4º ano. Eu não sou pedagoga. Imagina os outros pais dessas crianças que mal estão alfabetizadas, sem a mínima condição de aprender sozinhas. Quem está pensando na sobrecarga emocional dessas crianças e nesses pais?"
O desabafo é da caxiense Daniele Castro, 38 anos. Ela é mãe e professora e assim como milhares de outras mães e pais, teve a rotina e a dinâmica familiar afetada pela pandemia de coronavírus. Com as aulas suspensas, ela não sai de casa para lecionar, o que aumentou ainda mais a carga de trabalho, já que precisa preparar as aulas e criar ferramentas para manter as atividades dos alunos. Ela precisa dividir o dia entre ensinar Física a distância para estudantes do Ensino Médio de uma escola da rede estadual e ajudar o filho Pedro Henry, nove, nas tarefas da 4ª série. Daniela admite estar sobrecarregada em ter que desempenhar tantos papéis ao mesmo tempo:
— Além de todas as atividades que já desempenhava, agora também tenho que ser professora do meu filho. Tenho que motivá-lo para estudar e nas últimas semanas tem sido muito difícil.
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Não é apenas o cansaço físico que tem incomodado a família. Daniele se culpa por sentir que está falhando com o filho. Ao contrário dos alunos dela, que recebem orientações e realizam as tarefas sem supervisão, Pedro, assim como todas as crianças da idade dele, precisa de orientação a cada exercício e também se sente frustrado.
—Sinto que estou me perdendo na relação mãe e filho, pois chega o momento das atividades e ele já começa a chorar e ficar triste. Como está a cabeça dele? Confusa no mínimo. "É minha mãe ou minha professora?" — questiona ela.
Desde a suspensão das aulas, Daniele tem se reinventado para que os conteúdos cheguem aos alunos. Ela trabalha pela manhã e à noite. Mantém atualizado o blog onde escreve sobre astronomia, prepara aulas, corrige tarefas, posta explicações de conteúdos no YouTube e, às quintas-feiras, leciona à tarde. Nos outros dias, das 14h até as 17h, se dedica a ensinar o filho:
_ Sei que este é um dos papéis dos pais: educar e ensinar, mas confesso que a parte mais difícil é em casa porque os nossos filhos não nos veem como professores, e se torna chato e cansativo para eles. O Pedro cansa. Separei três atividades por dia de meta, mas tem dias que não rende e ele pede para parar porque cansou.
O marido dela, Claudiomiro Freitas, 44, é motorista de ônibus, e como não ficou afastado do trabalho não consegue acompanhar todos os dias a rotina escolar do filho:
— Meu marido saí às 4h para o trabalho e retorna às 18h. Ele trabalhou direto, mas, mesmo assim ajuda, principalmente, com as atividades práticas, de artes e educação física.
"Sinto culpa por tudo"
A advogada Manuela Bosi Rech, 43, o empresário Rodrigo Minuscoli, 41 são pais de João Flavio, quatro. Eles também sentem os reflexos da pandemia. No começo, o casal ficou em isolamento social, mas em seguida voltou ao trabalho. Quanto ao pequeno, os dois acreditavam que logo as atividades escolares seriam retomadas. O tempo passou e as aulas seguiram suspensas. Enquanto os pais trabalham, ele fica com a babá, Eloísa Delfes, 48, em tempo integral:
— Comecei a me preocupar e ficar bastante apreensiva, pois senti a necessidade de retomar as atividades online da escola, já que a situação iria perdurar e não queria que ele perdesse conteúdo, apesar de não estar em fase de alfabetização. Aí vieram os obstáculos. Como fazer? Não sou professora, não tenho formação para isso.
Os pais tentaram, mas o menino não se interessou em fazer as atividades online.
— O João não se motivou, não se interessou em nada por elas e não se concentrava. Aos poucos fui relaxando, apesar da culpa em não estar com ele e também não ter capacidade, nem tempo para realizar direitinho as tarefas.
Manuela desabafa:
— Bom, a culpa... ah! A culpa! Essa é minha maior inimiga! Sinto culpa por tudo! Por não estar com ele, por não ter tempo de cuidar de pertinho, de apoiar de pertinho. De chegar cansada e não ter todo o tempo e disposição para usar o turno da noite para as atividades.
O filho, por outro lado, não parece sentir tristeza, o que alivia as dores do coração da mãe:
— O lado bom é que o João não demonstra qualquer tipo de tristeza, ansiedade ou depressão e está, aparentemente, adorando ficar em casa. Ele está bem feliz e isso me deixa, de certa forma, aliviada. Ele é feliz, se diverte com a Tata, que é uma super babá. Ela adora brincar com ele e tem uma criança por dentro. À noite, ele ainda está super disposto nos esperando para brincar.
Desgaste e pedido de desculpas
Na casa de Giovana Cignachi Zat, 37 e Saul Soares Zat, 38, também há momentos de desgaste e tensão. Fisioterapeutas, o casal divide os turnos para cuidar dos filhos Luis Henrique, seis e Antonella, três. Giovana admite que é preciso malabarismo para acompanhar as atividades escolares do filho mais velho e manter a rotina de trabalho, sem toda a rede de apoio que contavam antes da pandemia.
— Tentamos seguir as atividades de maneira regular, mas nem sempre conseguimos e, às vezes, atrasamos a tarefa um dia. Tem o nosso trabalho, a casa, dois filhos, mas fazemos questão de acompanhar as atividades do Luis Henrique.
Ela ressalta que acabam deixando os filhos assistir mais televisão para que se distraiam:
— Eles não podem sair para brincar, mas têm a sorte de ter um ao outro para brincar juntos. Sem atividades físicas, parque, clube os dois não têm onde gastar energia, então acabamos relaxando as regras e liberando um pouco mais a televisão.
A fisioterapeuta conta que nem sempre é fácil lidar com todas as emoções. Nessas horas, uma boa conversa e um pedido de desculpa ajuda a aliviar a pressão e manter o equilíbrio familiar.
— Há desgaste e a gente perde um pouco a paciência, mas depois a gente conversa e pede desculpa e explica para eles a situação. Eles sabem que não está tudo bem. Do jeitinho deles entendem que existe uma doença e a gente não pode sair encontrar os amigos, ir para escola ou parque. Eles ficam irritados e nós também, e nesses momentos ficamos mais juntos e ao pouquinhos tudo vai indo para o lugar e a paz volta a reinar — afirma ela.
Rotina desgastante em casa
Os pais sentem os níveis de estresse aumentar para conciliar o trabalho com os cuidados com a casa e os filhos e as atividades com as crianças. Essas jornadas muitas vezes intermináveis, antes da pandemia eram divididos com avós, babás, escolas, atividades físicas e visitas aos amigos. Hoje, a realidade mudou.
— Acredito que ninguém pensava que chegaríamos a cinco meses em casa. Então, num primeiro momento a família adaptou sua rotina para um mês, depois para dois meses...Nesse período, pais precisaram adquirir habilidades pedagógicas, pois mesmo com o acompanhamento e pleno esforço dos professores com suas aulas online, a "ponta" de casa necessitou mais energia e muitas vezes incluir o processo de aprendizagem dos filhos como parte da rotina da família. E quanto menor a criança, mas empenho necessita dos pais — ressalta a coordenadora do curso de Pedagogia da FSG, Simone Martiningui Onzi.
Ela afirma que as crianças também estão no meio de uma crise e sentem medo, angústia e insegurança:
— Com o prolongamento do isolamento das crianças da convivência escolar, outras demandas começam a aparecer: exaustão frente à rotina (para as crianças, pais e professores), saudades dos colegas, professores, dos ambientes coletivos, do brincar pelo brincar, tudo isso é sentido pelos pequenos.
NÃO SE COBRE TANTO
A Pedagoga Simone Martiningui Onzi aponta que é importante lembrar que é um momento novo e de aprendizagem para todo mundo, e não se cobrar tanto:
— Tudo bem em alguns dias não dar conta de tudo, ou o filho errar algumas questões, ou a internet não funcionar, ou então não ter resposta para uma pergunta que o filho fez sobre o tema da aula. Não compare seu filho com os colegas, não fique bravo se ele errou um exercício ou ainda não compreendeu o conteúdo, aprendizagem é processo, não se martirize e se necessário, peça ajuda.
Para a psicóloga Isabel Fedrizzi Caberlon é preciso entender que todos estão vivendo uma situação de exceção:
— Fomos todos colocados à prova. Os pais foram obrigados a ficar longe, a abrir mão de uma rede de suporte, que eram os avós, escolas, atividades dos filhos fora de casa, babás. Sem essa rede de apoio, há sobrecarga porque tentam conciliar a jornada de trabalho com o cuidar dos filhos e da casa.
Especialista em comportamento, a psicóloga Joselaine de Barros também aconselha a trabalhar a questão da culpa:
— Ninguém é culpado pelo que está acontecendo. Todos nós somos vítimas dessa situação. É o momento de ensinar para os nossos filhos a ter tolerância, a lidar com frustração. Não precisamos dar conta de tudo sempre. Somos seres humanos e o errar é do ser humano.
Isabel também orienta os pais a evitar cobranças.
— É importante pensar que estás fazendo o melhor possível com toda essa bagunça. É importante flexibilizar as cobranças internas sobre como as coisas devem ser feitas. Um ano escolar, por exemplo, pode ser recuperado, mas a saúde física e mental precisa de atenção. É hora de desacelerar as cobranças, e resgatar e fortalecer os vínculos. Um momento de passar aos filhos o que há de mais importante: os valores da família, o amor, o carinho que une pais e filhos — ressalta.
Joselaine também tem um pedido aos pais:
— Seja gentis consigo e com os seus filhos, você serão os melhores professores que puderem ser porque na verdade vocês são pais que desempenham uma função que não é de vocês. Isso gera cobranças e estresses. Essa confusão de papeis é ruim, mas o essencial é entender que o conteúdo pedagógico será recuperado, mas os danos emocionais que podem ficar em função dessa pressão nas relações podem ser pesados. É o momento de ensinar e trabalhar a inteligência emocional. Vamos deixar filhos melhores para esse mundo, que eles aprendam a lidar com as frustrações e adversidades.
MOMENTOS DE LAZER E DIÁLOGO
Para a pedagoga Simone Martiningui Onzi manter a rotina é importante, mas sem esquecer de ter momentos de lazer.
— Assistir um filme todos juntos, uma brincadeira coletiva, contação de história, cozinhar juntos ou marcar encontro online com os amigos e colegas — afirma ela.
Para Isabel Fedrizzi Caberlon a rotina pode ser mais lúdica para que os dias fiquem mais leves para toda a família.
— Os pais podem transformar o compromisso em uma tarefa mais tranquila usando o lado mais lúdico. É importante conversar com os filhos e deixar eles à vontade para que falem de seus medos, angústias e se sintam seguros.
A terapeuta Joselaine Barros também incentiva o diálogo.
— É importante ouvir os filhos e dividir medos e frustrações para legitimar as dores. Falar: "eu entendo que tu está triste e que tu tem medo, e vai ficar tudo bem". O diálogo é essencial para manter o equilíbrio e é preciso verbalizar os sentimentos.
QUARENTENA PEDAGÓGICA
Durante a disciplina Práticas Pedagógicas: Saberes Necessários a Prática Docente, a coordenadora do curso de Pedagogia da FSG, Simone Martiningui Onzi, lançou um desafio aos acadêmicos do curso: de que forma contribuir com a sociedade nesse momento de pandemia.
Surgiu a ideia reunir atividades diferenciadas para os pais realizarem com os filhos em casa. O conteúdo está disponível em um e-book chamado "Quarentena Pedagógica". São mais de 40 atividades gratuitas para ajudar os pais a desenvolveram tarefas com os filhos. Basta acessar o link: https://bit.ly/2PQnN5S.